31.7.20

Para Simon e Garfunkel

Os dias começam com o som da vassoura passando sobre o assoalho do apartamento de cima. De manhã, alguma vizinha bota uma sequência de músicas dos anos 40/50/60 tocadas em piano, às vezes com orquestra, fomentando aquele clima de casa de chá para senhoras de idade avançada.
A trilha sonora nunca é simultânea. Quem chega primeiro, oferece aos outros moradores da Taba seu gosto musical.
No fim da manhã e início da tarde, há disputa do quesito "Como irritar bem meu vizinho". Ou botam feminejos esganiçando a sofrência - e a paciência dos ouvintes involuntários - ou a pastora (sim, temos uma pastora na Taba) junta seus fieis para louvores desafinados. Outro dia, não aguentei, bradei: "Jesus não merece essa gritaria desafinada! Devia ser pecado!". Surtiu efeito, se calaram.
À tarde começam as vãs tentativas de um guitarrista imitar o Nirvana. Ninguém alcança o nirvana com seus riffs que perdem o andamento a cada compasso.
À tardinha tem MPB e Beatles, dependendo de quem chega primeiro ao amplificador. Mas não têm a potência de volume das feminejas nem dos cristãos em êxtase, geralmente respeitam a audição humana e a dos cachorros.
No início da noite, o aprendiz de Kenny G se apresenta. Melhorou muito desde o início da pandemia. É chato, mas ele estuda com afinco, e vem repetindo algumas razoáveis sequências de jazz-pop no saxofone.
Ao longo do dia inteiro, o fã do Stanley Jordan alterna gravações do ídolo com suas canhestras imitações do guitarrista.
E invariavelmente, ao meio-dia começa a discussão entre a vizinha do prédio da frente com a filha, um barulho que já é tradição aqui no Pé do Morro muito antes da Covid. Desde o início do isolamento, elas também discutem aos berros à noite. Mas não dá para entender bem o tema, abafado pelo Stanley Jordan.
Há duas semanas, contamos com o alarido de crianças em playgrounds, felizes como passarinhos libertados das gaiolas.
Um dia ainda sinto falta da variedade dos sons desse silêncio.

