28.4.05

Sugestão de mudança legislativa





O dia começa e eu já estou devendo tempo. Sei que a hora é um conceito, uma criação humana, um instrumento estabelecido para facilitar a vida. O problema é lidar com o establishment como um todo.
Se o capitalismo criou o cheque especial para aumentar nossas condições de endividamento, poderia ter inventado um vale-horário, do qual eu seria uma eterna devedora. O dia se estenderia por algo em torno de umas 36 horas, por exemplo. As 24 horas atuais fogem de mim, exceto quando estou no cárcere coletivo que é o escritório.
Pensando bem - se passamos em média 16 horas acordados e levamos de nove delas a serviço do capital, mais umas duas em trânsito, quanto nos sobra de tempo útil? Três horas que nunca rendem o suficiente para namorar, ler, ir ao botequim, ir ao cinema, dar uma flanada pela livraria, ver televisão, dar uma olhada no jornal, lanchar, verificar o estudo dos filhos, verificar as roupas dos filhos, conversar com a família, telefonar para os amigos, telefonar para a tia idosa que está doente, visitar os parentes que não saem de casa por nada neste mundo, escrever, levar o passarinho ao veterinário, aproveitar para vacinar as gatas e, o mais glorioso fim de jornada: fazer supermercado.
Ampliar a carga horária do dia é uma necessidade imediata do povo das metrópoles.

27.4.05

Caderno de Pensamentos: Realidade Nada Sobranceira





Triste descoberta. Não que eu jamais tivesse notado, mas caí em mim quanto à triste realidade do embranquecimento das sobrancelhas. Encontrei com uma amiga na rua. Na última vez que a vira, não reparara nas sobrancelhas dela, imensas, grossas e com alguns fios ... brancos.Nada me irrita mais que reuniões de quarentões falando sobre a desgraça do envelhecimento. Mas parece que agora sempre que me reúno com os amigos que fiz na adolescência, o tema está sempre em baila. É um tal de comparar taxas de glicemia, de colesterol, de alardear o que se faz para manter a boa forma. Há também o momento saudade, quando se folheiam álbuns de fotos e verificamos que fomos jovens lindos e que jamais teremos aqueles rostos ou corpos novamente.Constatar que as sobrancelhas embranquecem foi chocante. Não conheço tanta gente assim que tenha sobrancelhas grisalhas. Só me lembro do David Hemmings, o ator que foi um interessante jovem de olhos imensos em "Blow Up" e "Barbarella" e tornou-se um velho de sobrancelhas espetadas em "Gladiador" e em diversos outros filmes. Acho que eram grisalhas. Hemmings morreu este ano. Um de seus últimos trabalhos foi na porcaria da "Liga Extraordinária". O jovem da Swinging London era um senhor gordo e com olhar estranho. Mas sempre notável, apesar das sobrancelhas esquisitíssimas.



26.4.05

Frente fria

O tempo virou, ando mal humorada e não sei mais escrever. Eu, que sempre odiei comportamentos típicos, me vejo agindo como uma carioca daquelas que falam arrastado, puxando "erres" e "essechs". Voltei a ser uma criatura solar, dependente do sol e céu azul para me alegrar.
Nada contra a chuva e a queda de temperatura. Eu sempre gostei de uma chuvinha. Quando vocifero contra o calor, lendo notícias de frentes frias que sempre se dissipam antes de chegar à cidade, também imagino que exista um lugar muito bom, entre o Rio e São Paulo, entre o Rio e o mar, entre o Rio e as serras, onde as frentes frias se escondem e se aquecem. Tenho pavor é de inundação, de enfiar o carro em rios, de brincar de enduro pra chegar aos lugares. É que levei tanto tempo para fazer as pazes com o sol e o calor que estranho este clima londrino. Não calçava meias e mocassins há uns bons oito meses. E meu carro, que só recebia areia seca dentro, agora tem lama também. Culpa da chuva e da areia do estacionamento. Aliás, como tem terra nesta cidade. Parece um vilarejo do interior. Cada chuvinha que cai, depois que as águas da inundação baixam, as ruas ficam cobertas de lodo.
Para rir, só a inadequação do vestuário carioca em dias mais fresquinhos. Sem confiar na chuva que iria pegar, saí de "explosão em púrpura": calça ameixa, blusa cereja, blazer entre violeta e fúcsia, guarda-chuva vermelho. Modelo perfeito para o "Esquadrão da Moda", aquele programa das jornalistas de moda inglesas que pegam umas inglesonas manequim 50 e dão um cheque de milhares de libras para reformarem o guarda-roupa. Como todas as inglesas são alvas e louras, ficam bem de ameixa, a cor favorita das jornalistas. Agora, é só chegar na janela e ver que, debaixo de guardas-chuvas, há as mais estranhas combinações, verdadeiros atentados ao bom gosto. Os rapazes se enfiam em casacos impermeáveis apropriados para enfrentar tempestades em alto mar. Mulheres continuam decotadas, saltitando sobre saltos agulhas, estragando bons calçados na areinha que sobe das pedras portuguesas. Para completar as fatiotas, guardas-chuvas vagabundos de camelô, nos padrões xadrez, floral, transparente, metálico ou negro.

