18.8.06

No Valor, hoje


O verbo transitivo

Por Olga de Mello e Robinson Borges, para o Valor
18/08/2006

Os ciclos de intensificação das relações internacionais, como a globalização de hoje, têm um componente cultural evidente, que reflete, sobretudo, o peso econômico e político dos países dominantes. Ou de um só, como se afirma em análises da amplitude que ganharam nos últimos tempos as influências americanas e, com elas, a extensão sem precedentes do interesse pela língua inglesa, especialmente no mundo dos negócios. Mas o idioma até agora visto como de utilidade universal praticamente exclusiva também já é encarado apenas como uma das necessidades básicas para o êxito, ou a sobrevivência, no mundo corporativo, que vai abrindo espaço para a valorização de currículos nos quais constem conhecimentos de outras culturas e línguas.

Moacyr Lopes Jr./Folha Imagem Cultura em disseminação: o dragão circula pela avenida Paulista, antes de ser exibido nas festas do ano novo chinês,no bairro paulistano da Liberdade

Um meticuloso estudo sobre o aprendizado do inglês no mundo, intitulado "English Next", sustenta que o inglês continuará universal, mas revela que a partir de 2016 - quando for falado por 2 bilhões de pessoas -, haverá um declínio no interesse pela língua. "Será vantajoso aprender idiomas como o mandarim e o árabe e ter noções da cultura de seus interlocutores", observa David Graddol, autor da pesquisa recém-concluída, realizada a pedido do British Council. "A influência econômica e política da China começa a ser sentida fortemente na América Latina, na África e na Ásia. Não se pode ignorar a velocidade com que o chinês pode vir a se transformar em um fenômeno global."

Em 2010, o inglês terá sua relevância no mundo dos negócios na casa dos 28% em relação às outras línguas. Logo atrás estará o mandarim, com 23%. Com uma grande diferença em relação aos dois primeiros colocados estarão o japonês (5,6%), o espanhol (5,2%), o francês (4,2%) e o português (3,4%), segundo o "English Next". Até a hegemonia do inglês na internet deve ser reduzida. Em 2000, 51,3% dos acessos na rede eram feitos em inglês, contra 5,4% em chinês. Mas apenas 32% dos acessos em 2005 foram em inglês, e 13% em chinês.

Luciana de Jong, diretora comercial da Comissaria Ultramar, empresa de logística de transporte internacional, percebeu a mudança e está no segundo período de chinês básico na PUC-Rio. "Sou a mais velha da turma. Temos muita gente mocinha, buscando a nova linguagem de negócios", diz. A executiva decidiu aprender a língua no fim do ano passado, quando estava na Ásia. "Falo francês, espanhol e holandês, além de inglês, mas percebi que não é suficiente, pois o comércio com a China só tende a aumentar", calcula.

Tanto headhunters quanto lingüistas, ouvidos para o estudo encomendado pelo British Council, dizem que, diante dessas evidências, para se destacar no universo corporativo melhor será seguir o exemplo de Luciana e preparar-se para a nova ordem mundial, que deve promover uma onda de exclusão lingüística para os desatentos. Isso porque o monolingüismo agoniza - mesmo para quem fala inglês- e o bilingüismo serve apenas para o início da conversa. A tendência é toda voltada para o multilingüismo. De fato, na União Européia, com a criação de uma comunidade de várias línguas e culturas, o multilingüismo é um fato irreversível. Nos EUA, a hispanização traz novas realidades e expectativas. "Na pós-modernidade, o multilingüismo é a norma e as identidades são mais complexas, fluidas e contraditórias", explica Graddol.

Para ele, entre os interessados no aprendizado de chinês, poucos têm o inglês como língua materna, fato preocupante num cenário em que o monolingüismo está prestes a se extinguir entre a elite dos homens de negócio. "Quem nasceu falando inglês se acomoda, o que deixa os países ricos em desvantagem perante os outros", afirma Graddol. Ele observa, por exemplo, que a importância econômica do Brasil já alterou o status global do português. "É recomendável que os investidores em países lusófonos da África aprendam português também", acredita Graddol, que também destaca o crescimento do ensino de espanhol.

Fabiano Accorsi/Folha Imagem Migrações também explicam: o vaivém demográfico ajuda a dar novo ritmo à difusão de idiomas como o chinês (na foto, crianças de famílias chinesas em escola de São Paulo)

De acordo com o vice-presidente do British Council no Brasil, Michael Thorton, britânicos e americanos são tradicionalmente resistentes ao aprendizado de outros idiomas, mesmo depois que sua língua, agora de uso universal, deixou de "pertencer" aos anglo-saxões e passou a ser falada de diferentes maneiras.

