A vida é um livro aberto
Por Olga de Mello | Para o Valor, do Rio
Dois romances e um ensaio já iniciados aguardam o
retorno de Alberto Manguel à sua casa, em Poitiers, na França. Nas últimas
semanas, o escritor e ensaísta compareceu a eventos literários no Chile, na
Inglaterra e na Itália até chegar ao Brasil, onde veio abrir a 7ª Bienal do
Livro de Campos dos Goytacazes, no norte do Estado do Rio. "Os escritores
se transformaram em caixeiros-viajantes que ganham a vida em leituras e
palestras. Isso acaba prejudicando o trabalho de quem precisa escrever",
lamentou Manguel, em entrevista ao Valor, no Rio, onde, na noite
anterior, esbanjava simpatia no encontro com cerca de cem leitores na pequena
Biblioteca Popular de Botafogo.
As viagens abalam a rotina deste argentino
naturalizado canadense, que gosta de ler Dante Alighieri diariamente e escrever
durante as manhãs. Por falta de tempo, recusa boa parte dos convites que
recebe. A princípio, rejeita qualquer atividade de promoção de livros nos
Estados Unidos.
"As 'book tours' começaram no século XIX. Era
um acontecimento na vida de escritores como Charles Dickens. Mas eles
participavam de uma, no máximo duas, dessas viagens. No século XX, elas tomaram
um vulto empresarial nos Estados Unidos, onde, atualmente, os agentes
literários e as editoras montam sessões contínuas com diferentes escritores se
apresentando ao público em grandes livrarias. Não faço mais isso. Hoje, quem
quiser ver e ouvir um escritor entra no YouTube", diz.
Em sua 30ª vinda ao Brasil - sempre a trabalho -,
atendeu ao chamado para falar sobre a leitura como patrimônio pessoal na era
das virtualidades. "Essa profusão de festas literárias em diversos lugares
é excelente para os leitores e uma oportunidade para os escritores trocarem
ideias, pois, cumprindo agendas lotadas, mal podem se ver", observa
Manguel, que aproveitou o festival L'Altra Metà del Libro, que organizou há
duas semanas, em Gênova, para se reencontrar com amigos, como os romancistas
Ian McEwan e Daniel Pennac. Nos próximos dias, já tem outro compromisso em Paris.
E no ano que vem coordenará outro festival, na cidade francesa de Nantes.
O calendário apertado não o convenceu a adotar
comodidades como celular e e-mail, embora escreva em computador. Quando viaja,
dita os artigos a um digitador, que os envia para quem o contrata. Reconhece a
utilidade da tecnologia, mas prefere permanecer distante de algumas
facilidades, evitando a leitura em ambientes virtuais.
"Meu filho assiste a filmes numa tela do
tamanho de um selo. Eu não consigo. O e-reader é prático para o leitor que vive
em trânsito, que não precisa carregar peso na bagagem, mas eu gosto do contato
com o livro sólido, físico. A experiência de ler no papel é totalmente
diferente da leitura na internet, que acaba dispersando o leitor", diz
Manguel, que cultiva hábitos quase anacrônicos, como o de trocar cartas com
amigos escritores. Na biblioteca que construiu em Poitiers tem cerca de 40 mil
volumes, "todos abertos, nem todos lidos", organizados por temas nem
sempre tão eruditos como se imagina de um dos mais reconhecidos especialistas
em história da leitura e bibliofilia. Ao lado de livros sobre as lendas de Don
Juan e do Judeu Errante, há muito sobre gastronomia e novelas policiais.
"Só leio por prazer, o que acontece nas minhas leituras diárias de Dante e
também quando pego um livro de Agatha Christie, que escrevia bem.
Entretenimento não precisa ser vazio."
É com paixão de militante que ele fala contra o
mercado editorial que privilegia a publicação de conteúdos medíocres. Fora do
Brasil, afirma, os melhores textos têm sido lançados por editoras
universitárias, enquanto as demais preferem publicar gêneros de boa vendagem,
seguindo a tendência do momento.
"Uma editora deveria ter o compromisso de
formar leitores. Eu me preocupo em ver que elas se tornaram cúmplices da
formação não de leitores, mas de consumidores para a sociedade. Quando elas se
tornam empresas gigantescas que compram editoras pequenas, estão destruindo a
literatura. Seis meses antes de ganhar o Nobel de Literatura, em 2007, Doris
Lessing me contou que sua última novela estava prestes a ser recusada por seus
editores nos Estados Unidos e na Inglaterra, porque ela escrevia textos muito
longos para ser apreciados por um público mais jovem. Isso é um desrespeito com
uma escritora de 88 anos, então, com uma contribuição inestimável à literatura
britânica. Aí veio o anúncio da premiação e, naturalmente, a situação
mudou", lembra-se.
A incorporação de pequenas editoras e livrarias
pelos gigantes do mercado também contribui para a perda de qualidade da
literatura. O tratamento impessoal dispensado ao leitor nas grandes livrarias
mostra o interesse em fomentar só o consumo, diz Manguel, que não se deixa
levar pelo discurso de que os livros comerciais sustentam a publicação dos que
têm mais qualidade. Falta espírito crítico aos leitores, afirma o escritor, que
se surpreendeu com o sucesso de livros eróticos entre mulheres jovens, quando
as tramas enfatizam o arquétipo das protagonistas submissas.
"Se as mulheres são 70% dos leitores, deveriam
repudiar histórias que vão contra tudo o que se fez para estabelecer a posição
feminina na sociedade patriarcal do Ocidente. A maior violência nesses romances
não é sexual, mas o fato de impedirem as heroínas de questionar as ordens que
recebem dos homens. Isso reforça o mito da inferioridade feminina em pleno
século XXI, como se as mulheres não tivessem autonomia para tomar decisões
plenamente. Homens e mulheres devem, juntos, como leitores, membros da
sociedade, refletir sobre essa literatura que nega ao personagem o direito ao
questionamento", diz.
Apesar das políticas públicas de incentivo à
leitura, a sociedade desestimula os leitores, acredita Manguel: "A criança
que gosta de ler é rotulada como 'nerd' pelos colegas na escola. Isso porque a
leitura exercita o cérebro e vivemos uma época em que se recomenda ao jovem que
evite as dificuldades, entre elas ler o que vai desafiar seu intelecto. Cada
vez mais se compram livros superficiais, de textos curtos. Os leitores têm um
poder que eles próprios desconhecem. Deixar de lado livros sem conteúdo forçará
o mercado a procurar mais qualidade nas publicações".
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