31.7.20

Para Simon e Garfunkel

Os dias começam com o som da vassoura passando sobre o assoalho do apartamento de cima. De manhã, alguma vizinha bota uma sequência de músicas dos anos 40/50/60 tocadas em piano, às vezes com orquestra, fomentando aquele clima de casa de chá para senhoras de idade avançada.
A trilha sonora nunca é simultânea. Quem chega primeiro, oferece aos outros moradores da Taba seu gosto musical.
No fim da manhã e início da tarde, há disputa do quesito "Como irritar bem meu vizinho". Ou botam feminejos esganiçando a sofrência - e a paciência dos ouvintes involuntários - ou a pastora (sim, temos uma pastora na Taba) junta seus fieis para louvores desafinados. Outro dia, não aguentei, bradei: "Jesus não merece essa gritaria desafinada! Devia ser pecado!". Surtiu efeito, se calaram.
À tarde começam as vãs tentativas de um guitarrista imitar o Nirvana. Ninguém alcança o nirvana com seus riffs que perdem o andamento a cada compasso.
À tardinha tem MPB e Beatles, dependendo de quem chega primeiro ao amplificador. Mas não têm a potência de volume das feminejas nem dos cristãos em êxtase, geralmente respeitam a audição humana e a dos cachorros.
No início da noite, o aprendiz de Kenny G se apresenta. Melhorou muito desde o início da pandemia. É chato, mas ele estuda com afinco, e vem repetindo algumas razoáveis sequências de jazz-pop no saxofone.
Ao longo do dia inteiro, o fã do Stanley Jordan alterna gravações do ídolo com suas canhestras imitações do guitarrista.
E invariavelmente, ao meio-dia começa a discussão entre a vizinha do prédio da frente com a filha, um barulho que já é tradição aqui no Pé do Morro muito antes da Covid. Desde o início do isolamento, elas também discutem aos berros à noite. Mas não dá para entender bem o tema, abafado pelo Stanley Jordan.
Há duas semanas, contamos com o alarido de crianças em playgrounds, felizes como passarinhos libertados das gaiolas.
Um dia ainda sinto falta da variedade dos sons desse silêncio.

15.6.20

Mascarados


Qualquer pessoa minimamente sensível passa por momentos de angústia e de tristeza ao longo deste sofrido período. Minha sorte, no isolamento, é a constante presença virtual de amigos e família, além do convívio direto com dois de meus filhos, que moram comigo. E tem o Agador, claro, pestinha que exige alimentos aos berros, carinhos às cabeçadas.
Leio muito, assisto a filmes, a séries, tomo banho de sol na janela, cuido das plantas, converso diariamente com amigos por Whatsapp, telefono pelo menos para duas pessoas por dia para saber como vão. À rua, em mais de 90 dias, fui seis vezes. Durmo em algum momento da madrugada, acordo sabe-se lá quando.
Nesse desregramento todo, uma vadiagem sem par, a dor vem aos pingos, misturada com o dever de alienar-me da realidade triste que está lá fora. Sim, os descerebrados que podem, como eu, ficar em casa, estão querendo ir ao shopping. O que é indispensável que só pode ser suprido por lojas num edifício fechado, sem circulação de ar natural? Entendo perfeitamente que brasileiro tem a cultura da transgressão. É o país onde abstêmio compra cerveja em dia de eleição só para não cumprir a Lei Seca. Mas ir pra rua, hoje, sem máscara, mostra apenas a insensatez. 
Muita gente morrendo, amigos adoeceram gravemente, até hoje não fiz exame para comprovar se o inferno que vivi por vinte dias era Covid – as médicas acreditam que fosse, sim, um caso brando, com infecções oportunistas, uma tosse enlouquecedora, febre, fadiga, doença, enfim. Fui entrevistada pelo Ministério da Saúde. Era tempo ainda do Mandetta... ou do Teich, sei lá. A  entrevistadora me perguntou se eu era a Olga nascida em 1942 ou 1948. Não, eu sou a de 1960, a mais jovem de todas com o mesmo sobrenome na relação do Ministério. Sim, tenho nome de velha, comprovei várias vezes que toda Olga é neta de Olga ou filha de comunista.
A doença passou, o pavor também, os cuidados, redobramos. Trabalhos marcados foram adiados pelos clientes. Ninguém sabe o que vai acontecer no mundo, a distopia está acontecendo fora da ficção científica.  Sempre há o governante alucinado que desdenha da ciência, multidões que desafiam a lógica e vão de encontro ao vírus, religiosos afirmando que Deus salvará os puros. Na realidade atual falta apenas o herói, o Will Smith combatendo a ignorância reinante depois de perder a família.
Essa dor acumulada que se amontoa como os corpos diante das covas abertas me impede de escrever. Só Whatsapp, e olhe lá. Tenho todo o tempo do mundo para me comunicar, e não consigo, qualquer esforço de raciocínio é doloroso –  sim, sei o que é depressão, tomo medicação, mas falta disposição por não conceber o futuro. A alegria vem nos telefonemas às netas, crianças sempre prontas a se entusiasmar com o bolo da padaria, uma caixa de lápis de cor, máscaras que trazem a estampa de um cachorrinho. Mas realmente sinto-me como os personagens de Filhos da Esperança, o belo filme inspirado no livro de P.D. James, que trazia um mundo sem crianças, em 2027. Diante da esterilidade da espécie, qual é o sentido em fazer arte, ter museus para guardar a cultura? 
Essas reflexões chegaram mais cedo do que na distopia imaginada por P.D. James. Caminhamos para o inverno de nossa desesperança, pensando em rever nossos valores. Na hora em que a doença passar, tudo voltará a ser igual. E pior. Por isso, me bate a tristeza. Aí decido deixar o desespero pra mais tarde. Um dia terei que enfrentar. Não é hoje, nem amanha, nem na próxima semana.Filhos da Esperança - O que do passado nos espera no futuro ...

