Qualquer pessoa minimamente sensível passa por momentos de
angústia e de tristeza ao longo deste sofrido período. Minha sorte, no isolamento, é a constante presença virtual de amigos e família, além do
convívio direto com dois de meus filhos, que moram comigo. E tem o Agador,
claro, pestinha que exige alimentos aos berros, carinhos às cabeçadas.
Leio muito, assisto a filmes, a séries, tomo banho de sol na janela, cuido das plantas,
converso diariamente com amigos por Whatsapp, telefono pelo menos para duas
pessoas por dia para saber como vão. À rua, em mais de 90 dias, fui seis vezes.
Durmo em algum momento da madrugada, acordo sabe-se lá quando.
Nesse desregramento todo, uma vadiagem sem par, a dor vem
aos pingos, misturada com o dever de alienar-me da realidade triste que está lá
fora. Sim, os descerebrados que podem, como eu, ficar em casa, estão querendo
ir ao shopping. O que é indispensável que só pode ser suprido por
lojas num edifício fechado, sem circulação de ar natural? Entendo perfeitamente que brasileiro tem a cultura da transgressão. É o país onde abstêmio compra cerveja em dia de eleição só para não cumprir a Lei Seca. Mas ir pra rua, hoje, sem máscara, mostra apenas a insensatez.
Muita gente morrendo, amigos adoeceram
gravemente, até hoje não fiz exame para comprovar se o inferno que vivi por
vinte dias era Covid – as médicas acreditam que fosse, sim, um caso brando, com
infecções oportunistas, uma tosse enlouquecedora, febre, fadiga, doença, enfim.
Fui entrevistada pelo Ministério da Saúde. Era tempo ainda do Mandetta... ou do
Teich, sei lá. A entrevistadora me
perguntou se eu era a Olga nascida em 1942 ou 1948. Não, eu sou
a de 1960, a mais jovem de todas com o mesmo sobrenome na relação do Ministério. Sim, tenho nome
de velha, comprovei várias vezes que toda Olga é neta de Olga ou filha de
comunista.
A doença passou, o pavor também, os cuidados, redobramos.
Trabalhos marcados foram adiados pelos clientes. Ninguém sabe o que vai
acontecer no mundo, a distopia está acontecendo fora da ficção científica. Sempre há o governante alucinado que desdenha
da ciência, multidões que desafiam a lógica e vão de encontro ao vírus,
religiosos afirmando que Deus salvará os puros. Na realidade atual falta apenas
o herói, o Will Smith combatendo a ignorância reinante depois de perder a família.
Essa dor acumulada que se amontoa como os corpos diante das
covas abertas me impede de escrever. Só Whatsapp, e olhe lá. Tenho todo o tempo
do mundo para me comunicar, e não consigo, qualquer esforço de raciocínio é
doloroso – sim, sei o que é depressão, tomo medicação, mas falta
disposição por não conceber o futuro. A alegria vem nos telefonemas às netas, crianças sempre prontas a se entusiasmar com o bolo da padaria, uma caixa de
lápis de cor, máscaras que trazem a estampa de um cachorrinho. Mas realmente
sinto-me como os personagens de Filhos da Esperança, o belo filme inspirado
no livro de P.D. James, que trazia um mundo sem crianças, em 2027. Diante da esterilidade da espécie, qual é o sentido em fazer arte, ter museus para guardar a cultura?
Essas reflexões chegaram mais cedo do que na distopia imaginada por P.D. James. Caminhamos para o inverno de nossa desesperança, pensando em rever nossos valores. Na hora em que a doença passar, tudo voltará a ser igual. E pior. Por isso, me bate a tristeza. Aí decido deixar o desespero pra mais tarde. Um dia terei que enfrentar. Não
é hoje, nem amanha, nem na próxima semana.
