22.3.05

Sobre os trilhos





Eu pensando na coincidência, na conjuração dos fantasmas dos Durrell e Corfu em torno de mim, que comecei a ler “O Colosso de Marússia” , de Henry Miller, para descobrir que o relato da viagem do americano pela Grécia começa em ... Corfu, na casa de Lawrence Durrell. Quase pulei por cima do homem barbudo, imundo, cáqui, derrubado no chão em profundo desfalecimento alcoólico. De longe, parecia um menino, mas é um homem jovem, sem camisa, pouca roupa, talvez tenha sido menino de rua. Ai quem me dera uma Corfu, longe desta realidade social que jamais mudarei. Na escadaria, o casacão bate nos joelhos, graciosamente, majestoso. Será? A capa de crepe marrom deveria me tornar enigmática e elegante como um protagonista de Matrix, mas, no máximo pareço com Alcione, a Marrom, vestida como cantora de coro gospel. Sabe, aquelas negonas de vozeirão e corpanzil?
E aí entrou o casal, protegido por uma bolha de paixão. Ela, baixinha, sobre uma plataforma Anabela, jeans atochados, blusinha em feitio de corpete, de flores miúdas sobre fundo castanho, uma pela morena e linda, cabelos castanhos crespos com luzes douradas, dentes claros e irregulares de quem não teve pais financeiramente estáveis o suficiente para usar aparelho ortodôntico na infância. O olhar era apenas para ele, feioso, baixo, gordo, branco, muito branquinho, braços roliços cobertos de pelos que só desapareciam exatamente aonde deveria começar a manga de uma camiseta. Mas ele prefere a camisetona sem mangas azul marinho, bermudões grunge, deixando ver as pernas grossas e peludas, o contraste do fundo branco da pela e os pelos escuros. Os cabelos negros e crespos presos num rabo de cavalo, muito mais compridos que a cabeleira dela. Cavanhaque, óculos escuros, argola na orelha esquerda, um jeito indiferente, enquanto ela se derrama sobre ele, o protótipo do músico de garagem ou do motoqueiro Hell Angel com a namorada gostosa. Como ela, tão gracinha, pode se apaixonar por um horroroso daqueles, provavelmente sem a menor grana?
A mocinha que não quer se sentar e cede o lugar para um homem é mais branca que o motoqueiro grunge, gordinha, pálida como uma figura de novela russa do século XIX. Ela combina com um samovar e com a moda da época, dizem, das mulheres que tomavam arsênico para ficarem mais alvas. Alva carrega uma bolsa com desenhos de animais e o logotipo da Suipa. Ela tem jeito de tijucana e, se não fosse tão jovem, diria que vive num apartamento com 15 gatos. Ai, eu tenho três gatas, fiquei doida para acolher mais um filhotinho que chorava no estacionamento, ontem, mas, não, não serei a mulher louca de meia idade com uma casa entupida de animais, bastam as gatas, a tartaruga, os passarinhos e os filhos. Ah, eu tenho salvação na loucura, eu tenho filhos! Alva é bonita, embora sem graça. Se um desses dandys modernos que apresentam programas para ensinar gente comum a ter um gosto sofisticado e esquisitíssimo encontrasse com Alva, iria valorizar sua boca de Alicia Silvertone, trocar seus óculos de aro metálico por algo mínimo igual ao das antigas funcionárias dos Correios (na década de 60, todas as funcionárias dos Correios estavam na menopausa, eram solteironas, usavam óculos de leitura e fumavam na cara da gente, com muito desprezo) e, certamente, pintar seus cabelos curtos de vermelho sangue, amassar tudo com gel. Pronto, Alva terá atitude para compensar a falta de melanina. Os dandys também se deliciariam com o motoqueiro grunge. Iriam tosar suas melenas, fazer luzes, trocar a argola por um brinquinho mais discreto, colorir suas camisas, apertar suas calças compridas. A mim... ah, eles nem me olhariam, tenho vincos no rosto e muita idade para formar um novo conceito. Igual ao senhor a meu lado, que me empurra com uma mala 007, em silêncio.
O vagão só não é silencioso pelos constantes avisos de que ‘os bancos laranja são reservados para idosos, deficientes físicos e pessoas com crianças de colo, seja solidário’ e pelo homem que fala entusiasticamente com um tal Fernando ao celular. A conversa é impessoal, mas ele diz “Fantástico!” ou “Sensacional” a cada intervenção de Fernando, a quem manda um carinhoso abraço. Homens brasileiros são muito afetuosos ao falar. É “meu querido” pra cá, “abraço carinhoso para você, Fernando” pra lá, mas são incapazes de beijar o próprio filho adulto no rosto em público. O amigo de Fernando se cala, uma mulher de piercing no umbigo pega o bastão do papo telefônico e entabula a típica bronca na mãe: “Oi, você comprou? Mas eu falei que era pra pegar ontem, mamãe. E agora? Olha, to chegando no trabalho, depois a gente vê, mas eu queria pra hoje, né? Tem jeito? Sei. Sei. Sei. Eu vou desligar. Eu tenho que desligar. E você pode ir hoje? Tá certo, depois eu ligo pra você. Outro, tchau!”. O vagão volta a silenciar. O motoqueiro grunge e sua namorada, vez por outra, trocam algumas palavras inaudíveis para quem está fora do halo amoroso que os isola do mundo.
Na estação, a mulher que brigava com a mãe torna-se reservada. Meu vizinho, o senhor com a mala 007, que parecia o ator que fazia o Q, empertigou-se, cresceu e sobe os degraus da escadaria bem mais rápido que eu, que finjo prestar muita atenção no balanço de minha capa. Antes de alcançar a claridade, uma menininha com um bebezinho no colo pede “uma ajuda, tia, pra compra leite pra ele”. Ontem, era um menino que estava com o bebê, a menina observava a alguns metros. São todos bem pequenos. Nenhum adulto ou adolescente por perto, mas deve haver alguém para explorá-los por aí. O sol saiu, um homem com cara de pregador explica a dois camelôs que os Estados Unidos têm um plano para tomar a Amazônia e invadir o território brasileiro. Fujo do sol, do calor e da cidade no prédio totalmente climatizado, higienizado, artificialmente iluminado. Não tenho Corfu. Vou trabalhar.

Esta é pra Rosane, que trilha esses caminhos todos os dias.

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