20.10.12

Fechando as observações dos enlutados pelo fim de Avenida Brasilm a novela, festejemos a longa vida ao folbhetim. Esta foi a terceira vez em que acompanhei com regularidade uma novela. Comecei a assistir por acaso, apenas porque achei interessante a fotografia e Adriana Esteves dardejando desaforos à criadagem. Em dois dias assinei o contrato de fidelidade - a novela já estava nos "tempos atuais", ou seja, sem aquela idiotice de criancinhas casadoiras.
Da novela tiro a experiência antropológica de dividir impressões com quase desconhecidos, de pertencer a uma confraria de cúmplices, encantada com as situações pouco verossímeis, mas louváveis - do ponto de vista educativo, levando a literatura para a cena - como a de um jogador de futebol interessado em Flaubert.
E viva o folhetim!

18.10.12

Ismael, Ahab e a baleia

161 anos de lançamento de Moby Dick, aquele que já aproxima o leitor do narrador - e enlouquece os tradutores - na mais conhecida abertura da literatura: "Call me Ishmael".


(Tá bom, a mais conhecida abertura literária é "E no princípio era o Verbo", que enlouquece crentes, ateus, filósofos e leitores: e, tá bom, pra muitos chamar livro bíblico de literatura é depreciá-lo, mas, para mim, é elevá-lo a categorias mais que divinas).

9.10.12

Fantasmagórica

Há dez anos escrevi um artigo para uma revista de circulação restrita. O artigo foi assinado por outra pessoa. Era minha primeira experiência em ghost writing - e a única dolorosa. Eu trabalhava como assessora de imprensa de uma respeitável instituição de saúde. A médica em questão não tinha tempo para escrever. Sequer me deu diretrizes do que abordar. E eu nem vi onde foi publicado meu texto malhando a indúsria do tabaco, comparando-a a governos que empregam assassinos de aluguel.
O cigarro, no artigo, era elegante, charmoso e letal como 007, que, por baixo do smoking (olha a outra associação lógica...), não passa de um agente da morte. E, como James Bond, o cigarro também ganhava um selo de aprovação da Casa de Windsor para ceifar vidas em nome da liberdade do mercado capitalista.
Metáforas pueris à parte, o texto ficou bom, a médica gostou e ele se foi. Senti-me como o personagem do Gene Kelly em Um Americano em Paris, pintor que vê suas obras serem negociadas e nunca mais deverá tê-las sob os olhos.
Não sei se é pior ver nossa criação premiar outrém ou ser alguém sem ideias próprias, laureado pelo talento que aluga. Fiz outros ghost writings de menor alcance ainda - dois livros pavorosos sobre terapias de vidas passadas. Não compreendo como alguém entrega seu próprio discurso a outra pessoa. No mínimo, tem que rascunhar seu pensamento e passar o texto final ao redator.
Eu morro é de inveja do que já escreveram antes de mim.

3.10.12

52


Amanhã completo 52 anos com um aspecto que não combina, definitivamente, com minha imagem mental de mim mesma.
Primeiro, eu não sabia que viria a ter cabelos opacos, finíssimos e tão lisos.
Nem que a pele se tornaria opaca, fina, seca e manchada nesta etapa da vida.
O pescoço tornou-se invisível sob uma papada histriônica, que não enfeita, só entristece.
Os olhos foram cercados por pálpebras inchadas. Vez por outra alguém percebe que eles têm um tom verde água bonito.
As unhas são mais quebradiças do que antes. A boca carnuda reduziu-se.
E minha alma se circundou por tecido flácido, adiposo. Camadas e camadas. Que se nutrem do ar que eu respiro, se preciso for, para aumentarem ainda mais.
Os joelhos e os dedos dos pés sofrem de dores constantes.
A respiração é fraca, graças à asma e a tantas alergias.
O cansaço perene não impede a mente de trabalhar e de obrigar o corpo calejado a se movimentar.
Aprendi a tirar fotografias sorridente, esticando o pescoço pra frente como tartaruga. Ao menos na foto não pareço ter uma gola de papada.
Os truques de maquiagem se tornam cada vez mais necessários no dia a dia.
Pinto os cabelos em casa a cada três meses. Aparo as pontas, sempre em busca do corte perfeito, que disfarçará a decadência.
Já  não enxergo bem nem de perto nem de longe, mas me esqueço de fazer todos os exames que os médicos prescrevem.
Envelhecer é resistir.
Eu só queria ter uma garrafa igual à da Jeannie pra acordar daqui a dez mil anos e me espantar com o mundo do qual daqui a pouco terei que me despedir.
Meio século passou rapidamente demais.
Bom senso e censura são dois conceitos completamente diferentes. Bom senso é não expor crianças a violência, estupidez, grosseria. Censura é impedir que crianças saibam que existe violência, estupidez e grosseria - o que em nada contribuirá para o desenvolvimento delas no mundo real. Bom senso é dizer que caçar animais por esporte é crueldade, mas que sua prática sempre foi disseminada como um ritual para assegurar a virilidade dos homens que trucidam elefantes, onças, raposas, touros e outros bichos. Censura é proibir que qualquer forma de arte reproduza a tal prática.

