17.9.10

TV Brasileira faz 60 anos



capa: A televisão brasileira faz 60 anos sob o fogo cruzado das novas tecnologias e exigências de um público em constante mudança de hábitos.

Em busca de sintonia

Por Olga de Mello | Para o Valor, do Rio

17/09/2010

Testemunha da história para uns, uma de suas protagonistas para outros, a televisão brasileira chega aos 60 anos neste fim de semana em meio a especulações quanto a seu futuro. Sua relevância ainda é incontestável como forma de entretenimento e instrumento de disseminação cultural - mesmo no momento em que a internet conquista um público ávido não apenas por novidades, mas pela escolha livre da programação. A perda da audiência para a rede, já registrada em pesquisas e acompanhada por especialistas, não assusta, no entanto, alguns homens de televisão, como o diretor J.B. de Oliveira, o Boninho, diretor da Rede Globo. À frente do "reality show" "Big Brother Brasil", ele aposta na fidelidade do público, embora ressalte a necessidade de inovações constantes: "A audiência está ali, pronta para se ligar, para assistir. Inovar sempre é uma obrigação".

As inovações já começaram a ser adotadas há tempo. Além de usar e abusar das redes sociais para divulgar a programação, a televisão cada vez mais sai de seus próprios limites, seja atingindo públicos fora das fronteiras domésticas, com seriados gerando filmes para a tela grande - como "Os Normais" e "A Grande Família" -, ou até invadindo a realidade do espectador por meio de perfis de personagens de telenovelas em blogs ou no Twitter.

"A nova forma da televisão é transmidiática. Já se pode comprar o brinco da personagem da novela pelo site da emissora que a transmite. E isso vem de processos iniciados na década de 1970, quando a teledramaturgia não se limitava a contar uma história, mas a direcionava para uma faixa de público específica, baseada em pesquisas mercadológicas", diz Igor Nascimento, um dos organizadores do recém-lançado "História da Televisão Brasileira" (Editora Contexto), que analisa os aspectos social, político, econômico, cultural, tecnológico, profissional e estético, entre outras características próprias da televisão no Brasil.

A autonomia na escolha da programação, fenômeno que só faz crescer a partir da internet 2.0, permanece restrita a uma pequena faixa da população brasileira, os cerca de 14 milhões que têm computador em casa. "O que a internet e as novas mídias possibilitam é abalar a figura do editor, criando mecanismos mais explícitos de contestação do conteúdo e reduzindo a passividade da audiência. Todavia, isso não elimina a moderação do material produzido por esse novo espectador", observa Marco Roxo, professor do departamento de estudos culturais e mídia do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense, e também organizador de "História da Televisão Brasileira".

Para Esther Hamburger, chefe do departamento de cinema, rádio e televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, a ânsia de inclusão digital é forte no Brasil, mesmo esbarrando na precariedade da infraestrutura da banda larga oferecida atualmente. "A televisão ficou jurássica para os adolescentes, que praticamente já nem mais a assistem, e está perdendo audiência para ela mesma, para os aparelhos desligados. A tendência é haver uma interação, já que vai aumentar muito ainda o espaço tomado pela internet, gerando uma mudança na relação das pessoas com a televisão", observa Esther.

O público jovem não é uma preocupação específica de Boninho, que acredita na inventividade e na qualidade da programação para atrair espectadores de qualquer faixa etária. "A televisão é uma batalha diária de conquista. Será preciso pensar em qualidade, dar ao telespectador produtos inéditos, diferenciados. A pulverização das mídias será cada vez maior, vai ganhar quem tiver o melhor conteúdo. Na guerra pela audiência, muitas vezes as emissoras preferem popularizar, jogar o nível para baixo e isso é muito ruim. Nosso maior valor é o telespectador."

Apesar do inegável avanço do computador no entretenimento do brasileiro, a pesquisa "The State of Media Democracy", que ouviu, no Brasil, 1.346 pessoas que usam internet (ver quadro) identificou crescimento no número de assinantes de TV paga no país - um público menos passivo que o das gerações anteriores. A mudança de comportamento do espectador começou na década de 1990, quando o Brasil tomou contato com a internet, a TV por assinatura e os aparelhos de DVD."

Naquele momento foram modificadas as relações complexas que haviam sido estabelecidas ao longo de 50 anos. A televisão continua fazendo parte da vida brasileira, mas de forma diferente. O público ganhou uma autonomia que não existia antes", diz Esther Hamburger.

"A televisão ficou jurássica para os adolescentes, que praticamente já nem mais a assistem, e perde audiência para ela mesma"

Por maior que seja o impacto da internet nas comunicações, o rompimento dos telespectadores com a televisão no Brasil está longe de acontecer, afirma Beatriz Becker, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mesmo com um discurso elitista e tendo suas origens ligadas à necessidade de representação de uma classe urbana no país, a televisão brasileira seria o elemento agregador que permitiu a construção de identidade da nação, além de conceder visibilidade a uma população tradicionalmente excluída, acredita Beatriz.

