2.6.20

Macunaíma no Balneário


O dia começa efetivamente depois das 13 horas. Acaba por volta das 3 da manhã, quando sucumbo ao sono contra o qual luto como criança pequena, irritada por abandonar a vida. Há vezes em que só me rendo ao amanhecer, depois de passar por períodos de insônia, um mal que pouco me acometeu até então. Até acordo às 9h, leio um pouco, viro pro lado e cochilo. Só me levanto às 11h.
A casa e a vizinhança acompanham esses horários desregrados. Pontualmente, às 12h15m me posto na janela da sala para banhar-me ao sol de outono. Os braços se bronzearam, as pernas permanecem cor de areia. É o momento de um tímido congraçamento com a vizinha do lado, que rega as plantas e com o labrador e os gatos do andar de baixo, às vezes acompanhando o dono em movimentos de ioga. É também a hora em que algum vizinho bota o mesmo disco do Stanley Jordan para ouvirmos. O mesmo. Há 90 dias.





A diversidade musical é tímida nos arredores. Além do Stanley Jordan, alguém gosta do Kenny G. Tem a vizinha pastora que tenta entoar cânticos de louvor em absoluto desrespeito à afinação. Alguém que ama um álbum de grandes sucessos internacionais do passado pasteurizados ao piano. Haja “Strangers in the Night” e “Volare” naquele estilo inconfundível de pianista de casa de chá. Vez por outra, há uma seleção de cantoras sertanejas sofrendo. Durante os panelaços, um vizinho bota “Apesar de Você” para enlouquecer o bolsominion do edifício do lado, que profere imprecauções da varanda, em resposta aos gritos de “Fora, fascista!”.
A trilha sonora se extingue por volta das 15h, sendo retomada, a qualquer momento, sem uma rotina aparente. Quase sempre é quando adio para o dia seguinte aquela grande faxina na casa, a arrumação de outra estante de livros, o recolhimento de milhares de bibelôs que foram distribuídos sobre as prateleiras – na outra casa, eles passavam despercebidos, eram duas salas para se espalharem, aqui, não. O almoço sai lá pelas 17h, 18h, produzido por quem esteja com menos preguiça do que os demais.
Lavar banheiros e cozinha não é problema, mas tirar pó e até estender as roupas lavadas no varal são tarefas hercúleas que exigem muita disposição física. Exatamente o que escasseou em todos desde que ficamos em casa sem obrigações de trabalho a cumprir. Não fazer nada é muito cansativo. E nas duas vezes em que saí para enfrentar o Mundial, a exaustão depois de lavar frutas, legumes, passar álcool em tudo quanto é embalagem e nos sacos de supermercado, ah, isso, sim, me exauriu. Como é que eu consegui, um dia, dar banho, trocar roupa, alimentar, levar para a praia, colégio, museu, cinema e teatro quatro petizes endiabrados? Como tinha tanto tempo para combinar a vida doméstica com a profissional? Como agora só tenho vontade de ler, ver filmes/séries, papear com os amigos e fazer palavras cruzadas?
Se a “normalidade” voltar, nossa, como vou sentir saudades dessa falta de compromisso com a vida. A isso, apesar de todos os percalços financeiros, chamo de ser privilegiada. Para que eu permaneça em casa nessa vibe de Macunaíma há um monte de gente trabalhando, vindo de longe, entregando comida, água, o que nos permite viver. Posso ficar em casa graças ao acaso biológico, que me tornou uma preguiçosa. As notícias de mortes me acabrunham, porém ficam do outro lado da calçada, onde estão o posto de saúde e a UPA. E os assassinatos com armas, que não são pela ausência de compromisso das autoridades públicas com a saúde, mas por um descaso com os “invisíveis”, esses só vão me deprimir, sabendo que não conseguiremos reduzir as desigualdades. Depois da pandemia, o mundo vai piorar ainda mais.  Minha única certeza.

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