28.1.05

Coisas que eu queria fazer aos 10, aos 18, aos 21, aos 30, aos 40 anos e que ainda não fiz

.... morar numa casa nas terras cariocas
... morar em Santa Teresa
.... passar seis meses mochilando na Europa
... aprender a pilotar barco.
.. me fantasiar de melindrosa no Carnaval
... aprender a costurar
... confeccionar bijuterias
... ter uma rede na varanda - está entupida de plantas...

Caderno de Pensamentos - Calendário de Júlia

Gosto muito de um livro chamado "A Casa de Papel". É da década de 70, de uma francesa, cujo nome esqueci, contando, picadinho, sem seqüência ou preocupação com unidade estilística, a vida dela e de sua família. Tem várias passagens interessantes dos muitos filhos e do marido dela. Um livro precursor de blogs.A gente tem que abrir um caderno de pensamentos, daqueles que trazem bordados na capa e figurinhas nas páginas dentro da internet. O problema é a falta de destreza com o meio.
Júlia me chama com o calendário na mão:
- Em que dia você não trabalha, Mamãe?
- Sábado e domingo, ora!
- Vamos fazer alguma coisa no sábado?
- Acho que sim, praia talvez, almoçar fora, cinema, comprar material escolar que falta...
- E domingo, a gente fica em casa?
- Pode ser.
Pega o calendário e avisa, olhos brilhando:
- Então, domingo vamos eu, você e o Hugo montarmos a nossa casa no The Sims, tá? A gente vai ter a nossa casa dentro do jogo!!!!- fala, marcando seu primeiro compromisso em seu primeiro calendário.
Tomara que a Júlia se lembre como é bom ter 11 anos e marcar a brincadeira de domingo!

Perdeu, perdeu!

Começou antes do que eu imaginava. Está oficialmente aberta a temporada da caça aos incautos com listinhas de fim-de-ano. Mal virou o mês, recebi um envelope pequenino, junto com minha revista de programação da Net. “Boas Festas de seu entregador do Globo” está na frente do envelope. Há uns bons quatro meses não assino mais jornal. Dentro de meu lema “livrai-me do excesso de paranóia indesejada às 7 da manhã”, optei por ler jornal depois do clipping nosso de cada dia. Como, então, o entregador do jornal que não recebo tem a cara dura de me mandar um envelope sem sequer um cartãozinho? Pelos oito meses passados, é isso?

Hoje, novo ataque das hordas de pedintes de fim-de-ano me aguardava. A Catedral de São Sebastião é cercada por um descomunal terreno arenoso explorado por uma Car Parking da vida, que estabeleceu uma primeira classe e uma classe econômica para as vagas. Se deixarmos o carro no primeiro cí­rculo de vagas em torno da Catedral, pagamos módicos 3 reais por hora, 5 reais por 2 horas, 7 por três horas, 9 por quatro horas, seguindo em progressão ensandecida até completar 15 reais por 15 horas. Prefiro parar num nada aprazível recanto, separado do primeiro cí­rculo por uma correntinha e alguns cones. Há a segunda classe, o Baratex, que cobra 5 reais por doze horas e fica no mesmo terreno. Ao lado, atrás de um murinho, tem ainda o Super-Baratex, que cobra R$ 4,50 por doze horas e é gerenciado pela Coderte.

Pois bem, cheguei hoje, fiz um verdadeiro teste de baliza para estacionar na última vaga disponí­vel. Depois disso, surge um dos rapazes do Baratex. Cara inchada literal e literariamente, ele avisa: “ Ô­, patroa (é comigo mesmo)! A gente aqui tem uma tradição de um livro de ouro. Depois, você assina lá, ta?”. Aceno minha concordância com um trejeito de cabeça e saio resmungando que ele sequer me auxiliou a estacionar o carro. Mas terei que assinar o tal livro, já que ele parece disposto a deixar minha preciosa relí­quia da indústria automobilística ser, no mí­nimo, arranhada, caso eu não contribua com a caixinha de Natal. A verdade é que os moços do Carex são mais distintos, usam camisa pólo azul clarinha ou branca, têm jeito de quem acabou de sair do banho. Os dois do Baratex fazem o gênero descolado de baixa renda, entendeu, minha tia? Já no Super-Baratex o controlador do caixa ouve Djavan e tem lanterninha que auxilia quem precisa catar chaves de carro dentro das bolsas, me contou uma amiga.

Foi ela, aliás, a protagonista da mais nova modalidade de extorsão natalina.Ela estava na Lagoa, quando um menino de rua lhe pediu dinheiro porque tinha fome. Recolheu umas moedinhas, abriu o vidro e entregou para o menino, que, então, cravou as duas mãos na abertura da janela e disse: “ Aê, tia, me dá um dinheiro forte, só isso não”. Minha amiga, nervosa, começou a remexer na bolsa e o garoto conseguiu ver que ela tinha uma nota de vinte reais. Foi o bastante para ele querer aquela nota. “Aê, tia, me dá essa nota de vinte”. Ela então fez voz firme: “Fica com essa aqui”, passando-lhe uma nota de dez, aproveitando que o sinal abrira para arrancar com o carro.

Na verdade, ninguém pode dizer que minha amiga foi assaltada. O garoto pediu o dinheiro, não ameaçou, não mostrou arma. Só olhou fixamente para ela, aproveitou a descarga de adrenalina e faturou 10 pratas. Espero que a moda não se espalhe, mas a abordagem é semelhante a dos beneficiários das “caixinhas”. Do jeito que eles falam, a gente se constrange e não quer passar por pão-duro. Deveria ser criada uma tabela de doações para as caixinhas e livros de ouro, pois fica difícil estabelecer quantias, já que o total, teoricamente, será dividido igualmente. Ou será que o responsável pela abordagem tem um percentual maior? Enquanto as dúvidas persistem, melhor é decidir se dou R$ 10, R$ 15 ou R$ 20 pro Livro de Ouro, lembrando também que carteiros, entregadores de revistas que não assino e garis atrasam, mas não tardam.

Do Multiply, em 01/12/2004.

Depois das férias

Devo ter cara de rica ou de otária. De otário, todo brasileiro tem mesmo. Afinal, o Contran ou seja lá qual for o nome atual do Detran Federal decidiu que a partir de março temos que fazer cursinho de direção defensiva para renovar carteira de motorista. E eu tenho que renovar a minha até maio.Já haviam inventado, pelo menos aqui no Rio, o exame médico pago. Dizem que é tão severo quanto o exame de visão que o Detran exigia antes. A gente olha umas coisas e diz que não enxerga nada. O médico carimba: APTO PARA DIRIGIR USANDO LENTES CORRETIVAS. Acabou.

Parece que o exame médico segue a mesma linha, me disse uma colega que renovou a carteira em dezembro.Eu já fiz o mais virtual dos exames de admissão em trabalho, uns bons cinco meses depois de estar efetivamente trabalhando para o governo estadual. O médico perguntou minha idade, meu peso e minha altura. Até aí, tudo bem. Mas quando ele perguntou se por acaso eu sabia qual era minha pressão arterial, achei abuso. Ele foi obrigado a pegar o aparelho de pressão e verificar quanto era a minha. Aí, se empolgou e resolveu auscultar coração e pulmão, testar reflexos, apertar meu estômago, essas coisas. Quando contei isso aos colegas, caíram na minha pele. Ninguém tinha sido auscultado ou ao menos olhado pelo médico. Mas certamente eles haviam chutado quanto tinham de pressão arterial...

É delicioso começar o ano sabendo que haverá mais uma boa despesa para o motorista. Já chegou meu IPTU – aumentou. O material escolar é de enlouquecer, mas tenho feito pesquisa entre os amigos que têm filhos de séries mais adiantadas e angariado livros. IPVA ... bem, isso é um problema menor que o monte de multas que preciso pagar. Multas salgadas, todas na estrada, por excesso de velocidade. Quase todas no mesmo trecho, na entrada para Búzios, na Rodovia Amaral Peixoto, onde repentinamente temos que reduzir a velocidade de 100 quilômetros para 50. Nunca dá muito certo. No meu caso, sempre dá errado.