15.6.20

Mascarados


Qualquer pessoa minimamente sensível passa por momentos de angústia e de tristeza ao longo deste sofrido período. Minha sorte, no isolamento, é a constante presença virtual de amigos e família, além do convívio direto com dois de meus filhos, que moram comigo. E tem o Agador, claro, pestinha que exige alimentos aos berros, carinhos às cabeçadas.
Leio muito, assisto a filmes, a séries, tomo banho de sol na janela, cuido das plantas, converso diariamente com amigos por Whatsapp, telefono pelo menos para duas pessoas por dia para saber como vão. À rua, em mais de 90 dias, fui seis vezes. Durmo em algum momento da madrugada, acordo sabe-se lá quando.
Nesse desregramento todo, uma vadiagem sem par, a dor vem aos pingos, misturada com o dever de alienar-me da realidade triste que está lá fora. Sim, os descerebrados que podem, como eu, ficar em casa, estão querendo ir ao shopping. O que é indispensável que só pode ser suprido por lojas num edifício fechado, sem circulação de ar natural? Entendo perfeitamente que brasileiro tem a cultura da transgressão. É o país onde abstêmio compra cerveja em dia de eleição só para não cumprir a Lei Seca. Mas ir pra rua, hoje, sem máscara, mostra apenas a insensatez. 
Muita gente morrendo, amigos adoeceram gravemente, até hoje não fiz exame para comprovar se o inferno que vivi por vinte dias era Covid – as médicas acreditam que fosse, sim, um caso brando, com infecções oportunistas, uma tosse enlouquecedora, febre, fadiga, doença, enfim. Fui entrevistada pelo Ministério da Saúde. Era tempo ainda do Mandetta... ou do Teich, sei lá. A  entrevistadora me perguntou se eu era a Olga nascida em 1942 ou 1948. Não, eu sou a de 1960, a mais jovem de todas com o mesmo sobrenome na relação do Ministério. Sim, tenho nome de velha, comprovei várias vezes que toda Olga é neta de Olga ou filha de comunista.
A doença passou, o pavor também, os cuidados, redobramos. Trabalhos marcados foram adiados pelos clientes. Ninguém sabe o que vai acontecer no mundo, a distopia está acontecendo fora da ficção científica.  Sempre há o governante alucinado que desdenha da ciência, multidões que desafiam a lógica e vão de encontro ao vírus, religiosos afirmando que Deus salvará os puros. Na realidade atual falta apenas o herói, o Will Smith combatendo a ignorância reinante depois de perder a família.
Essa dor acumulada que se amontoa como os corpos diante das covas abertas me impede de escrever. Só Whatsapp, e olhe lá. Tenho todo o tempo do mundo para me comunicar, e não consigo, qualquer esforço de raciocínio é doloroso –  sim, sei o que é depressão, tomo medicação, mas falta disposição por não conceber o futuro. A alegria vem nos telefonemas às netas, crianças sempre prontas a se entusiasmar com o bolo da padaria, uma caixa de lápis de cor, máscaras que trazem a estampa de um cachorrinho. Mas realmente sinto-me como os personagens de Filhos da Esperança, o belo filme inspirado no livro de P.D. James, que trazia um mundo sem crianças, em 2027. Diante da esterilidade da espécie, qual é o sentido em fazer arte, ter museus para guardar a cultura? 
Essas reflexões chegaram mais cedo do que na distopia imaginada por P.D. James. Caminhamos para o inverno de nossa desesperança, pensando em rever nossos valores. Na hora em que a doença passar, tudo voltará a ser igual. E pior. Por isso, me bate a tristeza. Aí decido deixar o desespero pra mais tarde. Um dia terei que enfrentar. Não é hoje, nem amanha, nem na próxima semana.Filhos da Esperança - O que do passado nos espera no futuro ...

2.6.20

Macunaíma no Balneário


O dia começa efetivamente depois das 13 horas. Acaba por volta das 3 da manhã, quando sucumbo ao sono contra o qual luto como criança pequena, irritada por abandonar a vida. Há vezes em que só me rendo ao amanhecer, depois de passar por períodos de insônia, um mal que pouco me acometeu até então. Até acordo às 9h, leio um pouco, viro pro lado e cochilo. Só me levanto às 11h.
A casa e a vizinhança acompanham esses horários desregrados. Pontualmente, às 12h15m me posto na janela da sala para banhar-me ao sol de outono. Os braços se bronzearam, as pernas permanecem cor de areia. É o momento de um tímido congraçamento com a vizinha do lado, que rega as plantas e com o labrador e os gatos do andar de baixo, às vezes acompanhando o dono em movimentos de ioga. É também a hora em que algum vizinho bota o mesmo disco do Stanley Jordan para ouvirmos. O mesmo. Há 90 dias.