De onde surgem os camelôs de guardas-chuvas? Eles vêm com os primeiros pingos, sempre apregoando as mercadorias "só a cinco real" aos berros. Todos fariam facilmente carreira como timoneiros em regatas de remo, dada a capacidade vocal com que atordoam quem transita nas apertadas calçadas ocupadas também camelôs de brinquedos, capas de celular, artefatos telefônicos e vendedores de CDs piratas. Caminhar nas ruas cariocas, o que já é uma façanha diária, torna-se um tormento em dia de chuva. Isso porque além de driblar todos os produtos expostos em banquinhas ou no chão, ainda se corre o risco de ser alvejado por litros de água que se acumulam sobre as barraquinhas.
No livro O Rio de Janeiro de Meu Tempo, o cronista Luís Edmundo já criticava o excesso de camelôs na cidade em fins do século XIX. Não conheci o Rio sem camelôs. Conheci com menos camelôs, nunca sem eles. Ouvi em várias coletivas governantes afirmando que iriam confiná-los em diversos espaços, o que me parecia tirar o sentido do termo "vendedor ambulante". Eu estava errada, claro. O único camelódromo que deu errado foi o primeiro, criado na conjuntura Brizol-Darcy Ribeiro e sabe lá quem na prefeitura (Jamil Haddad, Marcelo Alencar ou Saturnino Braga). O camelódromo era na Praça Onze e ficou às moscas. Hoje existe outro, bem sucedido, perto do Saara. É horrível, nunca tive coragem de me embrenhar naquela selva de barracas. Já pensaram em transferir todos os camelôs para o Pavilhão de São Cristóvão, um dos locais em que nunca fui na vida, uma falha carioca (também nunca subi ao Pão de Açúcar, mas é porque sou covarde mesmo, nem peguei o bondinho de Santa Teresa). Esses planos me parecem aqueles projetos de revitalização da Zona Portuária, que escuto há 20 anos e nunca vejo sair do papel.
O certo é que os camelôs estão aí e vão permanecer. Houve época em que eu fazia boicote, não comprava nada de camelô para não prejudicar o comércio que paga impostos. Reconheço que meu boicote nada adiantou. Passei a entender o camelô como alguém que corre atrás da sobrevivência e virei freguesa fiel de artigos como ralos de pia, panos de chão e abridores de lata, bem mais baratos na mão deles que nos supermercados. Mas é só eu ter que me espremer no meio-fio porque a calçada é deles que meu ressentimento vem à tona outra vez. E quando o calor voltar e eu não estiver mais calçando mocassins e sim me equilibrando numa plataforma, continuarei maldizendo as calçadas entupidas de camelôs, pedintes e gente apressada. Como qualquer carioca típica.

19.4.05

Enquanto canto meu canto de saudade





Enquanto canto meu canto de saudade, você dorme e desconhece o sofrimento. Você me atrasa, paro e lhe escrevo, doida para lhe entregar num pedaço de papel meu amor tão concreto na distância. Sua voz me alcança às vezes, falando incoerentemente, tão errado ...
Queria tocar sua pele, sentir seus braços me enroscando, seu corpo quentinho, as pernas compridas e pesadas, sua figura miúda, seus dedos gelados e irrequietos. Os olhos de jabuticaba me perseguindo, sufocando com tanta intromissão. Seus gritos, seus murros em minha porta, seus telefonemas inconvenientes, suas observações impertinentes, seus resmungos, nossos embates, por que sinto falta disso tudo?
Estou refletindo sobre nós, quero mudar nossa relação, viver mais pra você, sem fugas, sem me esquivar tanto. Quero lhe inundar de paixão, de alegria, de boas recordações. Seu retorno acabará com minha tranqüilidade, a vida correrá, tenho tanto tempo para usufruir o mundo sem suas exigências agora. Sei que você voltará para mim. Nossa história foi selada quando você nasceu. Estaremos juntos até morrer.
Minha cama está larga, cabe tanta gente que não aparece. Posso dar festas, chegar em casa às 6 da manhã. Mas não há por quem. Mesmo só, quero adiar sua volta, estas são minhas férias, pra que você retorna tão cedo? E os ciúmes da desconhecida que o cumula de atenções, de seus parentes que têm você tão integralmente nesses poucos dias?
Você é minha propriedade, eu lhe pertenço, você viveu tanto tempo dentro de mim que fica difícil entender sua saída pro mundo. Eu tenho que lhe preparar para o mundo e me preparar para seguirmos caminhos paralelos. O mundo é nosso, enquanto eu puder lhe encantar com meus cantos de consolo e saudade por você.

