4.1.08

Para refletir

Dez passos rumo ao desprestígio
Tendências do ano que se encerra fortalecem impressão de que o mundo literário está perdendo sua representatividade

Alcir Pécora

Repassando 2007 mentalmente, me vieram à cabeça as seguintes tendências no campo da literatura, umas novas, outras que só confirmam as observadas nos anos mais recentes:

1. A proliferação de Flips, Flaps, Flops, Baladas e Copas Literárias, e até Raves Culturais, nas quais a literatura aparentemente se afirma como evento globalizado de massa ou motivo de festa popular, associada a fenômenos alegadamente deleitosos como batuque, botequim, noitada, e, por que não?, celebridades, pois nem elas querem ficar por fora da grande “novidade” da leitura, assim como os novos “leitores” não querem deixar de tirar uma lasquinha ao vivo de seu astro, que digo?, de seu “autor favorito”. Dessa tendência, a pergunta relevante é saber em que medida a imaginação da literatura, trabalhada pelo marketing dito “cultural”, pode contribuir para incrementar o hábito festeiro, pois a questão contrária, isto é, de que modo a festa pode contribuir para a literatura, é apenas uma piada de salão.

2. A afirmação dos concursos literários, agora expandidos até para dentro da universidade, os quais, sob a intenção declarada de promover a literatura e descobrir novos talentos, acabam por premiar o mediano - o que há de mais intolerável em literatura, segundo Horácio -, pois os mais diferentes sistemas de votação, quando não são farsas descaradas em favor de amigos, favorecem os títulos que mais aparecem nas listas, em detrimento daqueles títulos que, por ser de difícil assimilação ou de pouco consenso, e, portanto, com alguma chance de apresentar interesse, jamais obtêm as médias da premiação. Ou seja, um concurso, a não ser por azar, só premia o premiável, que é um outro nome para o medíocre.

3. A implantação definitiva da ciberliteratura, atualmente já escrita com “i” e pronunciada do mesmo jeito, na qual os autores jovens, afetos a computadores e informática, supostamente deram de ombros às recusas de publicação das editoras tradicionais ou às críticas caretas dos velhos críticos e se lançaram de cabeça na internet, sendo lidos pelos seus amigos, pela sua comunidade, e até pela parcela dos velhos críticos desejosos de continuar eternamente jovens. Dentre estes, há duas tendências: a dos que acham que a ciberliteratura é uma nova forma de erudição, pois os “jovens internautas” emulam os grandes autores da literatura brasileira e mundial, e a dos que pensam que a “explosão” das novas linguagens produz um tal frenesi semiótico que nada se pode dizer desses autores, senão estar atônito a admirar a coragem com que montam o cavalo xucro das novas tecnologias.

4. A transferência dos reality shows da TV para os best-sellers das editoras mais aventureiras, que usam seus olheiros para descobrir “testemunhos” de participantes de toda forma de vida secreta, marginal, imoral, cujos relatos despudoradamente crus e confessionais excitam a imaginação dos leitores fugazes da classe média, que tudo o que conhecem de excessivo, por experiência própria, é trabalho e trânsito. Nesta tendência, têm lugar destacado as confissões de prostitutas, de traficantes descolados em sociologia, e, acima de todos, as confissões sexuais de adolescentes perdidas num mundo cheio de confusão e ecstasy. Se o primeiro item desta lista promete que literatura também é festa, este evidencia que ela, potencialmente, é também esbórnia, bandalheira, mundo-cão - infelizmente, desta vez, sem a trilha sonora de Riz Ortolani.

5. A volta da velha noção de “geração”, a qual, depois de ter logrado um bem-sucedido hype na Vila Madalena com a invenção da saudosa “geração 90”, presta-se ainda a um tour de force para requentar o mesmo, seja trocando cada vez mais velozmente os seus algarismos (“00”, “0.5”), seja postulando a geração “entre séculos”, ou até a geração “não-geração”. Tudo para assegurar que haja alguma movimentação literária fora da exigência de inovação inerente ao campo literário, ou para forjar um atalho que submeta a literatura à idade dos seus praticantes, uma vez que parece impossível fazê-lo por meio do nível da sua criação.

6. A multiplicação de livros com testemunhos tocantes em zonas de conflito do mundo globalizado, onde cachorrinhos, livrarias, pipas e outros objetos amigáveis reencontram um hálito de humanidade em situações brutais de guerras. Nesses relatos, os elementos tribais em conflito ganham toques pitorescos e culturais e os paradoxos e contradições dos interesses do capital internacional oferecem rica oportunidade para que os ocidentais céticos ou cínicos redescubram a riqueza e a esperança “pós-humanas” escondidas no mundo primitivo.