A diversidade musical é tímida nos arredores. Além do Stanley Jordan, alguém gosta do Kenny G. Tem a vizinha pastora que tenta entoar cânticos de louvor em absoluto desrespeito à afinação. Alguém que ama um álbum de grandes sucessos internacionais do passado pasteurizados ao piano. Haja “Strangers in the Night” e “Volare” naquele estilo inconfundível de pianista de casa de chá. Vez por outra, há uma seleção de cantoras sertanejas sofrendo. Durante os panelaços, um vizinho bota “Apesar de Você” para enlouquecer o bolsominion do edifício do lado, que profere imprecauções da varanda, em resposta aos gritos de “Fora, fascista!”.
A trilha sonora se extingue por volta das 15h, sendo retomada, a qualquer momento, sem uma rotina aparente. Quase sempre é quando adio para o dia seguinte aquela grande faxina na casa, a arrumação de outra estante de livros, o recolhimento de milhares de bibelôs que foram distribuídos sobre as prateleiras – na outra casa, eles passavam despercebidos, eram duas salas para se espalharem, aqui, não. O almoço sai lá pelas 17h, 18h, produzido por quem esteja com menos preguiça do que os demais.
Lavar banheiros e cozinha não é problema, mas tirar pó e até estender as roupas lavadas no varal são tarefas hercúleas que exigem muita disposição física. Exatamente o que escasseou em todos desde que ficamos em casa sem obrigações de trabalho a cumprir. Não fazer nada é muito cansativo. E nas duas vezes em que saí para enfrentar o Mundial, a exaustão depois de lavar frutas, legumes, passar álcool em tudo quanto é embalagem e nos sacos de supermercado, ah, isso, sim, me exauriu. Como é que eu consegui, um dia, dar banho, trocar roupa, alimentar, levar para a praia, colégio, museu, cinema e teatro quatro petizes endiabrados? Como tinha tanto tempo para combinar a vida doméstica com a profissional? Como agora só tenho vontade de ler, ver filmes/séries, papear com os amigos e fazer palavras cruzadas?
Se a “normalidade” voltar, nossa, como vou sentir saudades dessa falta de compromisso com a vida. A isso, apesar de todos os percalços financeiros, chamo de ser privilegiada. Para que eu permaneça em casa nessa vibe de Macunaíma há um monte de gente trabalhando, vindo de longe, entregando comida, água, o que nos permite viver. Posso ficar em casa graças ao acaso biológico, que me tornou uma preguiçosa. As notícias de mortes me acabrunham, porém ficam do outro lado da calçada, onde estão o posto de saúde e a UPA. E os assassinatos com armas, que não são pela ausência de compromisso das autoridades públicas com a saúde, mas por um descaso com os “invisíveis”, esses só vão me deprimir, sabendo que não conseguiremos reduzir as desigualdades. Depois da pandemia, o mundo vai piorar ainda mais.  Minha única certeza.

2.3.20

Adeus

Vamos nos alojar entre caixotes, comendo miojo, pizza e estranhando o barulho que vem da agitada rua em frente, tomar cuidado para não andar pelados em frente às janelas com visão panorâmica da vida alheia, entender q isolamento acústico em edifício é conceito anacrônico..
mas a seis horas como não moradora da Província, sinto-me exultante com o início de um novo ciclo. E às vésperas da Terceirona!!! Doem músculos, a vontade de chorar até aparece, enquanto a empolgação com a aventura supera as mazelas! São Clemente Social Club teve seu tempo de alegrias e sobressaltos. Uma era começa hoje. O melhor momento é sempre o próximo.
(Saí para não voltar, esquecendo de registrar que a casa viveu intensamente a democracia nos últimos 26 anos e 4 meses. Que abrigue e fomente sempre o pensamento crítico! Um beijo, já fui. Foto do Hugo, responsável pelo passadão físico e sentimental final).


A mudança.



Não faltam manchas roxas de diferentes matizes e dimensões pelo corpo. Apesar da poeirinha fina q incomoda (pouco) os olhos, a asma não se manifesta há dois dias. Não encontramos xampu, nem batom, muito menos os fios e o teclado de meu PC, deixei uma bolsa com um conversor de TV e uma bolsa comprada em seis vezes na Uncle K. O taxista passou aqui para me entregar, uma hora depois - e eu nem havia percebido. Quebramos três lâmpadas, estamos vivendo no 4G até sábado, um banheiro foi desativado para receber moveis, mas o Agador demonstra bastante serenidade e fazia tempo q eu não ria assim...
#velhotadeCopacabana.
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Hora de partir

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Os bichos que nos criaram

Os bichos que nos criaram: Mel, Gal, Jolie, Bella, Agador - os felinos. Sem contar com Zelda, a beagle, Brigitte, a tartaruga, Aninha, Sabine e Christian, Jean Paul e Simone, aquela montoeira de hamsters, pássaros, peixes e sapos.
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Lares