2.6.20

Macunaíma no Balneário


O dia começa efetivamente depois das 13 horas. Acaba por volta das 3 da manhã, quando sucumbo ao sono contra o qual luto como criança pequena, irritada por abandonar a vida. Há vezes em que só me rendo ao amanhecer, depois de passar por períodos de insônia, um mal que pouco me acometeu até então. Até acordo às 9h, leio um pouco, viro pro lado e cochilo. Só me levanto às 11h.
A casa e a vizinhança acompanham esses horários desregrados. Pontualmente, às 12h15m me posto na janela da sala para banhar-me ao sol de outono. Os braços se bronzearam, as pernas permanecem cor de areia. É o momento de um tímido congraçamento com a vizinha do lado, que rega as plantas e com o labrador e os gatos do andar de baixo, às vezes acompanhando o dono em movimentos de ioga. É também a hora em que algum vizinho bota o mesmo disco do Stanley Jordan para ouvirmos. O mesmo. Há 90 dias.





A diversidade musical é tímida nos arredores. Além do Stanley Jordan, alguém gosta do Kenny G. Tem a vizinha pastora que tenta entoar cânticos de louvor em absoluto desrespeito à afinação. Alguém que ama um álbum de grandes sucessos internacionais do passado pasteurizados ao piano. Haja “Strangers in the Night” e “Volare” naquele estilo inconfundível de pianista de casa de chá. Vez por outra, há uma seleção de cantoras sertanejas sofrendo. Durante os panelaços, um vizinho bota “Apesar de Você” para enlouquecer o bolsominion do edifício do lado, que profere imprecauções da varanda, em resposta aos gritos de “Fora, fascista!”.
A trilha sonora se extingue por volta das 15h, sendo retomada, a qualquer momento, sem uma rotina aparente. Quase sempre é quando adio para o dia seguinte aquela grande faxina na casa, a arrumação de outra estante de livros, o recolhimento de milhares de bibelôs que foram distribuídos sobre as prateleiras – na outra casa, eles passavam despercebidos, eram duas salas para se espalharem, aqui, não. O almoço sai lá pelas 17h, 18h, produzido por quem esteja com menos preguiça do que os demais.
Lavar banheiros e cozinha não é problema, mas tirar pó e até estender as roupas lavadas no varal são tarefas hercúleas que exigem muita disposição física. Exatamente o que escasseou em todos desde que ficamos em casa sem obrigações de trabalho a cumprir. Não fazer nada é muito cansativo. E nas duas vezes em que saí para enfrentar o Mundial, a exaustão depois de lavar frutas, legumes, passar álcool em tudo quanto é embalagem e nos sacos de supermercado, ah, isso, sim, me exauriu. Como é que eu consegui, um dia, dar banho, trocar roupa, alimentar, levar para a praia, colégio, museu, cinema e teatro quatro petizes endiabrados? Como tinha tanto tempo para combinar a vida doméstica com a profissional? Como agora só tenho vontade de ler, ver filmes/séries, papear com os amigos e fazer palavras cruzadas?
Se a “normalidade” voltar, nossa, como vou sentir saudades dessa falta de compromisso com a vida. A isso, apesar de todos os percalços financeiros, chamo de ser privilegiada. Para que eu permaneça em casa nessa vibe de Macunaíma há um monte de gente trabalhando, vindo de longe, entregando comida, água, o que nos permite viver. Posso ficar em casa graças ao acaso biológico, que me tornou uma preguiçosa. As notícias de mortes me acabrunham, porém ficam do outro lado da calçada, onde estão o posto de saúde e a UPA. E os assassinatos com armas, que não são pela ausência de compromisso das autoridades públicas com a saúde, mas por um descaso com os “invisíveis”, esses só vão me deprimir, sabendo que não conseguiremos reduzir as desigualdades. Depois da pandemia, o mundo vai piorar ainda mais.  Minha única certeza.