7. O uso da literatura como repertório de narrativas edificantes, figuras comoventes e sentenças judiciosas para auxílio da filosofia em situações que demandem a adesão imediata do ouvinte não especializado, como no caso exemplar de programas de TV, onde filósofos sem preconceitos em relação à grande mídia se esforçam para ajudar o cidadão comum a encontrar a luz compreensiva da... cultura.

8. O uso da literatura como repertório de narrativas, figuras e sentenças de impacto para uso de nietzschianos e deleuzianos desbundados, que acham que o que realmente importa, mais do que os estudos de Filosofia e Literatura, é a Vida, ela mesma, cuja logogenia multívoca, pulsando nos devires, é inapreensível por meras disciplinas acadêmicas. Contra o estudo árido e estéril, a Vida latente na literatura da rua, fonte privilegiada de hibridismos culturais, pode prover a filosofia da sensualidade e fluidez do papo-cabeça.

9. No âmbito da crítica universitária, a tendência mais notável, que entra em cena pisando firme sobre a antes obrigatória modéstia afetada, é a autopromoção, que faz de cada pesquisador um microempresário, com um vibrante e crescente repertório de truques: a “autocitação”; os quotation-buddies; a disposição de “formar quadros”, em vez de simplesmente dar aulas; a implantação de “linhas de pesquisa”, em vez do mero estudo da matéria, e, de modo genérico, a inflação do currículo, ou, para os íntimos, a turbinagem do Lattes -, por exemplo, com a organização de livros com artigos de amigos, que ninguém leu, nem quer ler, nem vale a pena ler, sem nenhuma relação entre si a não ser a irrelevância hiperprodutiva. Variante do item é a publicação de livros de homenagens a professores, os quais, mais ou menos constrangidos pelas exéquias precoces, são obrigados a se transferir para o limbo olímpico. Mais constrangidos ficariam se adivinhassem que a motivação derradeira das “homenagens” é o esforço de obter publicações do grupo 1 da Capes, e, por conseguinte, arrancar boas notas para seu programa de pós, o que não deixa de dar certa nota cívica ao oportunismo.

10. Ainda no âmbito da crítica universitária, o dernier cri é dado pela autonomização de um campo de pensamento sobre a literatura que pode se dispensar da literatura, isto é, um campo que se afirma como teoria pura, independente da literatura, assim como da filosofia. Com balizas atribuídas a autores como Benjamin, Adorno, Derrida, Lacan, Lévinas, Habermas, Jameson, Agamben, etc. , o novo campo garante que não há privilégio maior para a literatura do que fornecer modelos de reflexão para a “teoria”.

Em conjunto, todos os dez itens, em maior ou menor grau, com mais ou menos euforia, apontam para um mesmo ar do tempo em que se consolida um enorme desprestígio da literatura como campo de pensamento e cultivo, de modo que, para reanimá-la de seu túmulo, é preciso sacudi-la com festas, cortejá-la com prêmios, atualizá-la com computadores, torná-la sexualmente atraente e visualmente apelativa, descobri-la índice de partido jovem, levantá-la como bandeira da paz e amor em meio à guerra, vibrá-la sentenciosa e edificante, eletrizá-la de vitalismo, inflá-la com índices das agências de fomento, e, por fim, embora o desprestígio não dê sinal de ter um fim, ostentá-la como exemplo de repertório empírico à disposição de uma metalinguagem que lhe é vastamente superior. Tudo somado, fica bem claro que literatura, hoje, vive aquilo que os americanos chamam de “downhill”, e nós, em tradução grosseira, de descida da rampa. Caso o diagnóstico pareça demasiado duro a espíritos sensíveis e esperançosos, o desprestígio sempre poderá ser traduzido por superprestígio, à maneira dialética da bossa nacional.

Alcir Pécora é professor livre-docente de Teoria e Crítica Literária e diretor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp
O artigo foi publicado no Estado de SPaulo no último dia 30.

12 comentários:

Ricardo C. disse...

Didático, sem ser enfadonho. Crítico, sem ser críptico. Claro, sem ser simplório...
Ótimo, Olga!

Jôka P. disse...

Alcir Pécora é um escritor rico e famoso ou só um intelectual teórico que critica os bem-sucedidos, Olga ?

Eduardo Graca disse...

Eu não agüento mais as pipas! Adorei. Rabiola, neles, Olga! E com cerol.

Ricardo C. disse...