Meu preâmbulo é a explicação do texto que publiquei duas semanas atrás na minha coluna Para Ler na Rede, que sai no Portal de Anna Ramalho e nos sites Cinema.com.br e Investimentos e Notícias. A coluna está nos links, mas também abro aqui, porque a polêmica é ridícula, forjada por grupos que buscam a notoriedade, ainda que momentânea, acusando o Monteiro Lobato de racismo. Eu diria que ele foi um homem de sua época.
E segue a coluna (A charge do Ziraldo, acima, é a do bloco Que Merda é Essa?, que dedicou o desfile de 2011 à discussão sobre Lobato, o preconceituoso):


Lobato, o racista, e os cocorocas de Stanislaw


Monteiro Lobato não me inoculou o vício da leitura, mas foi um marco no meu aniversário de sete anos, quando ganhei a coleção que li e reli anos seguidos, descobrindo a mitologia grega, a História, Dom Quixote e Peter Pan. Passou o tempo e Lobato, o escritor que usava a boneca de pano Emília para clamar contra a guerra, o racismo e a falta de nacionalismo, que criou o Jeca Tatu, o caipira largado à própria sorte por um governo que ignorava o homem do campo, virou um perigoso subversivo que difundirá o racismo entre o público infantil, além de contribuir para a difusão de crimes ambientais, entre eles a caça à onça-pintada.





Ver em Caçadas de Pedrinho um incentivo a safaris é o mesmo que considerar Moby Dick (Landmark, R$ 49), de Herman Melville, um manual de caça à baleia. O mesmo poderia ser dito sobre O Velho e o Mar (Bertrand Brasil, R$ 31), de Ernest Hemingway. Além de delinquente ambiental, Lobato estimularia o racismo em diversas de suas obras, entre elas o primoroso conto Negrinha. A protagonista é uma menina órfã, que vive na casa de Inácia, uma viúva sem filhos que se compraz em torturar a criança diariamente. Negrinha só conhece a alegria quando as sobrinhas de Inácia a convidam para brincar. O conto, curtinho, pode ser lido aqui http://www.bancodeescola.com/negrinha.htm. Lobato, o racista, assim descreve Inácia:



“Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. (...) Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo. (...) Era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes (...). Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco (...)”.



Se este trecho não demonstra o repúdio do escritor à Inácia, se não configura uma crítica violenta ao racismo, realmente, não sei mais ler. Também já se atribuiu o pejo de racista a Manuel Bandeira pelo belo poema Irene no Céu, em que “Irene Preta/Irene boa/Irene sempre de bom humor” chega ao paraíso, pedindo “licença, meu branco” a São Pedro. Este responde que ali ela não precisa pedir licença. Bandeira estaria disseminando a submissão dos negros perante os brancos. Quem levanta tais questões só merece ser classificado de “cocoroca”, como Stanislaw Ponte Preta definia os implicantes sem imaginação ou espírito crítico. Algo comum aos não leitores. Não há o menor risco de Monteiro Lobato ou Manuel Bandeira estimularem ideias racistas. A imensa maioria dos brasileiros da atualidade não os leu nem jamais os lerá.



É pena que Lobato e Bandeira sejam desconhecidos para muitos. Uma pena, também, que poucos saibam quem foi Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do jornalista Sérgio Porto, autor do divertido Febeapá – O Festival de Besteira que assola o País (Agir, R$ 63,90). Lançado em 1966, o primeiro volume foi um sucesso e teve duas edições nos anos seguintes, sempre com coletâneas das bobagens proferidas por brasileiros. Talvez hoje a ironia de Sérgio Porto não se adequasse aos tempos politicamente corretos. No entanto, muito do que ele registrou é semelhante ao que continua se falando Brasil afora. Podem conferir!