Sempre vi a casa como mais do que o lugar onde se dorme, toma banho, come, recebe amigos. Casa, para mim, é onde a vida se estrutura, onde nos fortalecemos, como ventre de mãe.
Tão importante que, adolescente, escrevi uma crônica que chamei de "Minha toca", descrevendo um lugarzinho só meu, já cheio de plantas. Está em algum dos muitos cadernos guardados em caixotes no alto do armário de meu quarto.
Vou buscar esse texto e ver se construí o que pretendia há 16 anos. Um refúgio do "lá fora",", onde gosto de me cercar de gente e de luz.
Neste momento de fechamento de ciclo, a aventura de montar um canto novo, pela primeira vez, sozinha, é empolgante o suficiente para transformar qualquer temor em entusiasmo.
Que aconteça antes do verão.
(A marina, na foto abaixo, foi o único objeto que fiz questão de trazer da casa de minha avó Olga. Passou pela casa de minha mãe, na Barão da Torre, também. Agora, anda comigo pela Província).

Os candidatos

Cada interessado em apartamento à venda adota um estilo diferente como visitante. Tem os que são afetuosos, barulhentos, que trazem a família inteira, falam alto, brincam com os gatos, trocam receitas de pratos rápidos para uma vida agitada. São aqueles que a gente quer como vizinho, entusiasmadíssimos com as dimensões das salas, que já começam a fazer planos de derrubar paredes para abrir uma "cozinha americana", ou de levantar uma "dry wall" e criar um novo cômodo na sala.
Há os críticos, que perguntam a razão de cada trincado na pintura. Tem ainda os Intis-Rá, a turma que quer saber do sol (sou desses). "Bate sol da tarde, não é?", perguntam, exatamente às 15h30m, quando não há sol "batendo" nas paredes, só claridade, ou às 10h30m, quando os cômodos servem até como área de bronzeamento. No Rio, a gente vive desesperadamente fugindo do sol da tarde que obriga a instalar ar-condicionado casa afora. No S. Clemente Social Club há dois, em quartos, porque o verão carioca não brinca em serviço. E ventiladores de teto, sim.
A pergunta mais inusitada que ouvi foi "O banheiro tem umidade, geralmente?". Quase respondi: "Sim, quando abrimos as torneiras ou o chuveiro". Dá pra ver se o banheiro tem mofo ou não, ora essa.
Alguns candidatos a comprador são severos, examinam cada milímetro do apartamento como se fossem fiscais da Prefeitura. Esses não comprarão, está na cara. Não gostaram e vieram apenas cumprir tabela, depois de chegarem à sala. Comentam "tem que fazer obras, né?", quando a primeira advertência que recebem é que o apartamento necessita de pintura, sinteco e remodelação dos banheiros. Ao fim da visita, se despedem com um "Bom, tá visto". Sem pergunta alguma, sem simpatia alguma.
Há ainda os que dizem "e não tem, né?". Fazem a lista dos "não tem" e são surpreendidos porque, sim, tem elevador de serviço, sim, a vaga da garagem é demarcada, sim, há um vigia noturno.
A maioria faz festa pros gatos, para alegria do Agador, metido a dar boas vindas a qualquer um que apareça. Quase todos se espantam com o tamanho de um dos quartos, o primeiro que veem - e que não é o maior. Muitos perguntam "Quem toca piano aqui?" e se revelam musicistas amadores/semiprofissionais. Quase todos acreditam que eu seja advogada ou professora pelo número de livros nas estantes. Apenas UM parou para dizer "Eu li este aqui, é ótimo".