Bem, esses são os dissabores de todos nós ao iniciar o ano da graça de 2005. Pior que isso é ser alvo de diversos pedintes que olham para mim e enxergam alguém de posses. Outro dia, eu ia parando numa vaga, apresentei o talão do vaga certa pro guardador que me explicou que ali era vaga de 2 horas. Mas como eu ia apenas sacar dinheiro no caixa eletrônico, era só deixar “o cafezinho, minha tia”. Arranquei, furiosa, com o carro. Se alguém do Detran escandinavo que se instalou nesta cidade me visse, certamente, me convidaria para aulas de gentileza ao volante. Ora, meu carro, se é que a gente ainda pode chamar o veículo de automóvel, tem 13 anos, eu estava vindo da praia com cinco moleques imprensados nos bancos. Por que cargas d’água eu iria cair no golpe do “cafezinho”? Só se eu gostasse de ser chamada de tia daquele malandro.

Hoje, conversando com uma amiga em frente ao Edifício Avenida Central, somos abordadas por um rapaz. Discurso típico do vigarista: “Caras jovens, desculpe-me interromper a conversa interessantíssima, já vi que o assunto é de alto nível e que vocês são pessoas muito cultas”... A sorte é que a Cíntia não tem meus pruridos e deu um corte rápido no chato, que, provavelmente, queria nos pedir dinheiro. Fiz eco à negativa de Cíntia e voltamos ao nosso papo realmente interessante sobre cinema dinamarquês moderno.

Este azedume todo tem sua razão de ser. Por duas semanas, fui dona de minha vida. Acordava cedo ... apenas para ir à praia cedinho. Enfiava a garotada no carro e encontrava amigos na praia. À tarde, com os adolescentes, cineminha, comprinhas, filmes no DVD ou na TV, estirada ao chão, ainda de maiô, cabelo salgado. O apartamento tinha dunas de areia, briga pra ver quem tomava banho primeiro, umas 300 crianças entrando e saindo de casa todos os dias, gente que eu nem sabia direito quem era indo dormir lá, gatas enlouquecidas, festa de aniversário, depois de uma ceia de Natal muito agradável e um reveillon divertido na Lagoa. Peguei um bronzeado de gente feliz, não senti nem dor-de-cabeça nessa quinzena em que o aborrecimento era desprezível porque no dia seguinte tinha mar gelado que ia esquentando por volta das 11 da manhã, biscoito Globo com mate, céu azul, água verdinha, pegar jacaré com a pirralhada.

Como é bom estar de férias no Rio de Janeiro!!!!!

Multiply, 18/01/2005

Livros, livros a mancheias

Como todos os leitores compulsivos tenho o hábito de ler diversos livros ao mesmo tempo. Abro um livro novo, leio dez páginas e empilho sobre outros volumes na mesinha de cabeceira. Vez por outra, pego um deles com uma tremenda sofreguidão para largar e agarrar outro, com pena do que já está à minha espera há tanto tempo... Lógico que, além dos empilhados, há um ou dois que leio direto até acabar.

Alguns desses livros, já me conformei, jamais serão lidos de uma sentada só. É o caso da "Louca da Casa", que arrasto desde outubro, lendo um capítulo aqui, outro ali. Tem também o "Backlash", da Susan Faludi, que enfeita minha mesinha, abaixo do "Stupid White Men". O morrinho atual tem ainda os "Contos Fantásticos do Século XIX", selecionados por Calvino, "As Deusas, as Bruxas e a Igreja", "O Álbum de Oscar Wilde", "Contos Alemães", "Contos Norte-Americanos", "Bella Toscana" e o mais recente, "Shakespeare and Company". O interessante é que consigo me entender com cada trecho esquecido, retomando de um ponto no qual parei há muito tempo, com uma memória fotográfica que falha na hora de chamar algum filho (troco o nome de todos) ou nos absolutos "brancos" que me acometem sempre que estou muito cansada.

Quando criança, lia e relia diversas vezes os mesmos parcos livros infanto-juvenis que tinha em casa, além de Monteiro Lobato, do Livro de Ouro da Mitologia, Dickens, Júlio Verne, "Os Meninos da Rua Paulo", a saga da família de Laura Ingalls Wilder e a finada coleção "Jovens do Mundo Todo". Como o mercado editorial brasileiro ainda não descobrira o boom da literatura para adolescentes, eu entrei precocemente na biblioteca de meus pais, caindo de amores por policiais, principalmente Hammet e o que tínhamos da Coleção Amarela. Meus pais eram sempre convocados quando alguém ia se desfazer de livros e haja espaço para amarelados Mistério Magazine de Ellery Queen, com páginas úmidas de fungo que me provocava crises alérgicas solenemente desprezadas por minha volúpia de leitora.

O fanatismo que tenho por ler e por livros certamente se originou de uma infância sem televisão. Filha única, com pai e mãe trabalhando fora, sem TV em casa, eu era realmente uma raridade. Lógico que eu via televisão nas férias, na casa da vizinha ou de minha tia. Mas qualquer tempo livre era preenchido com leitura incessante e compulsiva. Cheguei ao absurdo de ler "Metamorfose" aos 10 anos, interessada pela história do homem que virava barata. Quando toda e qualquer possibilidade lógica de leitura se acabava (não cheguei a enfrentar biografias de Lincoln e Napoleão, nem me interessei por "Treblinka" ou "Dachau", mas gostei muito de "Dillinger, o Inimigo Público Número Um", que falava de todos os gangsters dos anos 20), depois de haver traçado José de Alencar, Machado, Tchecov, Steinbeck e Scott Fitzgerald, eu caía direto nas enciclopédias - na parte histórica, claro -, num livro da Abril sobre a década de 60, na coleção da Seleções do Reader's Digest (nada melhor que, em férias chuvosas, ler aquelas compilações de romances, reunidas em gordos volumes encadernados), O Mundo da Criança e o glorioso Thesouro da Juventude.

Para reduzir meu fanatismo e melhorar enquanto pessoa sem muitas dívidas, entre minhas resoluções de ano novo está a de não gastar tanto dinheiro com livros, DVDs ou CDs. Em duas semanas comprei apenas um CD, 2 DVDs e onze livros, mas dois eram didáticos, então não contam. De qualquer modo, acho que a média está muito boa, já que cinco desses livros foram comprados em sebo e um era "A Mulher do Tenente Francês", que eu nunca li, mas adorei "O Colecionador", outro era de contos da Isak Dinensen e também tinha um da Doris Lessing. Alguns autores, como Tchecov, são indispensáveis e justificam qualquer despesa extra.

Hoje, entendo que, como um ser não-místico, despejei todo meu fervor no culto aos livros. Eu gosto de pegar um volume bonito, de sentir o perfume de páginas novas, de tê-los sempre junto a mim. Sair sem nada para ler é impensável. Vou ao supermercado e ao banco com livrinhos ou revistas na bolsa para me entreter quando a fila está grande. Sempre carreguei leitura para a praia e até para o cinema (para antes da sessão começar, claro). Não chegaria ao cúmulo de fazer como o melhor amigo de meu pai, que o enfureceu, durante um Fla-Flu. Desinteressado pelo que ocorria no campo, abriu "Os Dublinenses" em pleno Maracanã e leu até o fim do jogo. Foi com este tipo de gente que me criei. Não dava para sair muito normal...

ATT - Os livros, livros são semeados à mão cheia, no original de Castro Alves. Mas eu escrevi como falava em criança, imaginando mãos repletas de volumes com letras douradas vindo em minha direção.