"O mal do Brasil é ter sido descoberto por estrangeiros" (Deputado Índio do Brasil, Assembleia do Rio).

O Diário Oficial publica "Disposições de Seguros Privados" e mete lá: "O Superintendente de Seguros Privados, no uso de suas atribuições, resolve (...), "Cláusula 2 — Outros riscos cobertos — O suicídio e tentativa de suicídio — voluntário ou involuntário".

A Polícia de Mato Grosso não é nem mais nem menos brilhante do que as outras polícias. Tanto assim que um delegado de lá, terminou seu relatório sobre um crime político, com estas palavras: "A vítima foi encontrada às margens do rio Sucuriu, retalhada em 4 pedaços, com os membros separados do tronco, dentro de um saco de aniagem, amarrado e atado a uma pesada pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de suicídio".Em Campos (RJ) ocorria um fato espantoso: a Associação Comercial da cidade organizou um júri simbólico de Adolph Hitler, sob o patrocínio do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito. Ao final do julgamento Hitler foi absolvido.




2.10.12

Despedida

Hoje faz onze anos que enterrei minha mâe. Coincidentemente, meu primo, que tem uma oficina mecânica, foi pegar meu combalido carrinho, que estava há 21 anos em minha companhia. A velha Elba Weekend, que começou sendo chamada de Llorca, por ser verdíssima, transformou-se em Abatida (devido às numerosas batidinhas e batidonas que apresentava), passando por Ruína e quase virou uma Relíquia.

Foi a relação mais estável que tive nos últimos tempos. Ela chegou num 13 de agosto, dia de aniversário de minha mãe, no mesmo ano em que meu pai morreu. A primeira viagem foi para Rio das Ostras, de onde saímos às pressas, quatro dias depois, para o enterro do pai de Martha, minha querida amiga. Foi o carro da família, o único em que eu enfrentei viagens além de 100 quilômetros no volante.

Nele peguei incomensuráveis engarrafamentos pelas estradas fluminenses, chuvarada, sol abrasador, geralmente com as crianças cantando no banco de trás. Foi lá que Jùlia começou a emitir sons. Os meninos cantavam Old McDonald  e Júlia, bebê, na cadeirinha, bradava "Ia-ia-ôô!". No início, era apenas uma cadeirinha, que Oto ocupava, Artur já amarradinho aos cintos. O rádio logo se quebrou, mas não havia problema. Oto conversava o tempo todo. Quando Artur dormia, ele cantava. Se havia silêncio no carro, era o sinal de que Oto também adormecera.  Depois, foi a fase das duas cadeirinhas, com o nascimento de Hugo. Elas permaneceram no banco traseiro por um bom tempo, mas acho que só tenho foto do Hugo sentado em uma delas.

E nele, viajamos, passeamos, andamos muito. Enfrentei enchentes no Rio de Janeiro, entrando com o coitado em lagos formados pela chuva. No último, Artur já era homem e teve que se enfiar na água para empurrar o pobre, que engasgou na poça. E teve a vez, anos antes, que ele morreu totalmente, numa noite em Rio das Ostras, só eu e Danúzia para empurrarmos, sem luz na cidade. Praticamente me joguei em frente de um carro, pedi ao motorista que viesse empurrar conosco (tinha uma pequena elevação na entrada da garagem), enquanto falava o tempo inteiro "Fique tranquilo, os cachorros são bem treinados. Calma, Trovâo, calma, Lua, é amigo, amigo". Os cães, nem tentaram colaborar com minha criação dramatúrgica para assustar o desconhecido que, poderia ser um perigosíssimo assaltante, segundo Danúzia.


Com meus filhos, gostávamos de dar voltinhas à noite pelas ruas da Urca, olhando as casas de um bairro em que jamais iríamos morar. Às vezes, subíamos pelas ruas com casinhas no Jardim Botânico, no Horto. E também íamos para Santa Tereza, em busca de um Rio de arquitetura mais aconchegante, amigável.  

Bem, chegou a hora. Não haverá outro carro tão cedo. Talvez nunca mais. Hoje, me locomovo de táxi, se precisar viajar, posso alugar um carrinho. Junto com o Llorca se vai a meninice de meus filhos e um bocado de nossa história. Desapegar é difícil. Principalmente porque o carro estava em nome de minha mãe. Era o único objeto dela que ainda estava comigo. Acho que hoje eu deixei Mamãe sair de minha vida.