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Era fim dos anos 60 quando fui arrancada do torpor em uma missa celebrada por um alemão louro, que caminhava pelo corredor da capela do Colégio Notre Dame, interpelando as alunas, que eram obrigadas a participar dos cultos às sextas-feiras. Falava um português carregado de sotaque, conclamando os "
chjouvennns" a procurar Deus no dia-a-dia. Distribuía perguntas ao público, deixando aturdidas as meninas a quem fazia indagações durante as celebrações. E aos sábados, à noitinha, celebrava a Missa Jovem, onde cantava-se música acompanhada por violões, em vez do tradicional e insuportável orgãozinho elétrico.
Meu contato com Frei Clemente Kesselmeier foi ínfimo, restrito às confissões, uma tortura imposta às crianças que já haviam feito Primeira Comunhão. Filha única, sofria a angústia de buscar pecados a enumerar antes de revelar minhas ausências da missa dominical - o que me garantia reserva de vaga para a eternidade no inferno. Quem tinha irmãos sempre podia contar que batera num, puxara o cabelo de outro; eu falava que respondera mal aos pais, contava mentiras e proferira o nome de Deus em vão. Um padre me dissera "tão jovem e já nesse caminho, minha filha", o que me impressionara. Cansava de ver meninas mais jovens deixarem o confessionário aos prantos.
Frei Clemente gostava de ouvir confissões das garotas na sacristia ou no altar da capela, cara a cara. Ouvir é modo de expressão, pois ele mal nos dava tempo para o ato de contrição. Depois do primeiro "desobedeci a meu pai", ele já cortava nosso discurso, mandava que rezássemos as aves-marias e pais-nossos de praxe, dispensando as pecadoras redimidas. Com os adultos, era diferente. Uma vez ficou de conversa com minha mãe, na Igreja da Paz. Como estranhei a demora, Mamãe me contou que ambos mantiveram um interessante debate sobre dúvidas de fé. Ela, que não gostava das celebrações de Frei Clemente, barulhento, sempre de batina branca, parecendo um Jon Voigt jogado nos trópicos, passou a respeitá-lo, então, como um orientador espiritual competente.
À parte a teatralidade da Missa Jovem (as luzes eram diminuídas no momento da Consagração e acesas, rapidamente, após o "Eis o Mistério da Fé"), as missas de Frei Clemente eram animadas e superlotadas, tanto no colégio quanto na Igreja da Paz. Lembro-me particularmente de uma em que ele se dirigiu a nós perguntando a gíria para "homem bonito". Ainda não era "um gato", mas já havia deixado de ser "um pão" - a metáfora que ele buscava para falar sobre a escolha de Cristo em se perpetuar como alimento básico na Última Ceia. Naturalmente, achávamos que Frei Clemente era maluco e antiquado, mas ninguém negava seu carisma e sua intensa busca pela aproximação com os
chjouvens.
Ao longo dos anos, encontrei Frei Clemente em diferentes ocasiões, fora da igreja ou das ruas de Ipanema. Uma vez, ele adentrou o quarto de um amigo, na Barão da Torre, num ritual de bênção da casa inteira, atendendo ao pedido da mãe desse amigo, uma Clementete assumida. Os Clementetes eram os frequentadores do Encontro de Casais da Igreja da Paz, que adoravam o Frei.
Acompanhei a última missa de Frei Clemente em Ipanema, na Nossa Senhora da Paz, antes de sua transferência para o Convento de Santo Antônio, no Centro. Estava de plantão, na redação, e fiz questão de pegar a pauta. Ele já fora objeto de uma entrevista que determinei como pauteira/chefe de reportagem do primeiro número do jornal da Faculdade da Cidade, que acabara de ser aberta em Ipanema. Mas minha matéria com ele foi sua despedida do bairro, pranteada não apenas pelos Clementetes. Em nenhum momento ele se deixou levar pela comoção dos fiéis, que ameaçavam queixar-se ao prior dos franciscanos, reafirmando que o dever do sacerdote é ir aonde há necessidade.
Nos últimos tempos, eu o via em entrevistas de televisão, na missa de Bodas de Rubi ou de falecimento de amigos. Do barulhento Frei Clemente, que faleceu ontem, aos 76 anos, e da algazarra da minha juventude restam a sensação de que a vida pode ser uma alegre celebração.