21.11.05

Elaine, um beijo

Semana passada, um dia começou horrível. Abri o jornal, li um nome no Funéreo, reconheci a foto, mas não a pessoa. Em três segundos, entendi que era uma amiga querida de 20 anos, daqueles amigos cariocas, que a gente deixa de encontrar por milênios, mas se senta junto no botequim por acaso e faz confidências sobre o tempo de separação mútua. Elaine conheci em 83, 84. Foi minha única estagiária mais velha que eu mesma. Tinha dois filhos, era casada com um pescador, morava em Niterói. Totalmente diferente da garotinha de Ipanema que vivia com os pais, sem a menor dificuldade para curtir a vida adoidado naquela época.
A vida da gente mudou. Casei, engravidei e ganhei fama de ser "boca de sapo" na redação. Olhava para a mulherada e decretava: "Está grávida". Não dava outra. Estava no refeitório, Elaine senta-se em minha mesa, zangada: "Você, hein? Que coisa!". Indaguei o que havia acontecido. E ela: "Tô grávida, como você disse!". Expliquei que era apenas uma sensitiva, não tinha nada a ver com a concepção em si. Júlia foi a temporã de Elaine. Saí do jornal, tive mais dois filhos. Me separei. Encontrei-a há dez anos, tranqüila após uma mastectomia radical. Animada, namorando, brincando. Passamos juntas um reveillon.
Perdemos contato, mas sempre tive notícias dela, afastada do trabalho diversas vezes para submeter-se ao tratamento. Ela se foi sem nos despedirmos. O Ivson escreveu este texto lindo sobre a Elaine no "Coleguinhas", que reproduzo aqui.

A guerreira
A primeira surpresa com Elaine Rodrigues veio na mesa do nosso bar preferido do Triângulo Alcoólico, localizado no fim da Rua Lara Vilella, bairro do Ingá, Nikiti: aquela mulher era do MR-8, mas, apesar disso, tinha o pensamento claro e ordenado, defendendo, com tranqüilidade e agudeza, as sandices pregadas por aquela tendência do PMDB (você ainda pode lê-las no Hora do Povo).
A segunda surpresa veio logo depois, por meio de colegas mais velhos no Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS), da UFF, onde eu cheguei naquele 1980, dois anos (ou coisa assim) depois de Elaine. Eles me contaram um pouco de sua vida e eu vi que ali não havia apenas um cérebro límpido, mas também uma alma poderosa, ao mesmo forte e terna.
A diferença de períodos e de posição política não me permitiram privar mais da companhia de Elaine na faculdade. Essa oportunidade se ofereceu depois, em minhas passagens no Globo, primeiro como repórter, depois como redator e, por fim, como pauteiro. Em todos esses momentos, que se estenderam, intermitentes, entre meados dos anos 80 a meio dos 90, confirmei o que intuíra lá em Niterói: Elaine tinha cérebro privilegiado e alma forte, mas tinha mais- um coração de guerreira. Por possuir essas qualidades jamais se entregou à doença que a matou, depois de mutilá-la. Doença que herdara da mãe e da avó e que a fez pôr a filha em acompanhamento médico aos oito anos.
Da última vez em que trabalhamos juntos, vem o exemplo que sempre dou aos jovens que têm o azar de me cair nas mãos durante os estágios e que não sabem - e não querem aprender - a apurar. Numa noite de fins de 95, Elaine chegou à redação por volta das 23 horas. Deu boa noite de passagem e foi direto ao armário onde ficavam guardados os diários oficiais, pegando o do Estado. Sentou-se na minha frente, na mesa da chefia de reportagem, e folheou o calhamaço até a parte da Secretaria de Saúde :
- Que cê tá fazendo? - perguntei.
- Arrumando pauta pra você. É aqui que saem todas as maracutaias - respondeu, olhando por cima dos óculos, com a clareza de sempre.
A imagem que tenho agora nos olhos, porém, foi da última vez que a vi, aí por 97 ou 98, num fim de tarde, na esquina da Rio Branco com a Ouvidor. Apresentei a Andréa e perguntei o que estava fazendo. Adivinhou?:
- Tô apurando. Descobri uma licitação fraudada na Saúde. Tenho que ir logo pra redação - confidenciou e, toda satisfeita, se despediu.
Vai na paz, guerreira.

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