De perto ninguém é normal

Meu pai era cheio de manias. Canhoto, não abria latas nem usava tesoura de alfaiate. Nunca aprendeu. Fez do descascar laranjas uma arte. Tirava a casca inteirinha, formando uma espiral, sem machucar os gomos, dos quais pinçava aqueles cabelinhos antes de comer. Isso levava muito tempo, mas era uma delícia admirar. Dele herdei a miopia, as alergias, os cabelos brancos precoces e milhares de manias. Uma vez precisei escrever um texto pra Cultura sobre idiossincrasias. Eu nem conhecia a palavra, fui perguntar pro Papai e acabei transformando-o no personagem da redação sobre aqueles estranhos hábitos que hoje são catalogados como sintomas de transtorno obsessivo compulsivo, o agora popular TOC.
Bom, o Papai guardava jornais. Muitos jornais, inteiros. Só permitia que a gente jogasse fora os classificados. Ficava chateado quando eu pegava fotos ou artigos sobre cantores de rock e cinema. Depois de um tempo, passou a recortar e me entregar o que pensava que eu acharia interessante e guardava a página com o recorte. Os jornais se acumulavam em pilhas escondidas sob as cortinas da biblioteca e do quarto dele. Houve época que eram armazenados dentro da banheira. Era moda no Rio ter banheira coberta por uma imensa taboa com fórmica e em cima enfeitar com perfumes, plantas e milhares de badulaques. Pois bem, quando se fazia faxina no banheiro, os jornais saíam e voltavam para dentro da banheira. Numa dessas faxinas, um filete de água ficou pingando. De madrugada, alguém entrou no banheiro e sentiu água no chão. O tampo da banheira flutuava sobre os jornais encharcados.
Papai ficou desolado. Mas não se rendeu. Pendurou os jornais no varal da área de serviço. Prendeu barbantes na sala e pendurou o resto dos jornais. Passamos alguns dias andando entre aquelas imensas bandeiras impressas. Eu me sentia como Gulliver numa festa junina na Ilha dos Gigantes. Secos os jornais, a papelada mudou-se para o alto de um armário no quarto de empregada. Quando se tornaram tantos que não havia mais canto onde escondê-los, foram deslocados para a casa de máquinas dos elevadores do edifício. Lá permaneceram por algum tempo, até que um síndico reclamou e foram vendidos pelos porteiros para o burro sem rabo da rua. Então, Papai voltou a formar pilhas atrás das cortinas e, aproveitando que eu me mudara, invadiu os maleiros de meu armário e as partes fechadas das estantes de meu quarto.
Papai morreu sem ler um único daqueles jornais. Também jamais usou blocos de lauda que trazia da redação para casa, pilhas de papel ofício das agências de propaganda em que trabalhou e cadernos de papel almaço do tempo em que ele ia à escola. Fazia bloquinhos de papel cuidadosamente retirados de maços de cigarro. Usava para anotações. Como quando eu era criança tínhamos o hábito de deixar secando o ossinho da sorte da galinha assada para quebrar no dia seguinte, passou a guardar todos os ossinhos da sorte que encontrávamos. Dava para montar um mamute de tanto ossinho que fechava em uma caixinha. Também guardava lápis usados. Cotoquinhos de lápis, tão antigos que a madeira já trincou e o grafite não escreve nada.
Por que o Papai era assim? Sei lá, ele tinha medo de trovoada também. Ficava em pânico quando chovia e trovejava. De repente, isso acabou. Naquela época, as pessoas tinham seus problemas mas não tentavam rotulá-los ou procurar respostas, desde que isso não afetasse sua vida social. Fora essas esquisitices, Papai era brincalhão, amável e festeiro. A casa vivia cheia de amigos, que conheciam e riam dessas doideiras do Papai. E ninguém ligava pra mania de arrumação de minha mãe, uma perfeccionista que criou um método para dobrar em forma de triângulo os sacos de supermercado aproveitados para lixo, e que, antes de jogar restos orgânicos na lixeira, embrulhava tudo em jornal – nas folhas de classificados, claro. Uma vez por semana, ela arrumava minha bolsa, guardando papéis em plásticos fechados com alfinetes de costuras, que me feriam os dedos e me irritavam profundamente. Me disseram, depois, que Mamãe também tinha transtorno obsessivo. Como os dois conseguiram conviver na mesma casa, sem grandes rusgas, por trinta e um anos?
Foi por causa deles que decidi não tentar me curar do pavor de barata, avião e altura que sinto. Continuo guardando fósforos queimados na caixinha de fósforos, organizando livros por ordem alfabética de autor e país de procedência (ficção), ou por gênero (de cinema, de música, de viagem, humorísticos, quadrinhos, filosofia, sociologia, biografia, policial, política, jornalismo), os CDs por gênero e ordem alfabética e as roupas nos armários por cores. Dou banho nas minhas gatas, que diariamente são limpas com papel umedecido para limpeza de bebês. E dobro os sacos de supermercado em forma de triângulo. Em compensação, vivo angustiada porque parei os álbuns de fotografias no batizado de meu segundo filho (tive mais dois bebês depois) e quem organiza minha bolsa, atualmente, é minha filha. Jogo fora jornais e tento me desfazer da papelada excessiva, mas, depois de um dia de expurgo, geralmente, pego umas sobras que não consegui classificar ou empacotar e fecho em um caixote comum de bugigangas.
Aquelas manias que me atazanavam a vida acabaram apenas como um registro saudoso de anos dourados.

do Multiply, 10/12/2004
Finalmente sou referência estatistica da violência! Meu telefone foi clonado! Na verdade, o telefone do trabalho que fica comigo. Quem mandou ser assessora de imprensa?

O aparelho de outra colega já havia sido clonado e ela previu que, depois de diversas ligações a cobrar de Uberlândia (por que Uberlândia?), meu telefone só receberia chamadas. Não deu outra. Mesmo com um novo aparelho em mãos, nada compensa a irritação em atender ligações a cobrar de gente que me perguntava, com a maior desfaçatez, qual era meu nome e de quem era o telefone. Recebendo amigos para a ceia de Natal, perdi a paciência e disse a um dos interlocutores que era melhor ele parar de me ligar, porque o telefone era de uma grande empresa e que seu número já estava anotado como suspeito de clonagem do aparelho. Desliguei tremendo, apavorada com a idéia de ele me localizar no Rio, pois os bandidos de Uberlândia devem ter ligação com os traficantes cariocas e virão todos atrás de mim, porque descobri o esquema deles.

Delírios à parte, vivemos tempos horrí­veis, em que até a natureza é furiosa e tresloucada, levando na enxurrada quem estava de papo pro ar ou ganhando muita grana com turistas em Phuket. Tive que ir ao Galeão no Dia de Natal, pegar meus filhos mais velhos, que vieram passar as férias comigo. Peguei a Avenida Brasil, temendo um tiroteio daqueles tão comuns na Linha Vermelha. Na Brasil, seguramente a mais pavorosa entrada de uma cidade no mundo inteiro, se ocorre uma dessas batalhas, a gente pode pegar um desvio entrando num bairro do subúrbio ou em alguma favela que não esteja participando do confronto.

Cheguei em casa, telefonei para Florianópolis para falar com a parentada. Um de meus primos sofreu um seqüestro relâmpago, foi levado por bandidos que queriam seu rádio, dinheiro, jóias (em Florianópolis ainda se usam jóias na rua. No caso do Leonardo, relógio e uma pulseira) e o celular. Ele estava chegando na casa da namorada e foi cercado por um bando. Cinco homens e uma mulher, todos fissurados por crack. Quis entregar o carro a eles, mas foi obrigado a dirigir até um fim de mundo qualquer da ilha e fazer dois cheques de R$ 25 para o traficante. Aproveitou um momento de descuido dos doidões para pegar o carro e fugir dos ladrões tão pés-de-chinelo que nem sabiam dirigir. E isso em Florianópolis, alardeada como a mais maravilhosa capital do País, com uma qualidade de vida que se esvai aos olhos dos moradores antigos. Estive lá em 2003, depois de uma ausência de 16 anos. As férias de minha infãncia e adolescência inteiras passei lá, ou melhor, se eu ia no verão, minhas primas vinham no inverno. Se eu ia pra lá no inverno, elas vinham no verão.

Foi ótimo enquanto durou. O sotaque dos catarinas acabou-se, abafado pelo paulistas televisivo que tomou conta da cidade. Os donos do sotaque fanhoso também invadiram a ilha, valoroso povoado de açorianos bravos, que enfrentavam aquele climinha infeliz do inverno (chuvinha e o maldito Vento Sul, o Minuano) e o calor inclemente do verão. Florianópolis, que meu avô só aceitou chamar por este nome na década de 60, tendo datado cartas de Desterro até então, era uma cidade muito interessante. Linda e com um povo engraçadíssimo, irônico, brincalhão, com mania de apelidar a todos os estrangeiros. Terra de pescadores e de grandes mentirosos, de gente muito friorenta e implicante, falando um português peculiar não apenas no sotaque, mas nas expressões que devem ter chegado com os açorianos, como “rapaz pequeno” para designar crianças pequeninas e “rapaz” para identificar meninos. Tudo com aqueles chiados e, sempre, na segunda pessoa. Atualmente, ainda há os que se traem no sotaque, mas os barrigas verdes da Ilha falam uma mistura de paulistês com lajeano. Além do falar caracterí­stico, modificaram a arquitetura da cidade, que cresceu verticalmente, totalmente copacabanizada. Pior que isso, virou quase uma Barra da Tijuca, com aqueles prédios de varandas compridas e estreitas, com andares de garagem, playground e piscina. A Lagoa da Conceição, onde havia poucas casas, hoje tem até aqueles centrinhos comerciais bonitinhos, iguais aos de Búzios ou Itaipava. As praias estão coalhadas de surfistas, mas parece que no inverno, eles ainda se retraem, porque é difí­cil suportar a chuvinha e o vento gélido.

