2.3.20

A casa

Nesta casa:
- moraram dez pessoas, com lotação máxima de seis, sempre.
- foram concebidas duas pessoas.
- nasceu uma menina.
- acabaram dois casamentos e alguns namoros.
- viveram uma cadela, seis gatos, 16 hamsters, incontáveis pássaros, duas tartarugas, quatro lagartixas, em torno de vinte peixes Beta, uma sapinha, muitas traças, aranhas e mosquitos (registra-se passagem e execução sumária de baratas também).
- três cachorros faziam visitas frequentes.
- uma das três máquinas de lavar pegou fogo; o aquecedor também.
- houve um arrombamento; os ladrões levaram um título de eleitor e a caixa da coleção de moedas de outros países.
- um gatinho do vizinho entrou pela janela.
- uma gatinha de rua foi enfiada pela janela pelo Cosmo, o porteiro, que acreditava que qualquer gato andando em frente ao prédio era daqui.
- houve três festas de réveillon.
- foi cenário de guerras com armamento de estilingue e munição de feijão, campo de futebol de bola de meia (proibido, mas ninguém respeitava), rinque de patinação, pista de skate, oficina de artes plásticas de geleca e argila.
- recebeu em torno de 800 crianças em cerca 40 festas infantis .
- e uns 200 adultos em cerca de 100 almoços cívicos, comemorações de aniversários, lanches, reuniões olímpicas, dos baronetes, das graças.
- um quarto tinha chão azul.
- uma veneziana quebrada nunca foi trocada porque nela estão pintadas com cola e sujeira as mãos de um menino levado.
- as grades sempre foram cenográficas e tiradas para pegar o que caísse no telhado da garagem – ou para soltar pipa na laje mesmo.
- o boxe do banheiro rachou seis vezes; na última, desistimos e botamos um pano de chão para secar a água que passa pelo trincado.
- havia exposição permanente de desenhos nas paredes da cozinha para cobrir os azulejos de galinhos de Portugal originais.
- tapetes só eram admitidos nos banheiros e na cozinha.
- a campainha nunca funcionou (uma tradição nesta família: todas as campainhas são quebradas ou inexistem; ninguém liga mesmo).
- as paredes sempre foram amareladas, amarelonas, amarelinhas.
- por quase vinte anos só teve chave e tranca na porta principal; a da cozinha continua sem chave; os armários são abertos com lápis ou facas; desapareceu a chave do único quarto que trocou a fechadura e ganhou um jogo inteiro.
- com a troca de moradores, por muito tempo deverão ser encontradas pecinhas minúsculas de Lego no fundo de armários e em cantinhos escuros, além de latas de pomada Minâncora e embalagens de fio dental, compradas semanalmente porque ninguém se lembrava de guardar num lugar determinado, que, aliás, jamais foi definido.
- sempre houve muitas plantas, que andam cabisbaixas, prevendo mudanças na rotina.
- nunca teve um açucareiro bonito ou funcional; raramente tinha açúcar, também. A nova casa terá um açucareiro lindo pra acolher-nos docemente.
- ficamos sem luz religiosamente três vezes a cada ano.
- há mais histórias para contar do que os livros que abrigou em suas estantes.
- assistimos à "Máquina Mortífera" no Natal, "Moulin Rouge", e todo o Indiana Jones, em qualquer oportunidade.
- quatro pessoas cresceram fortes, belas, sábias.
- não vou envelhecer.




A imagem pode conter: gato, mesa, planta e área interna






A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, pessoas sentadas e área interna

Nenhum comentário: