28.7.06

No Valor, hoje também!


Entrevista com o escritor Ricardo Piglia, mais conhecido aqui pelo "Plata Quemada", mas que tem uma forma peculiar e deliciosa de escrever.

Um falso mentiroso


A sinergia entre autobiografia, ensaio e história pode ser um caminho para a literatura contemporânea, acredita o escritor Ricardo Piglia, um dos mais aclamados ensaístas e romancistas da atualidade. "Não é o único, mas é o caminho que mais me interessa", disse ao Valor esse argentino de 61 anos que consegue trazer a ficção para dentro dos estudos literários, os quais, por vezes, pontua com intervenções de seu alter ego Emilio Renzi, personagem presente em diversas de suas obras. A combinação de fatos reais com ficção está dando certo: rendeu-lhe o Prêmio Planeta, em 1997, por "Dinheiro Queimado" (Companhia das Letras), em que conta um assalto a banco em 1965 e o cerco da polícia aos ladrões. No mês que vem, Piglia estará na Feira Literária de Paraty (Flip), onde vai falar sobre o quanto a literatura reflete a vida de quem a ela se dedica - seja como escritor ou leitor. Tese que ele já apresentou em livros, como a coletânea de ensaios "Formas Breves", lançada em 2004 pela mesma Companhia das Letras.

Cleo Velleda/Folha Imagem Em seus livros, Ricardo Piglia ultrapassa o limite dos gêneros, trazendo traços de ficção até para seus elogiados ensaios

No epílogo de "Formas Breves", Piglia afirmava que a crítica é a forma moderna da autobiografia. "A pessoa escreve sua vida quando crê escrever sobre suas leituras. Não é o inverso do 'Quixote'? O crítico é aquele que encontra sua vida no interior dos textos que lê", dizia no livro. No ensaio "O Último Leitor", a ser lançado em breve no Brasil, a vida e a leitura voltam a ser abordadas, sob novo ângulo.

"Busquei reconstruir a figura do leitor em situações distintas e em diferentes épocas. Segui os passos de Franz Kafka, de Che Guevara, de Jorge Luis Borges, e também os rastros de figuras imaginárias e muito intensas no papel de leitores, como Molly Bloom, de James Joyce; Phillip Marlowe, de Raymond Chandler; ou Anna Karenina, de Tolstoi. É um livro que escrevi ao longo de muitos anos, uma jornada pessoal pelas recordações e pelos sinais de minha própria experiência de leitor", diz Piglia, que atualmente trabalha no romance "Blanco Nocturno", uma história de amor passada na época da guerra das Malvinas, que tem um Emilio Renzi de 35 anos como protagonista.

"Hoje em dia, ele está com cerca de 60 anos. Para mim, Renzi é uma voz particular, um modo de ver a realidade. Renzi tem uma visão irônica sobre o mundo e sobre ele próprio. Sempre me divirto com suas aparições", esclarece Piglia.

Em "Blanco Nocturno" (o título remete à utilização de lentes especiais pelos soldados ingleses para enxergarem alvos durante a noite), Emilio Renzi se muda para uma casa de subúrbio, emprestada por um amigo que saiu em viagem, nos primeiros tempos da guerra que, por um breve momento, levantou o brio de um povo que sofria com a repressão violentíssima durante a ditadura militar que matou milhares de pessoas.

"Ele se isola, sente-se como um Robinson Crusoe, registrando os fatos em seus diários, vivendo escondido como se fosse um desertor. Na realidade, a novela acontece durante a guerra das Malvinas, mas a guerra não é o tema. Meu interesse foi trabalhar sobre o efeito dos fatos, mais do que sobre os fatos em si próprios. Trata-se de uma história de amor em tempos de guerra, algo que Hemingway mostrou em 'Adeus às Armas'. Além desse tema em comum, tem a noção de 'paz em separado', que é a chave em Hemingway e que surge como obsessão em Renzi, que se distancia da euforia generalizada que a guerra provocou na Argentina nas primeiras semanas e se mantém à parte."

"Blanco Nocturno" deverá estar terminado no próximo ano. A primeira versão já foi concluída, mas Ricardo Piglia acredita que escrever é, essencialmente, corrigir. Entre a primeira versão de "Dinheiro Queimado" e sua publicação passaram-se quase 30 anos. Durante esse intervalo, o escritor lançou outros livros, muitos entrelaçando o mundo real com a criação literária, algo que faz desde a década de 50, quando iniciou um diário que considera a história de sua relação com a linguagem. Nos cadernos, inventou uma vida diferente, o que teria tornado o diário uma espécie de romance, pois os acontecimentos descritos haviam ocorrido de outra forma. A superposição de realidade e ficção está presente em "Dinheiro Queimado": "Quase tudo ali foi inventado. Apenas as características dos personagens e a trama eram reais. Em 'A Invasão' há uma história, 'Mata Hari 55', que também foi trabalhada com a técnica de não-ficção".

Para Ricardo Piglia, é o cinema, hoje, na Argentina, que está mais ligado à realidade imediata do que a literatura: "Ao menos isso acontece com uma série de jovens cineastas que trabalham muito perto do documentário, dentro da perspectiva do neo-realismo italiano. Claro que também há outros cineastas argentinos maravilhosos, mais próximos de uma tradição literária, como é o caso de Lucrecia Martel ou de Martin Rejman".

Na literatura atual de seu país ele destaca Alan Pauls (autor de "Wasabi", lançado pela Iluminuras): "um excelente escritor das novas gerações, que é bem conhecido no Brasil, com diversas traduções. Pauls está dentro da melhor tradição da literatura argentina, embora tenhamos outros autores muito bons". Sobreviver de literatura na Argentina contemporânea sem fazer grandes concessões ao mercado, no entanto, é difícil, afirma Piglia, que também é professor de literatura da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.

"Em meu caso, sempre ganhei a vida lendo e ensinando modos de ler", diz. E ressalva que não tem um método especial para escrever: "Sempre trabalho de manhã. Meu único segredo consiste em levantar cedo e deixar o telefone desligado até o meio-dia". Para sua formação como leitor e escritor, ele aponta as influências de Borges e Ernest Hemingway: "Dois grandes artífices da forma breve, grandes mestres da alusão e da prosa precisa". Acha difícil destacar "uns poucos nomes dentro da riqueza da literatura atual", mas revela sua admiração pelos americanos Don DeLillo ("Cosmópolis") e Phillip Roth ("O Complexo de Portnoy"), pelo mexicano José Emilio Pacheco ("Alta Traicion"), o espanhol Enrique Vila-Matas ("O Mal de Montano") e a conterrânea Sylvia Molloy ("Em Breve Cárcere"). Dos brasileiros, conta que se sente muito próximo da obra de Silviano Santiago ("Pátria Estranha") . "E também, como não poderia deixar de ser, admiro e releio continuamente Guimarães Rosa e Clarice Lispector." Reler, aliás, é um de seus hábitos. "Basicamente estou sempre relendo. Nos últimos dias, voltei-me para 'Moby Dick', de Herman Melville, um romance que li muitas vezes sempre com o mesmo assombro e a sensação de que estou lendo pela primeira vez."

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