Thorton compartilha da opinião exposta por David Crystal em "A Revolução da Linguagem" (Zahar), de que o inglês é uma das línguas que mais se apropria de palavras estrangeiras. "As línguas se modificam e a globalização acelera esse processo. Verbos como deletar, que vem do latim, surgem no português como se fossem anglicismos, mas são apenas uma retomada das origens", comenta Dinah Callou, do departamento de letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Nesse cenário, aprender o mandarim vai subindo para o topo das prioridades. Mas também é conveniente dar-se atenção ao espanhol e ao árabe, que podem se tornar suficientemente importantes em algumas regiões do mundo, para incomodar a supremacia do inglês. Apesar da relevância proporcional do japonês e do francês, esses dois idiomas não desfrutam mais do status de outros tempos.

O espanhol avança rápido e já tem a mesma proporção do inglês em termos de falantes nativos - é o idioma de aproximadamente 380 milhões de pessoas no mundo, além de outros 100 milhões que o falam como uma segunda língua. Pelo número de usuários, já é a terceira língua do mundo. Na última década, especialmente, a demanda por cursos de espanhol cresceu em todo o mundo. Nos EUA, a língua já desafia o inglês. Há cidades com predominância da língua de Miguel de Cervantes sobre a de Shakespeare. "O espanhol também tem se expandido em importância econômica, tanto nos EUA quanto na América Latina", mostrou a pesquisa, pois é uma língua internacional e idioma oficial de 21 países.

O árabe também tem conquistado importância econômica maior no mundo global como efeito colateral do crescimento demográfico mais rápido entre as populações que o têm como idioma nativo. Mas também é notória a expansão de seu uso em outros lugares, o que lhe dá um certo status transnacional, diz o estudo encomendado pelo British Council.

Roberto Machado, diretor da Michael Page International no Rio, empresa de colocação de executivos, observa que quem conhece os idiomas dos países emergentes pode ter um diferencial na carreira a médio prazo. "O volume de negócios com a China teve aumento significativo e quem vai trabalhar naquele país deve procurar fazer um curso de chinês. Inglês não é mais diferencial. Existe procura grande também por profissionais que tenham fluência em espanhol", diz Machado.

As projeções apontam que o mandarim é uma língua na mais pura ascensão. De acordo com Graddol, o setor de serviços chinês responde por cerca de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, que cresce a 10% ao ano. O segmento promove sempre demanda maior por línguas, pois exige melhor nível de comunicação do que o setor industrial. O relatório também revela grande interesse pela língua chinesa na Ásia, na Europa e nos EUA. Não por acaso, o governo chinês abriu o primeiro Instituto Confúcio, de promoção e divulgação do ensino do mandarim, na Coréia, em 2004. Atualmente, existem sedes do instituto em diversos países, como Quênia, Austrália, EUA, Dinamarca e Portugal.

Em 1995, havia cerca de 5 mil estrangeiros inscritos para as provas de proficiência em chinês que são aplicadas anualmente no mundo pela Universidade de Pequim. Em 2005, cerca de 40 mil estrangeiros se inscreveram para os exames. Atualmente, estima-se que 30 milhões de pessoas estejam estudando mandarim. As expectativas do governo chinês são de que esse número chegue a 100 milhões em poucos anos.

O crescimento do ensino de mandarim no Brasil começou com a vinda de empresas chinesas para o país e se intensificou a partir da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China em 2004. Foi nessa época que Victor Key Harada e três sócios abriram o curso Mandarim, que acaba de estabelecer sua segunda filial na capital paulista. A maioria dos alunos é de profissionais de comércio exterior, administração, engenharia, direito e relações internacionais. Também há procura de estudantes secundaristas, que já pensam em seus futuros currículos.

Até o fim deste ano, a chinesa Yang Aiping inaugura a quarta filial do Centro Cultural China-Brasil, em Brasília. Professora de línguas, há oito anos ela chegou ao Rio, a caminho de Washington, onde ia fazer uma especialização em inglês. Apaixonou-se pelo Brasil, ingressou no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e passou a ensinar português para chineses e mandarim para brasileiros. Publicou cinco livros destinados ao ensino de chinês a brasileiros antes de, em 2004, montar o curso, que hoje tem 12 professores, todos chineses, e 200 alunos nas três filiais cariocas. De início, executivos, advogados e diplomatas eram a maioria dos alunos. Hoje não existe um perfil definido e uma das turmas é de crianças. "Português é mais difícil do que mandarim. O curso básico tem dois anos e quem termina sai com um vocabulário mínimo de 500 palavras", afirma Yang.

Depois do inglês, o curso de chinês é um dos mais procurados no Instituto de Pesquisa de Línguas (Ipel) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A dificuldade no aprendizado desestimula alguns alunos, diz a coordenadora, Márcia Lobianco Amorim, mas a maioria persiste, por entender que está fazendo um acréscimo importante ao currículo. "O imediatismo leva muita gente a acreditar que em um semestre sairá falando chinês. Quem está aprendendo por diletantismo, desiste. Fica quem quer investir na carreira."

