26.3.06

Esboço


Naquele tempo (*) já chegara à época em que perder os óculos integrara-se à rotina. A surdez chegaria em breve, vinha da mãe, que também sofria de presbiopia, o nome clínico da vista cansada. As duas deficiências precisavam ser encaradas com galhardia.
Compreendia, então, por que o pai lia grudado no papel, sem óculos, tão próximo das letras, voltando, a cada chamado, um olhar apertado e angustiado de quem sabe que não verá ou não entenderá aquele que pede sua atenção. Olhos míopes se apertam desde as bochechas, franzem não apenas o cenho, mas os lábios, esforçando-se para descobrir o que de seu dono desejam.
E quando os domingos eram lindos, exigindo que saísse, vinha o drama de enxergar sem ver corretamente, a inveja dos que conseguiam perceber detalhes sem a necessidade de lentes, óculos, pince-nez, binóculos, lupas, telescópios. (**) Uma ginástica mental antecedia os necessários movimentos novos para seu corpo cansado que não satisfazia mais às exigências da existência. Distinguir letrinhas miúdas quando estava com lentes de contato obrigava um dos braços a esticar-se ao máximo empunhando o papelucho, mas não tão distante que impedisse a simples visão dos caracteres que se juntavam em borrões indistintos. Melhor desistir da leitura ao se aparelhar para vislumbrar o que estivesse ao longe. Observaria paisagens, rostos, letreiros, mas não as atraentes letrinhas, as portas de seu mundo particular, intenso, divertido, único, pronto a ser desfrutado pelas outras pessoas que não se interessavam por este prazer solitário. Nos domingos de céu claro, a praia, os parques, a rua eram para encontrar gente, sentar-se em volta de mesas, rir alto, divertir-se a valer, sonhando em retornar ao conforto das janelas fechadas e do ar parado, empoeirado, turvo em que as letras promoviam passeios a locais bem mais fascinantes do que por onde costumava pisar.
Em alguns momentos, logo depois da tsunami, temia o mar verde escuro, inerte como os olhos de um gato adoentado, com pulsações baixas e solenes. O céu ficava azul escuro também, enquanto o perfume da água invadia os pulmões. Noutras ocasiões, o mar azul brilhante, ondas suaves e delicadas, o céu competindo com os tons azulados da água, a areia dourada aceleravam seus batimentos cardíacos e enchiam sua alma de felicidade inebriante. Sentia-se alvoroçada como uma menina apaixonada pela primeira vez na vida. Tentou traduzir tudo isso em textos escritos ali mesmo, sob a sombra da barraca de praia. Uma cena cinematográfica, da qual era protagonista e única espectadora. Nenhum esboço foi transformado em texto.

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