São Clemente Social Club

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LITERATURA

Olga de Mello: “Enquanto embalo minha biblioteca”

Um presente de fim de semana para o leitor: o primeiro texto de Olga de Mello publicado no DIÁRIO. Declaração de amor aos livros e ao sabor das lembranças

23 de fevereiro de 2019
Olga de Mello, a mãe e o livro


CRÔNICA
“A cultura não ocupa espaço, repetia minha mãe quando nos mudamos para um apartamento maior, onde os livros teriam seu próprio canto, que pomposamente chamávamos de biblioteca. Ao longo dos quase trinta anos, os livros acabaram invadindo outros cômodos. Eram em torno de 5 mil volumes, que, depois da morte de meus pais, acabei juntando aos meus. Como havia muitas duplicatas – impossível viver sem um exemplar próprio de “Crônica de uma morte anunciada” -, boa parte foi passada aos amigos. O que não me interessava de forma alguma (a autobiografia de Roberto Campos, por exemplo) seguiu para sebos. Juntando os dois acervos, por muito tempo mantive cerca de três mil volumes comigo.
A biblioteca hoje tem algo como 2,5 mil livros. Segundo o gerente de uma empresa de mudanças, caberiam em vinte caixas. Já fechei 35 caixotes e as prateleiras ainda ostentam, seguramente, uns 900 volumes. Separo o que não quero mais, descubro quantos tenho repetidos. Um amigo saiu com cinco novelas do Raymond Chandler – havia cinco novas edições, mas eu me esquecera das antigas, empoeiradas, cobertas de fungos. Algumas duplicatas vão para o novo endereço, entre elas “O caminho de Guermantes”, com uma dedicatória de meu pai, em versos (qualquer declaração de amor é ridícula), no Natal de 1956, para a “melhor amiga”, minha mãe. Dois anos e meio depois, estavam casados. Mamãe achava Proust chatíssimo, mas era louca por Faulkner. Encontrei um Sartoris também com dedicatória de Papai para ela. Esse fica.
A casa de Olga de Mello
O aconchego da casa de uma embaladora de livros – Olga de Mello
Alguns livros de minha infância – uma coleção de mitologia variada – e todos os da Condessa de Ségur vão para meus afilhados – que não sei se vão apreciar como eu, criança de outra época. As netas ganharão os infantis que eram de meus filhos. Parte das obras de Agatha Christie, em papel jornal, que comprei, estudante, em banca, seguirá para uma creche ou biblioteca da Maré ou do Vidigal. Essa viagem sentimental era mais do que esperada. Escolhi Alberto Manguel para meu guia nesse processo. Estou lendo no Kindle “Mientras embalo mi biblioteca”, de Manguel, ainda sem versão brasileira (ah, Companhia das Letras, esqueça a crise, faça uma tiragem modesta, faça!).
No primeiro dos onze textos, Manguel, atualmente diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, conta que decidiu fixar-se no interior da França ao encontrar uma propriedade com um celeiro parcialmente destruído, grande o bastante para abrigar seus 35 mil livros. “Eu pensava que, uma vez que os livros haviam encontrado seu lugar, eu encontraria o meu. Estava equivocado”, diz Manguel, que aproveita a mudança para refletir sobre sua relação pessoal com a literatura.
Enquanto embalo (mais bonito que empacotar, já que embalar, em português, também é abraçar, acarinhar, cantar, ninar) minha biblioteca, sinto vontade de reler boa parte dela, mas temo que a segunda leitura mude a empolgação por cada história. Não é difícil encaixotar livros. É quase um ato amoroso, de reencontro, de sorrisos, de entendimento de cada dedicatória, o momento vivido com amigos, os presentes de ex-amores, o colo de minha mãe me explicando que Flash Gordon vivia “no futuro” (tenho HQs clássicas), meu pai afirmando que sem ler Pavese ninguém poderia se considerar leitor (discordo, mas compreendo), a empolgação de meus tios e de meus pais lendo, todos ao mesmo tempo, “Cem anos de solidão“, meu tio Edson disputando comigo a edição especial da “Tragédia da Rua das Flores” assim que foi descoberto o manuscrito inédito de Eça de Queiroz, o mês em que três exemplares novos de “O falcão maltês” chegaram em casa, porque não tínhamos o livro, e todos compraram para presentear uns aos outros, a coleção de espátulas para abrir páginas que vinham fechadas em tantas edições antigas.
Onde quer que eu monte casa, carrego esses alicerces de minha vida.”