Uma das especialidades que tem grande número de inscrições, na PUC-RJ, é a de chinês instrumental para negócios. "É específico para quem vai viajar ou morar na China, para profissionais liberais de grandes empresas."

Segundo Machado, da Michael Page, houve uma estabilização na importância do conhecimento de línguas européias, como alemão, francês e italiano. "Muita gente está se antecipando às exigências do mercado e investe no conhecimento de chinês e russo. Espanhol é um idioma em alta, principalmente por causa da América Latina. A tendência do mercado é buscar profissionais com boa vivência em suas especialidades, mas conhecer outra língua, principalmente quando se está fazendo negócios, é um facilitador", reconhece.

Os movimentos migratórios, que têm crescido nos últimos anos, também influem no cenário linguístico. Entre 1960 e 2000, 3% da população mundial (175 milhões de pessoas, pouco menos do que a população brasileira) mudaram de país em busca de uma vida melhor. De acordo com Graddol, em Londres, uma das cidades onde é maior a variedade lingüística, falam-se mais de 300 idiomas nas escolas. No entanto, com o crescimento das economias emergentes, muitos exilados em países desenvolvidos estão voltando aos seus países de origem com filhos nascidos e criados em outra língua. "Essas crianças enfrentam problemas de identidade. Muitas vezes, integrantes dessas famílias têm a sensação de que pertencem a outro lugar", comenta Graddol.

Essa sensação se torna cada vez mais comum com a globalização intensificada. O headhunter Robert Wong aprendeu mandarim em casa. Nascido na China, veio para o Brasil aos 3 anos e não encontrou dificuldades em conciliar o uso dos dois idiomas. Quinze anos atrás, recomendava a executivos que aprendessem inglês, uma língua latina e uma língua oriental.

"Se quisessem um investimento de curto prazo, deveriam aprender japonês. Se preferissem um investimento a longo prazo, que estudassem chinês. No entanto, o chinês passou a ser importante bem antes do que imaginava", reconhece Wong, que não vê diminuição do interesse pelo inglês em termos absolutos: "Os anglo-saxões impuseram sua impressão digital no mundo, reforçando seu domínio de uma forma simpática, com a disseminação de sua cultura, de sua literatura. O Ocidente se acostumou à música popular em língua inglesa, ao cinema falando inglês. E na China, na Rússia, até em Cuba, os contratos são redigidos em inglês".

Para Wong, o declínio do inglês ainda está distante. Os próprios chineses são um dos povos que mais estudam o idioma. Se tivesse que recomendar o aprendizado de idiomas estrangeiros a executivos brasileiros, Wong continuaria apostando no chinês. Para ele, o bom executivo pode até se expressar por meio de um intérprete, mas é essencial conhecer um pouco da cultura do país onde se fará negócios. "Durante a Copa do Mundo, todos viram o intérprete japonês do Zico, que tentava imitar os gestos do técnico quando ele passava instruções para os jogadores. Mais do que um conhecimento profundo do idioma, quando ele é tão diferente da língua materna, é necessário desenvolver a sensibilidade, a flexibilidade, a capacidade de adaptar-se e adequar-se à cultura do outro país", diz.

Wong lembra que os orientais não têm formas diferentes de encarar o mundo corporativo. Na década de 1980, ele morou alguns anos na China, que havia acabado de reatar relações com o Japão. "Era comum que executivos japoneses de grandes empresas, antes de começarem a trabalhar na China, vivessem no país por períodos longos, de até dois anos, apenas para compreenderem a cultura local. Era um investimento em formação, para que soubessem criar bons relacionamentos comerciais."

Historicamente, as línguas vivem seu apogeu e depois entram em declínio. O grego, por exemplo, foi a língua mais disseminada entre as nações após a criação do mundo helênico por Alexandre Magno. Na Idade Média, o latim passou a ser língua franca e deu origem a muitas línguas modernas, como o português e o espanhol. Durante a Renascença, o italiano tornou-se o idioma mais difundido, por causa da força do comércio, da arte e da música. Durante as descobertas marítimas, o português foi também muito divulgado, mas ,com o declínio da economia portuguesa, cedeu espaço ao espanhol, por causa do domínio hispânico na ocupação de novas terras. Com a Revolução Francesa, o francês tornou-se o idioma da elite e a Revolução Industrial fez do inglês o que ele é hoje. Qual será seu futuro?

2 comentários:

Jonas Prochownik disse...

Olga, não consegui ler tudo.
E olha que sou ruiva (tingida), viu !
Você é uma intelectual.
:)

Olga de Mello disse...

Quem me dera! A matéria não é só minha, mas do Robinson Borges, este sim, responsável pela maior parte das reflexões na matéria!
Beijo!