Jôka P., permita-me discordar, por conta dessa discussão que volta e meia surge a respeito do lugar da crítica. Parece que por conta dessa conversa de que no Brasil o sucesso alheio vira ofensa - com a qual concordo boa parte das vezes, diga-se de passagem -, será que agora tb não se pode mais tecer considerações críticas sobre nada, e que a medida de alguém deve passar sempre por vendagem de exemplares de seja lá o que for? Voltemos ao exemplo mais velho que me ocorre, o de Van Gogh não ter vendido nada em vida. Se ele por acaso tivesse pensado em escrever criticamente sobre a pintura de seus contemporâneos os seus escritos nada valeriam porque ele nada vendeu? Significaria que ele não devia passar de um ressentido, de um medíocre, invejoso do sucesso alheio, que teria que comer muito feijão e vender feito um Paulo Coelho para ganhar a autoridade para dizer algo que fosse considerado válido?
Eu proporia que vc relesse as considerações do Pécora e fizesse as suas críticas. Vou ter o maior prazer de voltar aqui e ler.
Cordiais saudações!

Olga de Mello disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Olga de Mello disse...

Ai, consegui levantar polêmica no blog e com um texto alheio... Ou seja, jamais chegarei a ser um Paulo Francis, um Caetano, com provocações próprias...
Enfim, achei o texto muito bem posto, pois ele não critica apenas a indústria do entretenimento, que, longe de somente se prestar a criar produtos para divertir, quer é lucrar muito, fazendo de toda a expressão cultural uma fonte de faturamento. O Pécora fala também sobre outros aspectos da cena cultural brasileira, demolindo, com muita coragem, algumas correntes da atualidade, entre elas as exibições de erudição acadêmica, insuportáveis e muito mais vazias do que percebem os veículos de comunicação.
É bom encontrar alguém com coragem para incitar a reflexão sobre o momento que vivemos.
Quanto à crítica em si: pessoalmente nada tenho contra o sucesso dos fenômenos da cultura de massa, os cantores sertanejos, os escritores de literatura de entretenimento. Tenho é contra o conteúdo deles. Se eles ganham dinheiro honestamente, não há nada demais. Agora, temos o direito de rejeitar o lixo cultural, a mediocridade. E nem é necessário procurar embasamento acadêmico com isso.
Beijo, voltem, estou AMANDO a mobilização de vocês...

Olga de Mello disse...

Fui incluir novidades no post, eliminei outro.
Um dia ainda aprendo a mexer nisso...

dade amorim disse...

Olga, as críticas do Pécora não só procedem como podem ser resumidas nessa frase certeira e que parece tão ofensiva a quem de fato a justifica: o interesse do mercado tem sido, há décadas, o eixo em torno do qual se movem a cultura, as artes e a vida acadêmica. É um modo redutor de ver a coisa, mas explica grande parte da realidade que Pécora descreve tão bem em seus dez itens.
Beijo.

Kristal disse...

Ola, querida Olga !
Vim participar dessa mobilização emocionante pela discussão democrática sobre valores literários.
Meus autores favoritos são as mulheres vitoriosas, na verdade de best-sellers comerciais de grande sucesso mundial, como Judith Krantz, Jacqueline Susan e Jackie Collins, todas ricas, chiquérrimas, lindas,poderosas e fabulosas.
Nunca suportei as feiosas e relaxadas Marguerite Youcenar ou Simone Beauvoir.

Beijos kristalinos !

Olga de Mello disse...

Kristal, essa personagem poderosérrima é uma verdadeira mulher descrita por Jackie Collins!!!! Tenho certeza, porém, que, off the impersonator, vc, no mundinho real copacabanense há de se comover com a beleza de "Uma Mulher Inacabada", da Beauvoir - que, aliás, foi uma belíssima senhora -, ou com a descrição mais romântica e erótica que todas as mulheres do mundo gostariam de personificar em "O Amante", da Marguerite Duras, uma velhota feiosa de doer.
Essas são as personagens que ficam na alma.
E, pasme, não sou uma especialista nem de longe na Yourcenar.

Jôka P. disse...

Gente que fubá grosso !
Um babbado forte essa arena hoje, hein, Olga !!!
WOOO HOOO !!!

Kristal disse...

Olga, existe um blog copiando posts inteiros, copiou o meu na maior cara de pau.

Veja só:

http://budadacompaixao.blogspot.com/2008/01/com-que-cara.html

Fazer reverências com o chapéu alheio, além de um atestado de falta de imaginação e de ética é muita cara de pau ! Francamente !