1.10.06

Na Continente Multicultural

CONVERSA
PAULO LINS: “Há muita lenda em torno da vida de bandido”
Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, fala do Estácio – tema de seu novo livro –, das lendas em torno da vida de bandido e de sua experiência como roteirista de cinema

Por Olga de Mello

Passar em frente a um dos muitos botequins no bairro carioca do Estácio era uma aventura apavorante para o menino Paulo Lins na década de 50. Quando saía sem a companhia – e a proteção – de um adulto, atravessava correndo para a outra calçada, a fim de evitar os bares, onde, segundo sua mãe, “só tinha bandido e vagabundo”. Levou tempo até descobrir que os malandros que a mãe apontava eram Nélson Cavaquinho, Cartola e outros bambas, que ficavam nos bares conversando, bebendo e criando obras-primas da MPB. Foi no Estácio que Paulo Lins nasceu, há 48 anos. E é o Estácio, em épocas diversas, o cenário e o eixo de seu novo romance, que será lançado em 2007.


Há quem diga que o segundo romance é o mais difícil para o escritor do que toda a sua obra. Como o senhor está enfrentando esta pressão?

Na verdade, este é o meu primeiro romance, ou melhor, a primeira proposta de romance que eu fiz, muitos anos atrás. Cheguei a botar alguma coisa no papel muito antes de Cidade de Deus. Queria juntar o samba, a umbanda e a história do negro no Brasil. Então, a idéia é antiga. Mas, aí, comecei a trabalhar na pesquisa da (socióloga) Alba Zaluar na Cidade de Deus. Fui chamado porque eu conhecia os moradores, tinha crescido ali. Ouvia histórias, recordava outras. Então, acabei sendo convencido a escrever sobre o crescimento da violência e a formação daquela comunidade. Agora, retomei minha primeira história. Por isso nem dá para sentir medo da segunda obra. Para ser mais preciso, este será meu terceiro livro, pois o primeiro foi Sob o Sol, de poesias.

Como em Cidade de Deus, o novo romance terá uma linguagem reproduzindo a forma de falar de cada época em que a história se passa?

Pensei que uma linguagem mais acessível, bem fiel à maneira como o povo falava, atrairia aquela população que eu mostrava ali, atingiria mais aquele público que estava sendo ali retratado. Não foi isso que aconteceu. O livro foi lido pelos consumidores habituais de livro, a classe média e a elite. Os pobres só se viram depois, com o filme. Nesta história de agora eu teria muita dificuldade em recriar a linguagem dos anos 30, precisaria inventar uma linguagem oral, inventar um idioma próprio. Ia ficar muito Guimarães Rosa, então, optei pelo uso do coloquial, com algumas gírias.


A história vem de suas experiências como morador do Estácio?

Na verdade, ele vem do medo que eu sentia dos sambistas. O Estácio era o centro nervoso do samba. Eu queria contar um pouco daquele Estácio, queria falar sobre o bairro, a música e os negros no Brasil. Mostrar um Brasil ainda mais difícil para o negro do que o país que conhecemos agora. O samba começou a se popularizar na década de 20, mas sambista não tinha o mesmo status que hoje em dia, não. A valorização começou bem mais tarde, em meados da década de 60. O preconceito contra o negro e suas manifestações era aberto. Ninguém respeitava umbanda. Havia perseguição da polícia que, não raro, enquadrava todos por vadiagem. Se até hoje o negro é perseguido, imagina há 40 anos.

Por que sua família saiu do Estácio, bairro central do Rio, para a Cidade de Deus, na época classificada como zona rural?

Foi o sonho da casa própria. Meu pai queria sair do aluguel, por isso nos mudamos, numa trajetória diferente dos outros moradores da Cidade de Deus, que haviam sido removidos de favelas no Centro. Para mim foi uma festa. A Cidade de Deus parecia mais uma estrada empoeirada, mas tinha mato, rio. Fui morar na roça, subir em árvore, brincar o dia inteiro com a molecada, a melhor das infâncias.

Sua formação foi diferente dos outros meninos da Cidade de Deus?

Muito, pois não precisei ajudar a sustentar a família. Minhas irmãs mais velhas completaram o secundário e foram trabalhar. Eu pude fazer Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E a vida é muito diferente para quem pode estudar, o ensino sempre traz algo de bom. Até uns anos atrás, eu sempre me encontrava com ex-colegas de colégio da Cidade de Deus. Quase todos tiveram que trabalhar muito cedo. Hoje, há campanhas para manter as crianças na escola, mas é raro encontrar projetos sociais que não privilegiem o aprendizado profissionalizante. O Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré é um dos poucos a dedicar-se essencialmente a estimular os meninos pobres a fazer faculdade. Quem vai para a universidade sempre melhora de vida.

Como a sua vida mudou depois do lançamento de Cidade de Deus?

O livro foi bem recebido, mas nem chegou perto do sucesso do filme, que teve mais do que a boa direção do Fernando Meirelles – um elenco extremamente talentoso. Foi o filme que botou a Cidade de Deus no mapa do planeta. Até hoje eu estranho, porque o livro acabou sendo lançado em 30 países, teve mais de 25 traduções. Aí, estou na Finlândia participando desses lançamentos e vem uma pessoa falar que leu a minha história. Tudo isso me levou a deixar o Magistério, os convites foram surgindo, outros tipos de trabalho também. Gosto de criança, sinto saudades do Magistério, porque sala de aula rejuvenesce.

O reconhecimento da chamada cultura da periferia veio a partir de Cidade de Deus?

Naquele momento estavam surgindo o Afroreggae, o Rappa, Seu Jorge. Não havia música vinda das comunidades. Hoje, o pessoal está se expressando e entrando no mercado, que antes existia muito distante da manifestação da periferia. Certamente houve uma inclusão cultural da periferia depois de Cidade de Deus. No entanto, a inclusão social e econômica não acompanharam essa inclusão cultural. Continuamos um país sem profissionais liberais negros, o que só vai se modificar com um investimento político maciço em educação.


Como é viver da escrita?

Em 2004, fiz o roteiro de Quase Dois Irmãos, com Lúcia Murat. Atualmente, tem o romance, mas além dele estou trabalhando no roteiro de Beirando a Maré, que Lúcia Murat deve começar a rodar este ano, e A História de Dé, de Breno Silveira, cujas filmagens serão em 2007. A literatura é um ofício muito solitário. Roteiro é divertido, muda o tempo todo, tem muita gente para mexer. Ou é a locação que fica muito cara ou é o ator que não acha sua fala verossímil. É bom porque se trabalha em equipe, embora seja arte de segunda. Roteiro é treino, filme é que é jogo.

(Leia a entrevista na íntegra, na edição nº 70 da Revista Continente Multicultural. Já nas bancas)


Olga de Mello é jornalista.

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