É estranho voltar a um lugar uma geração mais tarde. É como conhecer uma criança e só voltar a vê-la adulta. À parte minhas recordações de outra Florianópolis, minha famí­lia se horroriza com a violência que lá chegou nesses 17 anos. Antes, eram apenas os argentinos que invadiram Canasvieiras e fizeram de Jurerê um bairro de mansões. Com o aumento do turismo, o tráfico se estabeleceu na cidade e deu no que deu. Já houve até tiroteio na rua de meu avô, onde moram alguns tios e primos meus. Em 44 anos de Rio de Janeiro, vi guardas dando tiros em Ipanema, fui assaltada bestamente duas vezes, dois de meus filhos sofreram assaltos, mas nada que se compare ao que meu primo foi submetido. Perto do que aconteceu ao Leonardo, discutir com a máfia da clonagem telefônica de Uberlândia é fací­limo. Que São Sebastião e Santa Catarina zelem por nós, mesmo os que não acreditam em divindades ou santos.

Multiply, 28/12/2004

Tesouro Perdido

Hoje é um daqueles dias em que eu quero matar minha melhor amiga! Somos tão amigas, irmãs mesmo que, durante um ano, tranquei móveis e eletrodomésticos na garagem da casa dela. Pois bem, a Danúzia tem mania de jogar fora coisas dos outros, mas se a gente vasculhar seu closet, vai encontrar uma calça cocota da Company e uma camiseta Hang Ten ou daquelas de Batik que todo menino espinhento usava quando a gente era garota, na década de 70. Mas ela não deixa ninguém ter seus badulaques em paz. Seu ex-marido, o João, é exatamente o contrário. Ele guarda tudo porque um dia pode ser útil. Por isso, me fez manter quilômetros de fios de telefone que um dia iriam ser úteis e, cinco anos passados, ficaram tão endurecidos até merecidamente conquistarem sua passagem para a lixeira. Assim como parafusos e porcas enferrujados, dobradiças que não se dobram mais, fios de nylon e tampas plásticas de lata de Nescau, que dão, cortadas, excelentes carrapetas.

Acho que viver por dez anos com o João fez a Danúzia ter horror ao armazenamento de objetos sem utilidade aparente. Quando fui buscar minha mudança na garagem deles, em Rio das Ostras, imediatamente, Danúzia se prontificou a ajudar a embalar a quinquilharia toda que eu tinha que trazer pro Rio. Tudo desculpa para dar um fim em minhas tralhas. E foi assim que eu perdi minha coleção de programas de cinema que guardei durante toda a década de 70. Eu tinha um bolão daqueles programinhas que a gente pegava na entrada, depois de entregar o bilhete pro moço da portaria. Na capa, sempre um cartaz de sucesso a ser lançado, como "A Superfêmea", com Vera Fischer, e "Os Homens que eu Tive", com a Darlene Glória rindo, cabeça pra cima, recebendo beijinhos ao pescoço de um deles, talvez o Arduí­no Colasanti, que estava no elenco. Também havia outros lançamentos na época, que não eram pornochanchadas, como um filminho inglês que eu adorava chamado “Melody”, sobre o namoro de duas crianças.

Bem, acabo de descobrir, lendo O Globo, que estaria muito bem de vida se, há sete anos, não tivesse jogado no lixo toda a minha coleção. Cada um desses programas é VENDIDO a colecionadores por até R$ 15. Eu guardava tudo na minha caixa de tesouros, na verdade uma caixa de sapatos com minhas outras coleções: doze bolinhas de gude, maços vazios de cigarro, caixas vazias de fósforo, uma foto dos Beatles com autógrafo impresso do Ringo Starr, minha entrada pro Rock In Rio I, noite seca, show do James Taylor e George Benson, meus dois cadernos de dedicatórias, e a coleção de chapinhas de garrafa de refrigerante com personagens de Walt Disney na parte interna (sim, já houve algo assim). De todos os tesouros, guardei a foto dos Beatles, a entrada do Rock in Rio e os caderninhos de dedicatórias. Se eu descobrir que alguém paga fortunas pelas chapinhas de refrigerante com figuras Disney juro que vou exigir indenização da Danúzia por me induzir a perder objetos de valor inestimável!!!!

Questões em frente do espelho

Como as nossas antepassadas vestiam aqueles maiôs que desciam pelo início da coxa, que a Esther Williams popularizou, com modelos de semi-short e ainda caminhavam?
Como nossas avós usavam corpetes e sutiãs imensos, cobrindo o seio inteirinho, e nossas mães calcinhas monstruosamente grandes, sempre com tecido de sobra dobrando sobre as coxas?
Como as mulheres da década de 60 se submetiam a esculpir os cabelos no estilo bolo-de-noiva?
Como essas meninas de hoje não conseguem vestir qualquer peça de roupa que chegue até a cintura?
Como é que essas modelos magrelas e mal-humoradas caminham um tempão com saltos da altura do Everest?
O que alimenta essas modelos magrelas e mal-humoradas?
Por que os óculos ridículos das velhinhas que atendiam nos Correios entraram na moda e no rosto de gente moderna, careca, que usa camiseta amarela com sapato cor-de-rosa?
Por que nunca tive um sapato cor-de-rosa depois dos oito meses de idade?
Por que os biquínis e maiôs perdem a elasticidade e ficam molengas, mesmo quando guardados sem sentir água do mar ou luz do sol?
Como eu consegui levar mais da metade da minha vida oito centímetros acima do que natureza determinou?
Por que até hoje não consigo voltar a caminhar sem algum salto?
Por que a gente compra tantos cosméticos se eles perdem a validade dentro do armário?
Por que a gente compra tanta maquiagem e mal passa um batom no dia-a-dia?
Por que acreditamos sinceramente que amanhã vamos começar uma dieta?
Por que a iluminação de provadores de loja e de banheiros no local de trabalho é planejada meticulosamente para revelar nosso excesso de peso e de cabelos brancos?
Por que o cabelo louro tingido na Segunda Idade sempre adquire um tom de pêlo do cocker spaniel?
Por que nenhum dos meus compositores favoritos lança um bom disco – ai, CD! - há muito tempo?
Por que toda a produção musical atual parece uma zoeira sem sentido, com ritmo mecânico feita pra gente feiosa dançar?
Por que a década de 80 só é lembrada como uma época de visual cafona, quando nossos amigos se vestiam em tons claros ou escuros com a maior discrição?
Quando foi que eu envelheci????????????
Acho que vou comprar uma melissa cor-de-rosa...

Do Multiply, em 26/11/2004

26.1.05

Arabescos

Finalmente, quem sabe, finalmente, estou abrindo um blog, com um título meio bobão. Servirá de back up pro que já jogo no Multiply, que sofre de desconfigurações irritantes e periódicas. Ou servirá mesmo para me exercitar fora daquele mundinho fechado e caloroso. Ou de nada servirá. A esta altura da vida, quem quer fazer diário público, exceto as crianças?
Agora fazer blog, postar, seja lá o que for, dá um trabalho pra mouro algum botar defeito. Minha mãe adorava dizer que havia trabalhado como uma moura. A brincadeirinha é porque nós somos Moura de nome. Mas eu me lembro também de um conto pavoroso A Moura Torta, provavelmente dos Grimm, falando duma mulher feia, manca, vesga, que ia acabar bem e feliz com um príncipe rico, lindão, que desfazia o encanto que a transformara na moura torta. Então, esta Moura nem tão torta assim vai continuar mourejando pra postar e se entender não apenas com a linguagem, mas com o veículo.
A escolha do modelo já deu trabalho. É verdade que eu gosto muito de laranja e amarelo, mas fiquei encantada por este visual aristocrático. Afinal, sob a moura batalhadora existe uma aristocrata rural inglesa, que adoraria sentar-se à escrivaninha com diáfanos vestidinhos apropriados para sentar-se à escrivaninha e escrever cartas aos amigos. Então, esta escrita rude é carregada em uma embalagem bonita e clássica. É como se Sophia Loren vivesse dentro de Grace Kelly ... Sou uma moura da estirpe do Otelo (espero que não tão vaidosa e autocentrada, nem tão absurdamente pouco confiante em quem me ama) ou daquele que cortou um lenço de seda com uma cimitarra pro El Cid. Creio que era Saladim. Meus mouros são guerreiros sem sangue nas mãos. O sangue fica nas cimitarras (amo o som aspirado e sensual das palavras originalmente árabes ou das que usamos para descrever os árabes e seus artefatos).
Com salamaleques, partilharei minha visão das areias da muy leal São Sebastião e sobre quem as pisoteia.

