19.4.05

Enquanto canto meu canto de saudade





Enquanto canto meu canto de saudade, você dorme e desconhece o sofrimento. Você me atrasa, paro e lhe escrevo, doida para lhe entregar num pedaço de papel meu amor tão concreto na distância. Sua voz me alcança às vezes, falando incoerentemente, tão errado ...
Queria tocar sua pele, sentir seus braços me enroscando, seu corpo quentinho, as pernas compridas e pesadas, sua figura miúda, seus dedos gelados e irrequietos. Os olhos de jabuticaba me perseguindo, sufocando com tanta intromissão. Seus gritos, seus murros em minha porta, seus telefonemas inconvenientes, suas observações impertinentes, seus resmungos, nossos embates, por que sinto falta disso tudo?
Estou refletindo sobre nós, quero mudar nossa relação, viver mais pra você, sem fugas, sem me esquivar tanto. Quero lhe inundar de paixão, de alegria, de boas recordações. Seu retorno acabará com minha tranqüilidade, a vida correrá, tenho tanto tempo para usufruir o mundo sem suas exigências agora. Sei que você voltará para mim. Nossa história foi selada quando você nasceu. Estaremos juntos até morrer.
Minha cama está larga, cabe tanta gente que não aparece. Posso dar festas, chegar em casa às 6 da manhã. Mas não há por quem. Mesmo só, quero adiar sua volta, estas são minhas férias, pra que você retorna tão cedo? E os ciúmes da desconhecida que o cumula de atenções, de seus parentes que têm você tão integralmente nesses poucos dias?
Você é minha propriedade, eu lhe pertenço, você viveu tanto tempo dentro de mim que fica difícil entender sua saída pro mundo. Eu tenho que lhe preparar para o mundo e me preparar para seguirmos caminhos paralelos. O mundo é nosso, enquanto eu puder lhe encantar com meus cantos de consolo e saudade por você.

em janeiro de 1988
ilustração - Nick Bantock - sem copyright, só pra informação mesmo

Nenhum comentário: