26.1.05

Resistência

Apesar de minha resolução de não fazer daqui um espaço de ocupação diária, estou na fase de encantamento com a novidade e meio que enamorada da cidade. O Rio tem dessas coisas, a gente vive se apaixonando por alguns cantos, estimulando-se para não abandonar essas praias e todas as mazelas dos arredores.
Sair de casa e ver o mar deveria encher a gente de ânimo diariamente, mas acabamos nos acostumando aos cartões postais com que nos deparamos a cada instante. Vivo num dos mais feiosos bairros da Zona Sul, Botafogo, caótico, tortuoso e sujo, a ponto de eclipsar a maravilha que é ter a Praia e a Lagoa (não há como imaginar o Humaitá como bairro independente. O Humaitá pertence a Botafogo, da mesma forma que o Bairro Peixoto é de Copacabana).
Todos os dias saio de casa e pego o engarrafamento da Rua das Palmeiras por uns bons dez minutos. Ali, coração levinho, cabelos molhados, fico me distraindo com os homens que descarregam o caminhão de verduras, frutas e legumes para o Sacolão da Voluntários, vendo o guarda que conversa com o rapaz que passeia com um imenso pastor inglês que tem a maior pachorra do mundo para sentar-se na calçada enquanto os outros batem papo. Entro na Voluntários, chego à Praia de Botafogo, confiro se o Pão de Açúcar está encoberto, os barcos na enseada, contorno o Morro da Viúva, fico no sinal da Praia do Flamengo em frente à Paissandu, sigo e só vou parar novamente na Praça Paris, invadida por uma equipe de filmagem que montou tendas coloridas entre os canteiros, expulsando a turma das caminhadas para um cantinho.
Tudo azul, apesar do dia nublado e abafado, até que me deparo com o Homem da Sonda Urinária. Como todo o bom carioca, tenho meus pedintes preferidos e o Homem da Sonda Urinária não está entre eles. Eu gosto e sempre dou um dinheirinho pro pessoal das cadeiras-de-rodas, principalmente para um moço que fica em Copacabana, na esquina da Praia com a Francisco Sá. Às vezes ele vai pra Miguel Lemos com Barata Ribeiro. Ele é um amor e quem vai empregá-lo, coitado? O Homem da Sonda Urinária eu conheci há quase um ano na Praia do Flamengo. Fiquei chocada, achei que era Mundo Cão demais, que alguém tomaria alguma providência, mas... o sujeito continua com a sonda urinária à mostra, mas, felizmente, encobre o local de onde sai a urina. O que me leva a pensar: 1) não tem sonda nenhuma, ele bota urina no pote de soro cortado e carrega com ele; 2) ele é doente mesmo e ninguém dá a menor atenção; 3) mesmo que seja uma encenação, é horrí­vel alguém se submeter a tal vexame porque não há emprego, saída ou condições de vida digna neste País.
Sempre escapo do Homem da Sonda Urinária, que já encontrei na Cidade Nova e, agora, na Glória, fronteira com Passeio/Lapa. Não dou dinheiro a ele, preferiria comprar balinhas do rapaz que tem um olho torto e já conquistou clientela naquele ponto. Também corre atrás da sobrevivência com seu colar de balas, arrumadas por cores e tamanhos, numa composição plasticamente agradável. Chego à Lapa pensando no Homem da Sonda Urinária, no sistema de castas em que vivemos e, na Praça dos Arcos, um grupo de meninos-de-rua joga bola, com coletes verdes e azuis, orientados por educadores, provavelmente da São Martinho. Indiretamente já trabalhei com meninos-de-rua, bem menos do que minha culpa judaico-cristã recomendava. Ver o pessoal que insiste em procurar um caminho pra nossos Olivers Twists contemporâneos, sem mostrar algum milagre romãntico-literário como o que Dickens criou para seu menino mais de 100 anos atrás, dá algum alento para levar adiante uma semana em que a disputa de Bush e Kerry ganha mais páginas de jornal que balas perdidas ferindo gente na frente do Piranhão. Hay que ser Pollyana e não perder a ternura jamais para continuar resistindo no Rio.

Do Multiply, em 26/10/2004

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