Alguns verões e muitas quedas

As calçadas do Rio de Janeiro têm uma função específica na construção do caráter carioca. Irregulares e esburacadas, elas obrigam boa parte da população a esquecer a arrogância e aceitar humildemente a realidade: somos falíveis e estamos sob o risco constante de uma queda desmoralizante.
Eu, dotada de um esqueleto programado para suportar até uns 80 quilos e que atualmente carrega a envergadura de duas pessoas adultas, sou freqüentemente vítima das arapucas montadas pelo descaso público com essas calçadas. Desde criança caio à toa. Quando não se falava em tendinite, um ortopedista decretou que eu sofria de “tendões fracos” e me enfiou em botinhas ortopédicas pavorosas para os padrões da época (hoje, seriam um sucesso em qualquer festinha rave ou no meio gótico) que só serviam para eu ameaçar com pontapés as meninas que riam de meus calçados. Tempos depois, outro ortopedista me livrou daquela tortura, receitando palmilhas ortopédicas que aliviaram o meu caminhar e reduziram minhas quedas.
Mesmo assim, continuei aos trancos ainda que fora de barrancos. . Os tombos independiam de estar com saltos altos, baixos ou descalça. Eles aconteciam. Destrambelhada, consegui tropeçar numa prancha de surf andando na areia dura do Arpoador. O surfista se embolara numa onda, a prancha parou no meu tornozelo. Mancha roxa e amarela por duas semanas. Um vexame histórico num dia lindo, céu azul de inverno, mar límpido. Entrei na piscininha toda garbosa, jogando charme para uns garotos e caí de cara no chão, torcendo o pé em algum morrinho de areia imperceptível. Passei o resto da manhã pegando jacaré na água, claro.
O mais glorioso dos tombos na orla foi a costumeira embolada numa onda em dia de ressaca. Ninguém tinha coragem de dar um mergulho. Eu, ipanemense desde o segundo dia de vida - nasci em Santa Teresa -, criada naquele trecho do Oceano Atlântico, aceitei o desafio de encher alguns copinhos de mate (eram de papelão, então) com água do mar e trazer para as dondocas amigas. Cheguei na beira, ouvi um rugido. Era quase uma tsumani, daquelas que vem tragando o que estiver na frente, qual avalanche. Firmei os pés na areia e esperei o tranco. Fui derrubada por outros banhistas e me lembro perfeitamente da ridícula posição já conhecida de pés pro alto, vendo o sol debaixo da água e sentindo a areia entrar pelos ouvidos e narinas. Só consegui parar ao bater com o rosto em uma perna. Me arrastei, um olho fechado e os copinhos de papel, miraculosamente, ainda nas mãos. A onda havia varrido toalhas, barracas, cadeiras, chinelos. Todos corriam atrás de seus pertences. Crista baixa, fui mergulhar, encher os copinhos e tirar um pouco da areia que transformara minhas melenas escorridas em dreadlocks de rastafári. Ao retornar para a areia, no meio daquele apocalipse, me deparo com um abobado olhando pra mim. Com o olho que estava bom (ainda não sabia que havia cortado a pálpebra, que adquiriu tons amarelos, azuis e roxos por duas semanas) percebi que algo andava errado com meus trajes. A parte superior de meu maiô cobria... meu ventre. Arrumei a roupa, encarando bem o idiota, o único fascinado com o lamentável espetáculo naquele cenário de filme catástrofe, e passei por ele com cabeça erguida. Enxergando pouco, mas de nariz em pé.
Era para eu já ter aprendido a não despencar a qualquer desnível de cimento pela frente. Impossível, pois a queda é sempre imprevisível. Ao vexado resta o consolo de imediatamente após o tombo surgirem pedestres solidários e solícitos para alçá-lo do chão, enquanto perguntam: “Está bem? Machucou muito?”. Também há os que consolam: “Essas calçadas são umas porcarias, todas esburacadas”. E os experientes: “Eu caí anteontem aqui mesmo. Um absurdo essa Prefeitura não fazer nada”. Os que clamam por vingança: "Se fosse num país decente, você ia pra justiça e ganhava uma nota!"Parece que as quedas têm o propósito de quebrar nossa empáfia quando andamos pelas ruas como se desfilando em passarelas. Outro tombo marcante levei em plena Travessa do Ouvidor, quase em frente ao Pixinguinha. Contabilizando os estragos – palma da mão lanhada, calça novinha de linho desfiada -, fui socorrida por uma amiga, que imediatamente me perguntou se eu havia machucado alguma coisa. “Nada além de minha dignidade”, respondi.
Atualmente, nem ligo mais pra dignidade. Durante a queda, já vou avaliando o terreno para ver em quê vou me apoiar. Hoje, por exemplo, eu estava tão atenta ao calçamento da São Clemente (na frente de cada prédio, uma decoração diferente: pedras portuguesas, cimento mesmo, tudo imitando marolas ensandecidas num maremoto) e, repentinamente, me vi a caminho do chão. Só pensava se minha decotada blusa se comportaria adequadamente e o quanto era bom eu estar de calça comprida – mesmo que branca – naquela hora. Já sobre a plataforma do sapato, me lembrei de uma charge da Mulher Maravilha no finado caderno Mulher do JB, editado pela Sônia Biondo. Na linha de apoio, a pergunta: “Como alguém pode salvar o mundo vestindo este tomara-que-caia?”. É, por superar tantos percalços nas searas do Rio a alma feminina carioca é intensa, altiva e maleá¡vel como o doce balanço do mar.

PS - Ao caçar fotos para ilustrar este texto, verifiquei reclamações generalizadas de cadeirantes contra o péssimo estado das calçadas cariocas, algo que a gente não pode deixar de registrar. Se à maioria da população cabe o perigo iminente de cair, os cadeirantes, assim como deficientes visuais, mal conseguem se deslocar nas tortuosas e torturantes calçadas da cidade.
Multiply, 16/12/2004