Minha vida ao pé do morro.



Nasci no Hospital Silvestre, na Ladeira dos Guararapes. Meu pai descia para tomar café na favela; no hospital, de adventistas, só serviam uma água suja nojenta chamada chá de cevada, que tem aspecto e sabor de roupa mal lavada - tomei um gole para provar e comprovei.
Com menos de uma semana de vida, fui morar por um ano na Alberto de Campos, aos pés do Cantagalo. Dali, fomos para a Visconde de Pirajá, de onde saímos logo depois da Copa de 70, indo para a Barão da Torre 15, em frente ao nesmo morro, mas no outro lado.
Em 87, comprei um apartamento na Barão de Itapagibe, na encosta do Turano. Era bucólico, desciam cabrinhas até o condomínio. Em 88, troquei pelo da D. Mariana, onde nasceram Artur, Oto e Hugo. Tinha vista panorâmica para o Cemitério, mas não havia tiroteio, então. Em 92, chegamos à São Clemente, onde nasceu Júlia. Na primeira noite, acordei de um pesadelo, pensando que estava em Trípoli, em guerra na época. Era só a droga chegando ao Santa Marta.
Em 93 e 94, vivemos em Rio das Ostras, onde ainda não havia favelas. Voltamos em 95 para a Barão da Torre, de onde eu saíra sozinha e retornava com quatro filhotes.Em 96, viemos de vez para a São Clemente, os cinco.
Agora, três saímos para Copacabana. Pro pé dos Tabajaras.
Nasci na montanha pra viver à beira-mar. Do asfalto, sim, mas sempre num pé de morro!!!!
(a foto, do início do séc XX, é da nossa - até amanhã ou depois - esquininha, da São Clemente com D. Mariana. O prédio garboso é uma ruína, atualmente. O nosso ex fica ao lado, no espaço da grade.)

Cosmo

 Quando chegamos, há 26 anos e pouquinho, não me recordo do Cosmo, só do seu João, o vigia noturno. Em muitas madrugadas, deixei a chave de casa com seu João enquanto corria para pronto-socorro com filho doente, pedindo que salvasse as outras crianças em caso de incêndio.
Cosmo nunca serviria para acudir num incêndio. Era meio atarantado. Falava sem olhar diretamente o interlocutor, passava todos os recados do síndico quanto a falta de água, de luz, de gás – manutenção, troca ou limpeza – e também as broncas pelas molecagens dos pirralhos, os meus quatro e o Luís Heitor, que tinha gaveta de roupas e guardados em nossa casa. Arauto das piores novas, comunicava cada falecimento de morador.
Nossas conversas versavam sobre a temperatura e política, jurando que votava em meus candidatos, mas nunca acreditei muito. Como todo porteiro, ficava com os eletrodomésticos dispensados pelos moradores. Diferente de boa parte dos colegas de profissão, jamais demonstrou interesse ou talento para fazer biscates no condomínio. No máximo, lavou carros.
Hoje, está em licença de saúde. Lamento não poder me despedir do Cosmo, nem ter lhe dado o último panetone de Natal, pois já entrara em licença pelo INSS. Quando soube que íamos nos mudar, perguntou se o gatinho ia junto. Não que gostasse de gatos. Jamais demonstrou qualquer afeto por animais ou plantas. Por ele, as plantinhas do prédio viveriam apenas da água da chuva. Para nós, Cosmo foi tão essencial, nesses anos, como a água da chuva.

