12/11/2013 às 00h00
Uma segunda história para Dorothy e o Homem de Lata
Um conto de fadas americano, uma peça de subversão socialista ou uma sátira aos Estados Unidos na chegada ao século XX. Essas definições foram atribuídas, ao longo de quase cem anos, a um dos clássicos da literatura infantil americana. Lançado em 1900, "O Mágico de Oz" tinha a explícita intenção do autor, L. Frank Baum, de oferecer diversão às crianças da época, dispensando o cunho moral dos contos de fadas europeus. Por isso, até hoje, os admiradores de Baum protestam contra as diferentes interpretações políticas e econômicas que os meios acadêmicos atribuem à série de livros sobre o reino de Oz.
"Sem desmerecer a excelente narrativa, não há como ignorar a hipótese de que Baum tenha montado uma segunda história, com críticas bem-humoradas a serem compreendidas apenas por leitores maduros", acredita o economista Gustavo Franco, que assina "O Mágico de Oz como Alegoria Política e Monetária" - o prefácio da nova edição ilustrada e comentada de "O Mágico de Oz", integrante da coleção de clássicos comentados e ilustrados da editora Zahar.
Desdenhado pela crítica especializada em literatura infanto-juvenil durante anos, "O Mágico de Oz" foi um sucesso em todas as formas que adquiriu: livro, montagens teatrais e em cinco versões cinematográficas. A mais famosa adaptação para o cinema, protagonizada por Judy Garland em 1939, não respeitou alguns detalhes importantes para a visão político-econômica das aventuras de Dorothy, entre elas a troca da cor dos sapatos que ela calça - originalmente prateados, transformaram-se em vermelhos, para se destacar no cenário da Estrada de Tijolos Amarelos.
Condenado como propaganda comunista pelo macarthismo, na década de 1950, o livro foi banido de algumas bibliotecas no período, quando o obstinado e temido Comitê de Atividades Antiamericanas buscava mensagens subliminares de esquerda em qualquer manifestação artística- incluindo a literatura pré-marxista. No Reino de Oz, apesar da existência de bruxas más, opressoras, a população não adoece, não envelhece e raramente alguém morre.
"Para alguns críticos, ali se delineia uma utopia americana que até pode ser confundida com um estado socialista. O irônico é que talvez as preocupações do macarthismo tenham acordado os leitores para essa simbologia. Nunca houve qualquer dúvida de que Baum aludia à história americana. A comparação de Oz com a era progressista dos Estados Unidos passou a ser um exercício proposto como dever de casa para estudantes secundaristas americanos", diz Franco.
Em 1964, Henry Littlefield, professor de história em escolas secundárias, publica o estudo "O Mágico de Oz: Uma parábola sobre o populismo", que considerava a obra uma sátira "política e monetária". A interpretação foi imediatamente rechaçada pelos admiradores de Baum, que não admitiam o aproveitamento político da história. Somente 20 anos mais tarde a versão de Littlefield conquistou o reconhecimento do meio acadêmico, quando o respeitado economista Hugh Rockoff escreveu um artigo corroborando sua interpretação. Para Rockoff, Baum criara não apenas uma história infantil, mas um "sofisticado comentário sobre os debates políticos e econômicos da era populista".
No prefácio de 25 páginas, Franco traça um panorama da época vivida por Baum, um homem de múltiplos talentos que ganhou a vida como empresário, jornalista, dramaturgo e ator, que usou sete pseudônimos diferentes para cada estilo literário em que criava, entre eles um romance para adultos sobre o Brasil e novelas para adolescentes. Na primeira aventura de Dorothy no Reino de Oz, é estabelecido um paralelo com os Estados Unidos daquele momento de intenso choque cultural pela chegada de imigrantes, além da agitação social pelos direitos dos trabalhadores urbanos e no campo. O movimento sufragista, que buscava dar o direito de voto às mulheres, também ganhava força. Entre as diferentes plataformas políticas em discussão estava o sistema monetário bimetálico, pelo qual o governo poderia emitir dinheiro com lastro em prata, como já fazia com o ouro, aumentando a oferta de moeda e crédito. O Partido do Povo, que abraçou a causa do bimetalismo, tinha bases sólidas no Kansas, o lar da menina Dorothy.
"Baum quis trabalhar com o imaginário de uma garotinha para usá-la como a alegoria de um país jovem. Littlefield foi o primeiro a perceber que ali estava a crônica de uma época, com a defesa do programa do Partido do Povo. Sempre que há uma citação aos sapatos prateados de Dorothy, eles aparecem em contraste com a Estrada de Tijolos Amarelos, em alusão clara ao bimetalismo. Toda a vez em que surge o ouro, a prata se apresenta. Não há nada acidental", diz Franco.
Para Littlefield, as analogias de Baum tinham tanta consistência que não poderiam ser consideradas apenas coincidências. A representação de toda a população americana está em diferentes personagens. Um grupo que se veste sempre de vermelho lembra os "rednecks", os camponeses do Sul dos Estados Unidos. O Espantalho representaria os fazendeiros em dificuldades, enquanto o Homem de Lata (originalmente, o Lenhador de Lata) seria o trabalhador urbano robotizado, que perde sua humanidade diante do trabalho pesado nas fábricas. O Leão Covarde encarnaria o político William Hennings Bryan, conhecido como "O Leão de Nebrasca". O próprio nome do reino de Oz teria se inspirado na abreviatura para onças, a medida de peso utilizada para metais preciosos - embora Baum tenha comentado que escolhera o nome ao abrir um arquivo que listava assuntos de O até Z.
O olhar adulto sobre a obra de Baum jamais afastou qualquer leitor do mundo fantástico de Oz, diz Franco. "Baum nunca deixou nada se interpor à proposta de criar uma história para o público infantil, ligada à realidade americana, o que sobreviveu à sátira de uma época, voltada para leitores de outras idades. Por trás de tantas imagens fortes, que nem fazem sentido para o leitor da atualidade, permanece uma narrativa encantadora que se fixa no imaginário das crianças e dos adultos."
"O Mágico de Oz"
L. Frank Baum. Tradução: Sergio Flaksman. Editora: Zahar. 256 págs., R$ 49,90
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