A culpa é da imprensa

Não preciso subir o Aconcagua nem fazer bungee jump para sentir emoções fortes. No Rio, diariamente, sobrevivo a um assalto, uma bala perdida, um atropelamento, um arrastão. Convivo com a paranóia. Dirijo defensivamente, ou seja, com uma boa velocidade, parando nos sinais a uma distância razoável do carro da frente, a fim de ter uma margem de manobra no caso de precisar deixar rapidamente o local, mas o mais encostada possí­vel do que está ao meu lado para impedir a passagem de algum assaltante.
O carioca virou um estrategista. Meu amigo-irmão Eduardo Graça, que foi viver em Nova York, visitando o Rio disse que só nos Estados Unidos percebeu como caminhamos olhando de esguelha para o lado e virando a cabeça pra trás. Na verdade, precisaríamos ter espelhos retrovisores para acompanhar a aproximação de elementos suspeitos.Outro dia, no Rebouças, peguei um pequenino engarrafamento. Imediatamente comecei a bolar planos de fuga, verifiquei onde estavam dinheiro e os documentos, pronta a entregar a bolsa se houvesse um arrastão. Não era nada, era trânsito mesmo. Tornei-me um ser de raciocínio rápido, sempre em estado de alerta.
Naturalmente, muitos dizem que “não é bem assim, a imprensa exagera” . Mas não é necessário exagerar. Meu filho foi assaltado no ponto de ônibus vazio por dois pivetinhos. Entregou-lhes o dinheiro da passagem e saiu andando depressa, refugiando-se no Escadaria Shopping com medo de estar sendo seguido. Ele tem 12 anos, o irmão mais velho já havia sido assaltado na padaria, em frente de casa, aos 9. Aí­, tem sempre quem diz: “Poxa, com 12 anos, deu bobeira!”. Ninguém mais tem direito de ser despreocupado aos 12 anos. Nem aos 9, nem aos 20, nem aos 50. O jeito é ensinar as táticas de sobrevivência na selva urbana para nossas crianças. Jamais andar sozinho. Dar tudo o que o ladrão pedir. Não bancar o valente, pois o outro pode estar armado. Sair vivo da situação.
O primeiro assalto que sofri foi quando eu tinha 29 anos. Estava parada num sinal em Copacabana, na saída do túnel da Tonelero. Veio um garotinho e me pediu o dinheiro. Distraída, achei que era esmola que ele queria. Quando entendi, ainda pensei em fechar a janela do carro, mas, pelo retrovisor, vi que ele tinha um parceiro, encostado mais atrás. Passei o dinheiro, a aliança e fui para casa chorando, depois de afiançar ao gurizote que ficaria quieta (ele me ameaçou “passar a faca” se eu fizesse escândalo). Em casa, meu então marido me repreendeu por estar de janela aberta. Dei um chilique, fiz discurso sobre meu direito de andar de janela aberta.
Hoje, sei que aquele tempo (uns 15 anos atrás) ainda era pré-colombiano - de Colômbia, não Colombo - , bem distante da realidade de Medelin ou Bogotá. Não sei quantas pessoas são mortas todos os dias nessas cidades, nem quantas morrem no Rio por marcarem bobeira nos sinais, nos ônibus, nas ruas. Sei que para proteger meus filhos, eu os crio quase dentro de uma redoma. Aos 9 anos, convenci minha mãe que era perfeitamente capaz de ir para o colégio sozinha, sem saber que, durante algum tempo, Maria, que me criou desde bebê, me seguia, às escondidas, pela Visconde de Pirajá até a escola. Conquistar a liberdade era difícil, em 1970. Atualmente, minhas crianças, mais velhas que eu naquela época, são levadas de ônibus ou metrô para a escola e têm a rotina completamente monitorada por mim, através de telefonemas constantes. Não porque eu queira sufocá-los, mas porque não dá para nos tranqüilizarmos sem saber se eles estão em segurança.
Mesmo temendo o assalto nosso de cada dia, fiquei pasma ao ler duas colunas de protestos de leitores do Globo, hoje, contra a postura do jornal de publicar fotos de um assaltante provavelmente esmurrado por policiais depois da prisão. Não havia um só e-mail ou carta de indignação porque o ladrão, preso em flagrante, apanhara da Polí­cia. Que o assaltado se revolte e até agrida o assaltante, é compreensível. Aplaudir um Estado que agride o transgressor, sem qualquer julgamento, é muito perigoso. Esta é a forma como, certamente, pensa o soldado americano que assassinou um iraquiano ferido e desarmado, como mostra o mesmo jornal na primeira página de hoje.
Mas, claro, nos dois casos - o daqui do Rio e o lá no Iraque - a culpa é da imprensa, por mostrar a covardia e a barbárie das quais são capazes tantos seres humanos.

Do Multiply, em 17/11/2004

Onze anos esta noite

Hoje minha filha completa 11 anos de exuberante alegria. Júlia me surpreende por continuar infantil e serelepe num mundo erotizado que transforma menininhas em ninfetas. Como vivo às voltas com projetos de combate à prostituição infantil e de apoio a comunidades carentes para evitar o ingresso de crianças no tráfico de drogas, Júlia é meu recreio, meu intervalo para ter esperança na beleza do mundo.
Mesmo alheia à complexidade dos problemas da cidade, sua geração, mal protegida por grades, estudando em colégio experimental (acho ridículo chamar de experimentais escolas que trabalham com ensino há 35 anos, como é o caso da Edem, onde meus filhos estão), é muito menos alienada do que pensamos. Convivem com bolsistas menos favorecidos economicamente, com outras crianças que têm problemas de saúde e aprendem a encarar as diferenças como parte da vida. Ao mesmo tempo, a consciência sobre a violência urbana e a falta de questionamento sobre as táticas de defesa são inerentes ao amadurecimento deles. Estou criando uma medrosa, que não dispensa a companhia de um adulto para ir ou voltar do colégio e que se prende à infância, moldando bonequinhos em massinha colorida, enquanto se sente segura perto de uma mãe neurótica com a guerra urbana.
Minha manicure tem 32 anos, é criada e nascida na Rocinha, de onde quer sair a cada batalha entre traficantes. É a única pessoa que conheço que carrega uma bala no corpo. Há anos, levou um tiro na perna e os médicos acharam melhor deixar o projétil no local, pois ele não, nem interfere nos movimentos, o que poderia ocorrer se fosse retirado. Ela é uma das pessoas mais adoráveis que conheço e está sempre de bom astral, embora tema constantemente perder sua casa e seus pertences. Conta que é considerada “muito besta” por suas ex-colegas de colégio, pois completou o Segundo Grau e não engravidou adolescente. Fez um curso de manicure e foi à luta, consciente de que não adiantava tentar vestibular para faculdades que não conseguiria acompanhar nem pagar. Seu sonho é aprender corte e costura para diversificar seu campo profissional. Por questão de segurança, não posso escrever seu nome. Não tem amizade com o pessoal do tráfico, embora conheça muitos desde criança. Algumas de suas amigas fazem questão de cumprimentar os soldados, enquanto ela passa direto, apenas meneando a cabeça quando inevitável. Teme o poder dos traficantes, curva-se à lei do silêncio, mas jamais pediu que lhe comprassem um remédio. Quando foi atingida pela bala perdida, na porta de um boteco da favela, emissários dos traficantes a procuraram para saber se precisava de ajuda. Agradeceu, mas recusou o oferecimento. Só não deixa o morro porque o marido não quer pagar aluguel e morar distante do local de trabalho.
A caixa da padaria mora no Vidigal desde que nasceu, 22 anos atrás. O pai quer voltar para o Nordeste, de onde saiu há três décadas, pois fica estressado cada vez que chega do trabalho e precisa esperar que a Polícia libere a entrada em casa. Não posso revelar aqui o nome da moça, que, como minha manicure, teme o longo braço da lei dos mais fortes. Não é absurdo que duas mulheres batalhadoras, trabalhadoras tenham que se esconder sob o anonimato porque vivem em locais onde o Poder Público se omitiu? Não é absurdo querermos proteger nossos filhos a ponto de quase sufocá-los com tanto cuidado? Não é absurdo esses mesmos filhos nem questionarem o direito à liberdade, a deixar a barra da saia da mãe por temerem os perigos da rua? Hoje é o Dia de Combate à Violência contra a Mulher, violência doméstica, acobertada pela omissão pública, que culpa a ví­tima pelo que sofre. Tem ainda a violência contra nós todos, os que se escondem atrás das grades, as empregadas domésticas "aconselhadas" a usar o elevador de serviço, os negros que precisam se identificar aonde quer que entrem, os homens explorados que trabalham em jornadas cansativas sob o sol sem receber hora extra.
E hoje deveria ser apenas o dia de comemorar o aniversário da Júlia.