A amiga da Casa

A casa se tornou lar muito porque nela fiz uma amizade que transcende a vida.
Quando nos conhecemos, em 1997, eu estranhava que ela ficasse em casa quase todas as noites, torrasse na praia nos fins de semana, mas nunca comigo, só com as amigas e um amigo no calçadão, bebendo cerveja e comendo porcarias fritas. Nossos programas em comum envolviam filhos – festas de crianças, de colégio – ou família: ano novo, Natal, aniversários, noite de fim da novela, eu perguntando tudo o que acontecera nos capítulos anteriores, ela fingindo se zangar comigo, vociferando respostas.
E tinha a bebida, sua companheira de todas as noites. Havia as fases da vodca, outras da cerveja, um período de vinho e, mais que tudo, uísque. Falava o melhor inglês de uma brasileira, aquela voz belíssima que soava natural ao mencionar “Bread Pit”, e não “BrediPitch”.
Partiu sem alarde. Não era de alardes, era de amores, casou-se cinco vezes. Jactava-se da boemia na juventude. 
Ela se foi e me deu vontade de deixar o canto que ganhou cara de casa porque estávamos próximas. Foi ela que me concedeu a sensação de pertencer ao prédio. Foi ela que me deu vontade de amealhar recordações como as que trocava com os filhos – e hoje essas lembranças se confundem com os tempos em que convivemos.
Sei que ela entrou na minha vida para me marcar.
Eu passei por ela como distração, brincadeira. Mas nos aproveitamos bem.
Ela vai comigo pro outro endereço.

A casa

Nesta casa:
- moraram dez pessoas, com lotação máxima de seis, sempre.
- foram concebidas duas pessoas.
- nasceu uma menina.
- acabaram dois casamentos e alguns namoros.
- viveram uma cadela, seis gatos, 16 hamsters, incontáveis pássaros, duas tartarugas, quatro lagartixas, em torno de vinte peixes Beta, uma sapinha, muitas traças, aranhas e mosquitos (registra-se passagem e execução sumária de baratas também).
- três cachorros faziam visitas frequentes.
- uma das três máquinas de lavar pegou fogo; o aquecedor também.
- houve um arrombamento; os ladrões levaram um título de eleitor e a caixa da coleção de moedas de outros países.
- um gatinho do vizinho entrou pela janela.
- uma gatinha de rua foi enfiada pela janela pelo Cosmo, o porteiro, que acreditava que qualquer gato andando em frente ao prédio era daqui.
- houve três festas de réveillon.
- foi cenário de guerras com armamento de estilingue e munição de feijão, campo de futebol de bola de meia (proibido, mas ninguém respeitava), rinque de patinação, pista de skate, oficina de artes plásticas de geleca e argila.
- recebeu em torno de 800 crianças em cerca 40 festas infantis .
- e uns 200 adultos em cerca de 100 almoços cívicos, comemorações de aniversários, lanches, reuniões olímpicas, dos baronetes, das graças.
- um quarto tinha chão azul.
- uma veneziana quebrada nunca foi trocada porque nela estão pintadas com cola e sujeira as mãos de um menino levado.
- as grades sempre foram cenográficas e tiradas para pegar o que caísse no telhado da garagem – ou para soltar pipa na laje mesmo.
- o boxe do banheiro rachou seis vezes; na última, desistimos e botamos um pano de chão para secar a água que passa pelo trincado.
- havia exposição permanente de desenhos nas paredes da cozinha para cobrir os azulejos de galinhos de Portugal originais.
- tapetes só eram admitidos nos banheiros e na cozinha.
- a campainha nunca funcionou (uma tradição nesta família: todas as campainhas são quebradas ou inexistem; ninguém liga mesmo).
- as paredes sempre foram amareladas, amarelonas, amarelinhas.
- por quase vinte anos só teve chave e tranca na porta principal; a da cozinha continua sem chave; os armários são abertos com lápis ou facas; desapareceu a chave do único quarto que trocou a fechadura e ganhou um jogo inteiro.
- com a troca de moradores, por muito tempo deverão ser encontradas pecinhas minúsculas de Lego no fundo de armários e em cantinhos escuros, além de latas de pomada Minâncora e embalagens de fio dental, compradas semanalmente porque ninguém se lembrava de guardar num lugar determinado, que, aliás, jamais foi definido.
- sempre houve muitas plantas, que andam cabisbaixas, prevendo mudanças na rotina.
- nunca teve um açucareiro bonito ou funcional; raramente tinha açúcar, também. A nova casa terá um açucareiro lindo pra acolher-nos docemente.
- ficamos sem luz religiosamente três vezes a cada ano.
- há mais histórias para contar do que os livros que abrigou em suas estantes.
- assistimos à "Máquina Mortífera" no Natal, "Moulin Rouge", e todo o Indiana Jones, em qualquer oportunidade.
- quatro pessoas cresceram fortes, belas, sábias.
- não vou envelhecer.




