28.1.05

De perto ninguém é normal

Meu pai era cheio de manias. Canhoto, não abria latas nem usava tesoura de alfaiate. Nunca aprendeu. Fez do descascar laranjas uma arte. Tirava a casca inteirinha, formando uma espiral, sem machucar os gomos, dos quais pinçava aqueles cabelinhos antes de comer. Isso levava muito tempo, mas era uma delícia admirar. Dele herdei a miopia, as alergias, os cabelos brancos precoces e milhares de manias. Uma vez precisei escrever um texto pra Cultura sobre idiossincrasias. Eu nem conhecia a palavra, fui perguntar pro Papai e acabei transformando-o no personagem da redação sobre aqueles estranhos hábitos que hoje são catalogados como sintomas de transtorno obsessivo compulsivo, o agora popular TOC.
Bom, o Papai guardava jornais. Muitos jornais, inteiros. Só permitia que a gente jogasse fora os classificados. Ficava chateado quando eu pegava fotos ou artigos sobre cantores de rock e cinema. Depois de um tempo, passou a recortar e me entregar o que pensava que eu acharia interessante e guardava a página com o recorte. Os jornais se acumulavam em pilhas escondidas sob as cortinas da biblioteca e do quarto dele. Houve época que eram armazenados dentro da banheira. Era moda no Rio ter banheira coberta por uma imensa taboa com fórmica e em cima enfeitar com perfumes, plantas e milhares de badulaques. Pois bem, quando se fazia faxina no banheiro, os jornais saíam e voltavam para dentro da banheira. Numa dessas faxinas, um filete de água ficou pingando. De madrugada, alguém entrou no banheiro e sentiu água no chão. O tampo da banheira flutuava sobre os jornais encharcados.
Papai ficou desolado. Mas não se rendeu. Pendurou os jornais no varal da área de serviço. Prendeu barbantes na sala e pendurou o resto dos jornais. Passamos alguns dias andando entre aquelas imensas bandeiras impressas. Eu me sentia como Gulliver numa festa junina na Ilha dos Gigantes. Secos os jornais, a papelada mudou-se para o alto de um armário no quarto de empregada. Quando se tornaram tantos que não havia mais canto onde escondê-los, foram deslocados para a casa de máquinas dos elevadores do edifício. Lá permaneceram por algum tempo, até que um síndico reclamou e foram vendidos pelos porteiros para o burro sem rabo da rua. Então, Papai voltou a formar pilhas atrás das cortinas e, aproveitando que eu me mudara, invadiu os maleiros de meu armário e as partes fechadas das estantes de meu quarto.
Papai morreu sem ler um único daqueles jornais. Também jamais usou blocos de lauda que trazia da redação para casa, pilhas de papel ofício das agências de propaganda em que trabalhou e cadernos de papel almaço do tempo em que ele ia à escola. Fazia bloquinhos de papel cuidadosamente retirados de maços de cigarro. Usava para anotações. Como quando eu era criança tínhamos o hábito de deixar secando o ossinho da sorte da galinha assada para quebrar no dia seguinte, passou a guardar todos os ossinhos da sorte que encontrávamos. Dava para montar um mamute de tanto ossinho que fechava em uma caixinha. Também guardava lápis usados. Cotoquinhos de lápis, tão antigos que a madeira já trincou e o grafite não escreve nada.
Por que o Papai era assim? Sei lá, ele tinha medo de trovoada também. Ficava em pânico quando chovia e trovejava. De repente, isso acabou. Naquela época, as pessoas tinham seus problemas mas não tentavam rotulá-los ou procurar respostas, desde que isso não afetasse sua vida social. Fora essas esquisitices, Papai era brincalhão, amável e festeiro. A casa vivia cheia de amigos, que conheciam e riam dessas doideiras do Papai. E ninguém ligava pra mania de arrumação de minha mãe, uma perfeccionista que criou um método para dobrar em forma de triângulo os sacos de supermercado aproveitados para lixo, e que, antes de jogar restos orgânicos na lixeira, embrulhava tudo em jornal – nas folhas de classificados, claro. Uma vez por semana, ela arrumava minha bolsa, guardando papéis em plásticos fechados com alfinetes de costuras, que me feriam os dedos e me irritavam profundamente. Me disseram, depois, que Mamãe também tinha transtorno obsessivo. Como os dois conseguiram conviver na mesma casa, sem grandes rusgas, por trinta e um anos?
Foi por causa deles que decidi não tentar me curar do pavor de barata, avião e altura que sinto. Continuo guardando fósforos queimados na caixinha de fósforos, organizando livros por ordem alfabética de autor e país de procedência (ficção), ou por gênero (de cinema, de música, de viagem, humorísticos, quadrinhos, filosofia, sociologia, biografia, policial, política, jornalismo), os CDs por gênero e ordem alfabética e as roupas nos armários por cores. Dou banho nas minhas gatas, que diariamente são limpas com papel umedecido para limpeza de bebês. E dobro os sacos de supermercado em forma de triângulo. Em compensação, vivo angustiada porque parei os álbuns de fotografias no batizado de meu segundo filho (tive mais dois bebês depois) e quem organiza minha bolsa, atualmente, é minha filha. Jogo fora jornais e tento me desfazer da papelada excessiva, mas, depois de um dia de expurgo, geralmente, pego umas sobras que não consegui classificar ou empacotar e fecho em um caixote comum de bugigangas.
Aquelas manias que me atazanavam a vida acabaram apenas como um registro saudoso de anos dourados.

do Multiply, 10/12/2004

Um comentário:

Eduardo Graca disse...

Olga,

aonde o fotografo esta? Vamos ouvi-lo e colocar a informacao dele no blog!
bjs
Edu do Brooklyn
(http://www.edudobrooklyn.blogspot.com)