Do Multiply, em 25/11/2004

Resistência

Apesar de minha resolução de não fazer daqui um espaço de ocupação diária, estou na fase de encantamento com a novidade e meio que enamorada da cidade. O Rio tem dessas coisas, a gente vive se apaixonando por alguns cantos, estimulando-se para não abandonar essas praias e todas as mazelas dos arredores.
Sair de casa e ver o mar deveria encher a gente de ânimo diariamente, mas acabamos nos acostumando aos cartões postais com que nos deparamos a cada instante. Vivo num dos mais feiosos bairros da Zona Sul, Botafogo, caótico, tortuoso e sujo, a ponto de eclipsar a maravilha que é ter a Praia e a Lagoa (não há como imaginar o Humaitá como bairro independente. O Humaitá pertence a Botafogo, da mesma forma que o Bairro Peixoto é de Copacabana).
Todos os dias saio de casa e pego o engarrafamento da Rua das Palmeiras por uns bons dez minutos. Ali, coração levinho, cabelos molhados, fico me distraindo com os homens que descarregam o caminhão de verduras, frutas e legumes para o Sacolão da Voluntários, vendo o guarda que conversa com o rapaz que passeia com um imenso pastor inglês que tem a maior pachorra do mundo para sentar-se na calçada enquanto os outros batem papo. Entro na Voluntários, chego à Praia de Botafogo, confiro se o Pão de Açúcar está encoberto, os barcos na enseada, contorno o Morro da Viúva, fico no sinal da Praia do Flamengo em frente à Paissandu, sigo e só vou parar novamente na Praça Paris, invadida por uma equipe de filmagem que montou tendas coloridas entre os canteiros, expulsando a turma das caminhadas para um cantinho.
Tudo azul, apesar do dia nublado e abafado, até que me deparo com o Homem da Sonda Urinária. Como todo o bom carioca, tenho meus pedintes preferidos e o Homem da Sonda Urinária não está entre eles. Eu gosto e sempre dou um dinheirinho pro pessoal das cadeiras-de-rodas, principalmente para um moço que fica em Copacabana, na esquina da Praia com a Francisco Sá. Às vezes ele vai pra Miguel Lemos com Barata Ribeiro. Ele é um amor e quem vai empregá-lo, coitado? O Homem da Sonda Urinária eu conheci há quase um ano na Praia do Flamengo. Fiquei chocada, achei que era Mundo Cão demais, que alguém tomaria alguma providência, mas... o sujeito continua com a sonda urinária à mostra, mas, felizmente, encobre o local de onde sai a urina. O que me leva a pensar: 1) não tem sonda nenhuma, ele bota urina no pote de soro cortado e carrega com ele; 2) ele é doente mesmo e ninguém dá a menor atenção; 3) mesmo que seja uma encenação, é horrí­vel alguém se submeter a tal vexame porque não há emprego, saída ou condições de vida digna neste País.
Sempre escapo do Homem da Sonda Urinária, que já encontrei na Cidade Nova e, agora, na Glória, fronteira com Passeio/Lapa. Não dou dinheiro a ele, preferiria comprar balinhas do rapaz que tem um olho torto e já conquistou clientela naquele ponto. Também corre atrás da sobrevivência com seu colar de balas, arrumadas por cores e tamanhos, numa composição plasticamente agradável. Chego à Lapa pensando no Homem da Sonda Urinária, no sistema de castas em que vivemos e, na Praça dos Arcos, um grupo de meninos-de-rua joga bola, com coletes verdes e azuis, orientados por educadores, provavelmente da São Martinho. Indiretamente já trabalhei com meninos-de-rua, bem menos do que minha culpa judaico-cristã recomendava. Ver o pessoal que insiste em procurar um caminho pra nossos Olivers Twists contemporâneos, sem mostrar algum milagre romãntico-literário como o que Dickens criou para seu menino mais de 100 anos atrás, dá algum alento para levar adiante uma semana em que a disputa de Bush e Kerry ganha mais páginas de jornal que balas perdidas ferindo gente na frente do Piranhão. Hay que ser Pollyana e não perder a ternura jamais para continuar resistindo no Rio.

Do Multiply, em 26/10/2004

Ouro, incenso e mirra

O trânsito está enlouquecedor porque dezembro vai chegar, trazendo com ele a esperança de que, findo este ano, a vida melhora. A gente embarca na propaganda da felicidade comercial natalina e dá-lhe comprar porcaria, rezando para que o infeliz a recebê-la não tenha gastado muita grana com o que vai lhe empurrar.
O que já ganhei de leques de madeira chineses e nécéssaires absolutamente desnecessárias ... Uma de minhas tias passou dez anos me entregando dois pares de meias-calças em todos os aniversários e natais. Por dez anos, ganhei 40 meias-calças! Presente mais besta, meia-calça, não? A bisavó dos meus filhos chegava, solenemente, com embrulhinhos feitos em casa de paninhos de crochê azuis, creme ou rosa bebê, sempre afiançando que só gostava de dar presentes verdadeiramente úteis. Os paninhos serviriam para cobrir bandejas, cestas de pão ou bolos. Sempre me vinha à cabeça a máxima de minha mãe: “Papel higiênico é útil, presente tem que ser uma alegria”. Armava o sorriso compreensivo, como se ouvisse uma revelação da velhinha, agradecia com a maior falsidade e armazenava os paninhos num canto de gaveta, de onde eles só saíram quando minha filha precisou de cobertores para as bonecas.
Não que eu seja muito generosa em meus presentes de Natal. Tentei, por anos, ser original, comprava vasos de planta, velas, jogos americanos, CDs, paninhos decorados com motivos natalinos. Minha mãe, todos os anos, invariavelmente, começava a embrulhar presentes no fim de novembro. E, religiosamente, até o dia 24 de dezembro, trocava todos os destinatários dos presentes. Era parte da tradição natalina vê-la com todos os presentes em cima da cama, passando etiquetas de um para outro.
Isso tudo acabou com a morte de minha mãe. A obrigatoriedade de comparecer a um almoço chato (a família é tão idosa e estranha que festejava o Natal com um almoço), seguido por uma troca de presentes ordinários e por momentos de terapia grupal freudiana de idosos que falavam mal da mãe morta acabou, felizmente. Mas, com quatro filhos e uma “família” de amigos, não há como escapar das obrigações natalinas.
Confesso que adoro paramentar a casa para o Natal. Sou praticamente uma Xmas victim. Se houvesse mais festas que me obrigassem a mudar a decoração de casa, eu ficaria muito feliz. Mal chega dezembro e eu já estou armando árvore, montando dois presépios, pendurando painéis com papais noéis (tem um de uma mulher jogando neve na cidadezinha que é de minha infância, tenho paixão por ele), colando cartões de Natal nos portais, enfileirando casinhas com anjos, pregando meias nas paredes, cordões de bolinhas, luzes, tudo o que é possível e que as gatas não destruam (haja esperança!).
A verdade é que eu nunca acreditei em Papai Noel, porque meus pais eram pessoas modernas, antenadas e não queriam que eu crescesse uma burguesinha idiotizada. Cresci frustrada, pois sempre soube que não havia coelhinho da Páscoa, nem Cuca, nem Bicho-Papão. Meu pai contava que eu ficava de olho comprido pros Papais Noéis de loja, mas nunca tirei fotografia no colo de nenhum deles. Então, quando tive filhos, montei todo o aparato cinematográfico necessário para envolvê-los na magia hollywoodiana natalina, apesar de meus pais protestarem que tudo era jogada comercial popularizada pelos filmes americanos. Agora que meus filhos são grandes, sem desculpa de criar um ambiente mágico para as crianças, assumo: gosto da casa toda vermelha e verde, de ver aqueles filmes pavorosos, com mensagens melosas (“A Rena do Nariz Vermelho”, “A Verdadeira História de Papai Noel”, “Meu Papai é Noel”, “Milagre na Rua 34”, “Um Segredo de Natal”, “Uma História de Natal”, “O Natal da Família do Chevy Chase”), de me entupir de rabanadas e de, eventualmente, ganhar presentes que jamais utilizarei.
Mas além de planejar a festa de Natal em minha casa, tenho que me atirar ao planejamento natalino, montando intermináveis listas de presenteáveis e dos simulacros de ouro, incenso e mirra que ganharão. Aos porteiros, camisetas ou camisas pólo, embora todos preferissem dinheiro, claro. Antes, ganhavam garrafas de vinho ou o peru do Dr Roberto, do Dr Ary ou do Dr Brito (as cestas com chester natalinos, vinhos gaúchos, uma caixa de passas e, às vezes, uma posta de bacalhau que o Globo, o Dia e o JB davam para os funcionários no fim do ano). Como dois dos porteiros se tornaram alcoólatras, optei pela fatiota natalina. Para a manicure, a faxineira, a irmã da empregada, a prima da empregada e a amiga da empregada, toalhinhas com motivos natalinos, não, isso foi o do ano passado. Vamos pra loja de 1,99 catar cumbucas e bandejas fabricadas na China ou na Tailândia por crianças escravizadas. O pai das crianças vem visitar, não conseguirei escapar do presente pra ele, embora o pão-duro nunca tenha me dado nada depois da separação. Tem os avós das crianças, os padrinhos das crianças (são oito: quem mandou ter quatro filhos?), mais os compadres, mais quatro afilhados, mais o carteiro, o lixeiro, o entregador de jornal, a caixinha do pessoal da papelaria ao lado de casa, que me entregam os livros pelo muro do edifício, ... Desisto da lista, quando dezembro chegar eu penso, enquanto calculo como vou atender aos pedidos picaretas que me chegarão e aos que têm real necessidade de ajuda, como a APAE de Nova Iguaçu, o berçário de HIV do Gaffrée e Guinle, Associação dos Cegos, Campanha da Fome do Betinho, crianças do INCA. Ao mesmo tempo, penso se o 13º será utilizado para pagar continhas atrasadas.
Melhor correr com dezembro e chegar em janeiro para comprar material escolar, pagar novo IPTU, novo IPVA, preços mais altos no supermercado, depois que acaba a época de movimentar a economia no shopping center mais próximo.