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Resistência

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Lar Provisório, primeiros dias

No alojamento de refugiados chiques em que transformamos o lar provisório, perdi o teclado do meu PC, comprei outro - aqui no Balneário, onde se encontra de tudo - que durou duas horas e será trocado amanhã. Cada caixa aberta oferece a alegria do reencontro. Os livros estão todos bem fechados, caixas etiquetadas direitinho. O problema foi a retirada da São Clemente. Sempre sobram pequenos objetos - ou grandes, como espelhos, quadros e computadores (eu ia trazer comigo, no táxi; não aconteceu) que são embalados pelos homens da mudança. E aí, descobrimos fios elétricos ao lado de cadernetinhas e NENHUMA caneta. Tenho cerca de 60 Bics e canetas promocionais. Adoro a Bic Cristal 1.6, tenho em cores diversas, perfeita para quem sofre de tendinite. Desconheço o paradeiro. Apenas um lápis 2B Stylo, maravilhoso, surgiu até agora.
Mas todos os doze pacotes de esponja (sim, eu sempre compro um quando vou ao mercado, para que não falte. Não faltarão até o próximo semestre, pelo visto) estão à disposição dos abrigados.
O apartamento de dois quartos, reformado pela Danuzia Pietro é lindo, moderno e funcional. Pena que entramos nós, os refugiados, sem projeto de decoração, apenas em busca de um abrigo. Hugo e Júlia prometem adquirir a propriedade, se ganharem na Mega-Sena. Uma delícia casa de arquiteta: tudo cabe, tudo passa pelas portas. Mas da mesma maneira que saímos correndo de Botafogo, Danúzia fechou a obra às pressas e carregou uma linda maçaneta para Rio das Ostras. Então, dividimos os puxadores, um para cada quarto. Mas não podemos fechar a porta. Então, deixamos os puxadores voltados para fora, e as portas jamais se fecham...
Retomar o trabalho no meio desse caos é terapêutico, até porque não tenho mais os compromissos que atendia na Província. O dia corre vagarosamente, como em férias. Na segunda, mais explorações pela vizinhança e... primeira ida ao Mundial como moradora do Balneário!!!
(A noite foi divertidíssima. Um vizinho deu show, se esgoelando em árias. Não identifiquei de onde vinha a cantoria do Pavarotti das cercanias, mas a vizinhança em peso foi para as janelas aplaudir.


Primeira manicure que me atende no Balneário, Ana, está há 4 meses no salão, que vive vazio por ser num subsolo no Centro Comercial de Copacabana, talvez o mais antigo do bairro, na esquina de Nasa Sra com Siqueira Campos. Na frente fica ela panfletadora que deve ter uns 70 e muitos anos e usa tranças. Tem dois cabeleireiros que me cercaram para revitalizar minhas naturais "Quase luzes", as cãs que aparecem cá e lá, sem grande continuidade. Um mora no Vidigal. Ana, em Vicente de Carvalho. A dona do salão está nos EUA tratando da papelada de viuvez. É seu segundo casamento com um americano. Cada unha feita, cada penteado ou corte, os empregados fotografam e enviam para q ela veja as imagens por Whatszap. Tem cliente q não permite. Ana já trabalhou em casa de família, faz limpeza de pele e colocação de unhas postiças- que agora tem outro nome, algo como ornamentação de unhas. Na saída, ganho meu cartãozinho de fidelidade.
#beiradomar
#velhotadeCopacabana




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Gato do Leme, criado em Botafogo, chegando a Copacabana - Agador, um carioca!