28.1.05

Finalmente sou referência estatistica da violência! Meu telefone foi clonado! Na verdade, o telefone do trabalho que fica comigo. Quem mandou ser assessora de imprensa?

O aparelho de outra colega já havia sido clonado e ela previu que, depois de diversas ligações a cobrar de Uberlândia (por que Uberlândia?), meu telefone só receberia chamadas. Não deu outra. Mesmo com um novo aparelho em mãos, nada compensa a irritação em atender ligações a cobrar de gente que me perguntava, com a maior desfaçatez, qual era meu nome e de quem era o telefone. Recebendo amigos para a ceia de Natal, perdi a paciência e disse a um dos interlocutores que era melhor ele parar de me ligar, porque o telefone era de uma grande empresa e que seu número já estava anotado como suspeito de clonagem do aparelho. Desliguei tremendo, apavorada com a idéia de ele me localizar no Rio, pois os bandidos de Uberlândia devem ter ligação com os traficantes cariocas e virão todos atrás de mim, porque descobri o esquema deles.

Delírios à parte, vivemos tempos horrí­veis, em que até a natureza é furiosa e tresloucada, levando na enxurrada quem estava de papo pro ar ou ganhando muita grana com turistas em Phuket. Tive que ir ao Galeão no Dia de Natal, pegar meus filhos mais velhos, que vieram passar as férias comigo. Peguei a Avenida Brasil, temendo um tiroteio daqueles tão comuns na Linha Vermelha. Na Brasil, seguramente a mais pavorosa entrada de uma cidade no mundo inteiro, se ocorre uma dessas batalhas, a gente pode pegar um desvio entrando num bairro do subúrbio ou em alguma favela que não esteja participando do confronto.

Cheguei em casa, telefonei para Florianópolis para falar com a parentada. Um de meus primos sofreu um seqüestro relâmpago, foi levado por bandidos que queriam seu rádio, dinheiro, jóias (em Florianópolis ainda se usam jóias na rua. No caso do Leonardo, relógio e uma pulseira) e o celular. Ele estava chegando na casa da namorada e foi cercado por um bando. Cinco homens e uma mulher, todos fissurados por crack. Quis entregar o carro a eles, mas foi obrigado a dirigir até um fim de mundo qualquer da ilha e fazer dois cheques de R$ 25 para o traficante. Aproveitou um momento de descuido dos doidões para pegar o carro e fugir dos ladrões tão pés-de-chinelo que nem sabiam dirigir. E isso em Florianópolis, alardeada como a mais maravilhosa capital do País, com uma qualidade de vida que se esvai aos olhos dos moradores antigos. Estive lá em 2003, depois de uma ausência de 16 anos. As férias de minha infãncia e adolescência inteiras passei lá, ou melhor, se eu ia no verão, minhas primas vinham no inverno. Se eu ia pra lá no inverno, elas vinham no verão.

Foi ótimo enquanto durou. O sotaque dos catarinas acabou-se, abafado pelo paulistas televisivo que tomou conta da cidade. Os donos do sotaque fanhoso também invadiram a ilha, valoroso povoado de açorianos bravos, que enfrentavam aquele climinha infeliz do inverno (chuvinha e o maldito Vento Sul, o Minuano) e o calor inclemente do verão. Florianópolis, que meu avô só aceitou chamar por este nome na década de 60, tendo datado cartas de Desterro até então, era uma cidade muito interessante. Linda e com um povo engraçadíssimo, irônico, brincalhão, com mania de apelidar a todos os estrangeiros. Terra de pescadores e de grandes mentirosos, de gente muito friorenta e implicante, falando um português peculiar não apenas no sotaque, mas nas expressões que devem ter chegado com os açorianos, como “rapaz pequeno” para designar crianças pequeninas e “rapaz” para identificar meninos. Tudo com aqueles chiados e, sempre, na segunda pessoa. Atualmente, ainda há os que se traem no sotaque, mas os barrigas verdes da Ilha falam uma mistura de paulistês com lajeano. Além do falar caracterí­stico, modificaram a arquitetura da cidade, que cresceu verticalmente, totalmente copacabanizada. Pior que isso, virou quase uma Barra da Tijuca, com aqueles prédios de varandas compridas e estreitas, com andares de garagem, playground e piscina. A Lagoa da Conceição, onde havia poucas casas, hoje tem até aqueles centrinhos comerciais bonitinhos, iguais aos de Búzios ou Itaipava. As praias estão coalhadas de surfistas, mas parece que no inverno, eles ainda se retraem, porque é difí­cil suportar a chuvinha e o vento gélido.

É estranho voltar a um lugar uma geração mais tarde. É como conhecer uma criança e só voltar a vê-la adulta. À parte minhas recordações de outra Florianópolis, minha famí­lia se horroriza com a violência que lá chegou nesses 17 anos. Antes, eram apenas os argentinos que invadiram Canasvieiras e fizeram de Jurerê um bairro de mansões. Com o aumento do turismo, o tráfico se estabeleceu na cidade e deu no que deu. Já houve até tiroteio na rua de meu avô, onde moram alguns tios e primos meus. Em 44 anos de Rio de Janeiro, vi guardas dando tiros em Ipanema, fui assaltada bestamente duas vezes, dois de meus filhos sofreram assaltos, mas nada que se compare ao que meu primo foi submetido. Perto do que aconteceu ao Leonardo, discutir com a máfia da clonagem telefônica de Uberlândia é fací­limo. Que São Sebastião e Santa Catarina zelem por nós, mesmo os que não acreditam em divindades ou santos.

Multiply, 28/12/2004

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