"A televisão precisa escapar da visão de que é o depósito do lixo intelectual do mundo. O Brasil foi inovador na utilização da técnica de produção para massas, com projetos vanguardistas de estéticas renovadoras em narrativas televisivas, tanto na teledramaturgia, que levou a linguagem do teatro para a televisão, quanto na cobertura jornalística. A televisão brasileira pode reivindicar com propriedade seu papel como produto cultural, que tanto intervém quanto sofre influências da sociedade. É nessas interações que ela leva ao espectador a ideia de cultura brasileira", diz Beatriz.

O país muda e a telenovela vai junto

A importância cultural da televisão brasileira foi minimizada por quem contribuiu para transformá-la no mais acessível instrumento de divulgação de tendências e formação de plateias do país. Para alguns estudiosos, a contradição de um meio popular com uma produção elitista está na formação de seus próprios quadros. "Em todo o mundo, a programação de televisão é voltada para as classes populares. Aqui, ela não menosprezou o espectador. Os autores que escreviam para a televisão eram, em boa parte, esquerdistas com ambições intelectuais. No entanto, foram necessários 30 anos para a TV deixar de ser branca e elitista", afirma Esther Hamburger, autora de "O Brasil Antenado - A Sociedade da Telenovela" (Zahar).

É na teledramaturgia que a televisão brasileira tem seu principal produto cultural, que consolida o veículo como um empreendimento viável nas décadas de 1970 e 1980. Seus temas discutem a contemporaneidade, tratando do cotidiano de grupos como o Movimento dos Sem Terra e dos moradores das favelas, além de criar vínculos com espectadores que se reúnem para acompanhar o desenrolar de folhetins que podem abordar problemas sociais, desde "Beto Rockefeller", em 1968, quanto apresentar um Brasil fora do eixo metropolitano, com "Pantanal", em 1990.

"A telenovela é a verdadeira crônica de um país que procurava a modernidade. O ápice do gênero se dá em 1988, com 'Vale Tudo', de Gilberto Braga. As qualidades técnicas e artísticas haviam levado as novelas a conquistar um público heterogêneo, que só se dispersa depois da entrada da internet no Brasil. Talvez o didatismo das novelas de intervenção, que promovem campanhas para reduzir as exclusões, também tenha contribuído para esse afastamento dos espectadores", diz Esther.

A relação entre espectadores e televisão já foi mais estreita. Na década de 1980, programas de auditório vespertinos, como o "Aqui e Agora" e "O Povo na TV", dão voz aos problemas de uma população que se queixa do atendimento precário que recebe do poder público. "Muito se falou na exploração da miséria e no tom apelativo desses programas, que até hoje dominam o horário, com novos formatos, talvez um pouco menos dramáticos do que os originais", diz Marcos Roxo, autor do artigo "A volta do 'jornalismo cão' na TV", publicado no livro "História da Televisão no Brasil". O rádio, que foi a primeira referência para a televisão brasileira dos primeiros tempos, quando locutores apresentavam os telejornais, serviu de modelo para essa programação destinada a camadas populares.

"Aos programas seguiu-se um intenso debate sobre os limites do sensacionalismo e o jornalismo investigativo. Falava-se em processo de mexicanização da TV brasileira, em circo na TV. Essa programação foi estratégica para a consolidação do SBT. Hoje, temos uma TV bem mais popular do que há 20 anos, com 'reality shows' e muitos programas de auditório", observa Roxo.

A rendição ao popular foi lenta, mas constante. Nas décadas de 1960 e 70, a música que chegava à televisão era sofisticada, em festivais da canção que tinham Edu Lobo, Dori Caymmi, Tom Jobim e Chico Buarque entre os concorrentes, ou em programas como "O Fino da Bossa", apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Eclética, a Record também abriu espaço para Roberto Carlos e os representantes da Jovem Guarda, enquanto a anárquica "Discoteca do Chacrinha", na TV Globo, recebia figuras de proa do Tropicalismo, como Caetano Veloso e Gilberto Gil. Os gêneros mais sofisticados da MPB atualmente só aparecem bissextamente na televisão ou são relegados a programas especiais em horários de pouca audiência, enquanto manifestações "das periferias" ganham cada vez mais espaço em emissoras como a Rede Globo, que também já veiculou a série "Cidade dos Homens", sobre a vida de dois meninos em uma favela carioca.

"Depois do documentário 'Notícias de Uma Guerra Particular', de João Moreira Salles, em 1999, e principalmente após o sucesso do filme 'Cidade de Deus', de Fernando Meirelles, houve uma visibilidade da favela que a TV tinha se acostumado a apenas passar por cima. E o tratamento que essa realidade recebe na televisão é menos sensacionalista e espetacularizado do que no cinema. Isso reduz a discriminação social vinculada à violência", afirma Esther Hamburger.

O distanciamento entre a televisão e a realidade brasileira era bem maior até os anos 1970. O telejornalismo era calcado no noticiário das agências internacionais. O mais conhecido dos telejornais, o "Repórter Esso", pautava-se pelos temas de interesse do patrocinador, no caso a refinadora de petróleo americana Standard Oil.

"É com o 'Jornal Nacional' e a transmissão em rede que o Brasil se encontra como nação. As pequenas emissoras do interior tornam-se repetidoras das grandes redes, mas o telejornalismo começa a tomar outro rumo, mais ligado aos temas brasileiros. O conceito de rede não apenas consolida a produção para a TV, mas também integra o país", diz Igor Nascimento, organizador de "História da Televisão no Brasil". (OM)

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