O dia começa efetivamente depois das 13 horas. Acaba por
volta das 3 da manhã, quando sucumbo ao sono contra o qual luto como criança
pequena, irritada por abandonar a vida. Há vezes em que só me rendo ao
amanhecer, depois de passar por períodos de insônia, um mal que pouco me
acometeu até então. Até acordo às 9h, leio um pouco, viro pro lado e cochilo.
Só me levanto às 11h.
A casa e a vizinhança acompanham esses horários desregrados.
Pontualmente, às 12h15m me posto na janela da sala para banhar-me ao sol de
outono. Os braços se bronzearam, as pernas permanecem cor de areia. É o momento de um tímido congraçamento com a vizinha do lado, que rega as plantas e com o labrador e os gatos do andar de baixo, às vezes acompanhando o dono em movimentos de ioga. É também a hora em que algum
vizinho bota o mesmo disco do Stanley Jordan para ouvirmos. O mesmo. Há 90
dias.
A diversidade musical é tímida nos arredores. Além do
Stanley Jordan, alguém gosta do Kenny G. Tem a vizinha pastora que tenta entoar
cânticos de louvor em absoluto desrespeito à afinação. Alguém que ama um álbum
de grandes sucessos internacionais do passado pasteurizados ao piano. Haja “Strangers
in the Night” e “Volare” naquele estilo inconfundível de pianista de casa de chá.
Vez por outra, há uma seleção de cantoras sertanejas sofrendo. Durante os
panelaços, um vizinho bota “Apesar de Você” para enlouquecer o bolsominion do
edifício do lado, que profere imprecauções da varanda, em resposta aos gritos
de “Fora, fascista!”.
A trilha sonora se extingue por volta das 15h, sendo
retomada, a qualquer momento, sem uma rotina aparente. Quase sempre é quando
adio para o dia seguinte aquela grande faxina na casa, a arrumação de outra
estante de livros, o recolhimento de milhares de bibelôs que foram distribuídos
sobre as prateleiras – na outra casa, eles passavam despercebidos, eram duas
salas para se espalharem, aqui, não. O almoço sai lá pelas 17h, 18h, produzido
por quem esteja com menos preguiça do que os demais.
Lavar banheiros e cozinha não é problema, mas tirar pó e até
estender as roupas lavadas no varal são tarefas hercúleas que exigem muita
disposição física. Exatamente o que escasseou em todos desde que ficamos em
casa sem obrigações de trabalho a cumprir. Não fazer nada é muito cansativo. E
nas duas vezes em que saí para enfrentar o Mundial, a exaustão depois de lavar
frutas, legumes, passar álcool em tudo quanto é embalagem e nos sacos de
supermercado, ah, isso, sim, me exauriu. Como é que eu consegui, um dia, dar
banho, trocar roupa, alimentar, levar para a praia, colégio, museu, cinema e
teatro quatro petizes endiabrados? Como tinha tanto tempo para combinar a vida
doméstica com a profissional? Como agora só tenho vontade de ler, ver
filmes/séries, papear com os amigos e fazer palavras cruzadas?
Se a “normalidade” voltar, nossa, como vou sentir saudades
dessa falta de compromisso com a vida. A isso, apesar de todos os percalços
financeiros, chamo de ser privilegiada. Para que eu permaneça em casa nessa
vibe de Macunaíma há um monte de gente trabalhando, vindo de longe, entregando
comida, água, o que nos permite viver. Posso ficar em casa graças ao acaso
biológico, que me tornou uma preguiçosa. As notícias de mortes me acabrunham,
porém ficam do outro lado da calçada, onde estão o posto de saúde e a UPA. E os
assassinatos com armas, que não são pela ausência de compromisso das
autoridades públicas com a saúde, mas por um descaso com os “invisíveis”, esses
só vão me deprimir, sabendo que não conseguiremos reduzir as desigualdades.
Depois da pandemia, o mundo vai piorar ainda mais. Minha única certeza.
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