Do Multiply, 23/11/2004



25.1.05

Minhas vidas sem mim

Sempre me considerei espécime único. Quando criança, por ter nome de velha – toda Olga é neta de alguma Olga – só conheci uma xará durante os 14 anos de colégio e 4 de faculdade. Mesmo assim, a outra olga era Olga Cristina. Na adolescência, fui muitas vezes chamada de Olga Korbut, uma ginasta russa antecessora da romena Comaneci, anos luz antes da Diane. Havia mais quatro olgas referenciais: uma jornalista da Cláudia ou Casa e Jardim, Olga Krell, se não me engano, Olga Benário, “a mulher do Prestes que Getúlio mandou pro campo de concentração grávida”, conforme repetia minha mãe, uma tia avó, e, finalmente, minha terrível avó Olga.
Normalista, era chamada pelos aluninhos de Alga. Com o lançamento do livro “Olga”, passei a ser reverenciada por todos os comunistas conhecidos aos quais explicava que meu nome homenageava minha avó. A admiração pelo nome voltou com o filme e várias vezes tenho que informar a origem de meu nome.
Adulta, comecei a topar com olgas, algumas delas jornalistas, como Olga Curado, subeditora da Nacional do Globo quando eu era foca da Geral. Sabia da Olga porque ela dava uma risada estridente e muito característica, silábica, que era acompanhada por toda a redação. Ela começava “Há-Há-Há” e ia subindo o tom, enquanto o jogral engrossava o riso dela, que aí então é que ria mais ainda. Meu primo Sérgio se casou com uma Olga. Não deu certo. Eu também me descasei de um Sérgio, mas isso é outra história.
Bem, Olga não é um nome único. Mas Olga de Mello deveria ser. Não é. Não é mesmo. Bem que minha mãe queria que eu fosse Olga de Borba Moura Mello. Mamãe era Borba Moura. Meu pai, Mello, apenas. Coisas de catarinense. Ninguém na família dos meus avós tinha dois sobrenomes. Minha avó Júlia, que era Vieira e Lobo, ficou apenas Júlia Maria de Mello. Meu avô, Antero Antônio de Mello. Os filhos, portanto, só receberam o sobrenome Mello.
Lógico que Papai jamais teria homônimos, pois chamar-se Alinôr torna alguém quase único. Mas ele poderia ter sido mais generoso ao me registrar, dando mais alguns sobrenomes à filha. Além de consagrar-me aristocraticamente, não me traria surpresas ao vasculhar a Internet. Uma amiga resolveu procurar matérias minhas na Web. Digitou Olga de Mello e foi aí que descobrimos que eu ... fui professora de francês e tive um filho em 1922; tenho um neto engenheiro; sou mãe de uma jornalista paulistana; trabalho num órgão de informação sobre estrangeiros do governo federal; fui uma dona-de-casa indignada ao ser obrigada a aguardar a chegada da Polícia para entrar em uma agência bancária assaltada, em Joinville; e, finalmente, morri, en la paz del Señor, em 1º de março de 2003, deixando mis hijos Matilde Isabel, Miriam Lilyan, Vicente Ubaldo y Luis César Tapia e mis nietos, bisnietos y demás familiares con profundo dolor, em Montevidéu, tendo sido sepultada em um cemitério que tem estacionamento próprio, conforme informa o anúncio que a família consternada publicou.

E eu que me achava a única Olga de Mello.

Do Multiply - 21/12/2004

Achados e perdidos

Vivo perdendo coisas. No tempo em que fumava, eram isqueiros e caixas de fósforos. Parei de fumar e dei de perder até carteira de identidade. As chaves não perco mais, desde que juntei tudo - de casa, do carro, da portaria, da gavetinha - num chaveiro escandaloso, coalhado de fitinhas do Senhor do Bomfim. Perco pulseiras, que tiro do braço para batucar no teclado, óculos escuros, que abandono no balcão de farmácias, compras no supermercado - nem sempre a moça da caixa grita "Se-nhôôôn-ra" para que eu volte, avexada e pegue a sacola - , dinheiro que jogo no buraco negro que é minha bolsa e jamais vejo outra vez (mas até desconfio, pode haver uma coleta seletiva de moedas por meus filhotes...). Guarda-chuva não conta, porque guarda-chuva, como diz um amigo meu, deveria ser considerado meio circulante, já que todos perdem e alguém deve encontrar em algum momento, claro.

Nada me deixou mais chateada do que, há cerca de dois meses, esquecer o livro "O Corpo e outras histórias", de Hanif Kureishi, num táxi. Estava tão preocupada naquele dia que, ao sair do carro, não fiz o check-in feminino habitual (bolsa, echarpe, óculos escuros, sacolinha com o tupperware de almoço, agenda, celular, garrafinha de água, circulares do colégio das crianças, livro, jornal, revistas). Cinco passos depois, me lembrei do livro. Por alguns dias, tive esperança de que o motorista voltaria e me entregaria o livro, do qual só havia lido o primeiro conto. Dentro do livro, claro, havia deixado a circular do colégio e uma conta de condomí­nio a ser paga. Tinha meu endereço ali e...
O tempo passou, pensei até em comprar um novo "Corpo", mas preferi deixar para fuçaar em algum sebo, pois R$ 43 não é uma quantia tão desprezí­vel assim. Ficava olhando um outro livro do Kureishi, o "Intimidade", solitário, azulzinho, sentindo falta do verdinho (tanto em leitura quanto em capa) "Corpo". Pois não é que ontem, num fim de tarde de domingo modorrento, toca o interfone e meu porteiro diz que "o moço do táxi deixou mais cedo um livro aqui pra senhora antes". Fiquei tão feliz e fui pegar meu "Corpo", que voltou sem folheios de outros leitores, mas um pouquinho sujo e com perfuminho de fraldinha de neném. Imagino que ele tenha ficado guardado junto com pacotes de fraldas também coletadas pelo motorista de táxi, que deixou um cartão com seu telefone e nome - Artur, como meu primeiro herdeiro, gentil como um cavalheiro medieval e carioquérrimo, do jeito que a gente quer que todos os cariocas continuem sendo.
Muito mais que o livro, me foi devolvida a sensação de que a gentileza ainda é uma caracterí­stica carioca.

Primeira incursão multiplyana, em 25/10/2004

This is my world, Mr Anderson!

Sou tatibitati em internet. Apesar de gostar de conforto, estou a cada dia mais tentando me afastar da tecnologia ou do tecnologicratismo em que vivemos atualmente. O que, vamos convir, dificulta minha vida um bocado na hora em que me encanto com a possibilidade de ter um cantinho no universo virtual. Como não tenho secretária eletrônica nem levo celular pra praia ou pra Lagoa, parece que todos os demais instrumentos de comunicação, em solidariedade, me deixam na mão testando minha capacidade de viver sem os grilhões tecnológicos.
Há tempos decidi me render ao que não tenho como controlar. O telefone de casa funciona quando quer. Às vezes, chamo a Telemar, outras vezes um técnico. Aí­, o aparelho trabalha a contento por algum tempo. Depois, começa a ratear - ou é a linha que some, a campainha que não toca. Ninguém consegue falar comigo, eu troco o aparelho - sempre com fio, dos sem fio já desisti no século passado - e as comunicações voltam à normalidade, pero não por muito tempo. Também me conformei jamais contar com campainha na porta. Há 18 anos penduro avisos manuscritos nelas em dia de festa, sempre com os mesmos dizeres: "Favor bater à porta. Campainha não funciona". Teve um tempo em que era só apertar a campainha que a luz da sala de entrada acendia. Os fios estavam todos embaralhados no mesmo condutor. Gastei uma nota, a campainha passou a soar triunfante. Até que um dos meus filhos tocou-a ininterruptamente por alguns minutos. Desde então está muda.
Essas coisas eu aceito sem ousar entender, igual a fenômenos explicados pela Física (tá, todo mundo sabe que Fotografia existe, como ela se processa, mas a captação do momento num pedaço de papel é ou não é intrigante?). Por isso, hoje, curvo-me aos estranhos desígnios dos computadores, como o fato de eu incluir uma foto na página e aparecer outra. Se abro em outra máquina, vem a imagem pretendida e tudo fica como eu queria. Foi assim com uma foto do Vinícius de Moraes. Para mim, no lugar dela aparece um desenho do Jano. Bom, amanhã deve estar o Vinícius lá mesmo. Pra que me angustiar? Afinal, certamente meu combalido Pentium está me avisando o que acontece com quem se atreve a viver sem o apoio das supermáquinas que se preparam para assumir o mundo de Matrix.