em janeiro de 1988
ilustração - Nick Bantock - sem copyright, só pra informação mesmo

18.4.05

Alessandra, Patrícia e suas mães






Alessandra, aluna da 6a série do Ensino Fundamental, provavelmente de uma escola pública, completaria 15 anos em julho. A família, de Caxias, se reuniu para comprar um vestido longo, de princesa, que a menina usaria na festa, também custeada por vaquinha dos parentes. Na madrugada de domingo, conversava na rua onde mora a avó, na Favela Vila Cruzeiro, na Penha. Morreu, atingida por uma bala, durante uma incursão do Bope na Favela.
Patrícia, aluna da 8a série do Ensino Fundamental de um colégio particular da Zona Sul, só completará 15 anos em abril de 2006. A mãe, do Leblon, reuniu o suficiente para dar-lhe, como presente, um curso de imersão em inglês, na Inglaterra, em janeiro, aproveitando que a menina ganhou uma passagem do pai para visitá-lo na Espanha, em dezembro. Na madrugada de domingo, Patrícia dormiu na casa de uma amiga, depois de festejarem o aniversário de outra, numa boate na Lagoa, de onde voltaram no carro do pai de um amigo.
Alessandra e Patrícia dificilmente freqüentariam os mesmos lugares ao longo da vida. Alessandra poderia até cursar faculdade, mas teria mais dificuldade que Patrícia para conseguir um emprego com boa remuneração. Afinal, inglês faz falta. Patrícia ainda não sabe qual carreira seguirá. Tem apenas ambição de conseguir formar-se em uma universidade federal, para a qual entrará sem direito a vaga por cota. Alessandra morreu quando exercia o direito universal do ser humano de estar na rua. Patrícia passará a vida protegida por grades ou carros.
A mãe de Alessandra foi fotografada no jornal, com o vestido de 15 anos da filha, o que restou de sua menina.
A mãe de Patrícia leu a história da mãe de Alessandra e foi buscar sua menina na escola.

11.4.05

O pior trabalhinho do mundo

Uma vez comentei com a maior sinceridade com meu então marido: "Coitados desses jogadores de futebol. Os caras têm que trabalhar todos os domingos, quartas-feiras à noite e ainda participam de treinos diariamente. E o pior, precisam jogar futebol durante 90 minutos. Eu sei que eles ganham fortuna, mas eita profissãozinha horrível, né?". Naquele momento, percebi o olhar de decepção de meu ex-marido. Descobrira que eu não era tão brilhante quanto ele imaginava. Sua voz transmitiu o quanto sentia-se penalizado por minha ignorância: "Olga, só tem um detalhe: esses caras gostam de jogar futebol".
Fiquei absolutamente chocada. Nunca me passara pela cabeça que alguém racionalmente gostasse daquele tipo de trabalho. Eu, que me inscrevi sempre nos primeiros horários da ginástica para não ter o desprazer de entrar na câmara de tortura e me deparar com outras pessoas que saíam felizes, livres daquela hora de horror, jamais poderia imaginar que alguém praticasse algum esporte por motivos além dos financeiros.
Foi quando comecei minha lista de profissões pavorosas, que eu jamais exerceria, nem se escolhida. Ser presidente da República, por exemplo. Além de viver rodeado por gente feia e chata, só tem aborrecimento. Envelhece, faz mal à pele. Se é intelectual, é dissociado das causas sociais. Se tem origem popular, é um ignorante. Se é honesto, tem gente tentando dissuadi-lo e levá-lo para o caminho da maracutaia. Se é desonesto, vive apavorado com tanta gente que precisa subornar.
Outra profissão que me daria calafrios seria chefe de cozinha, por razões que já expliquei em outras escrevinhanças. A única vez em que resolvi cozinhar para os amigos me deixou com os nervos em pandarecos e cheiro de comida impregnado até nos meus cabelos. Aquela inglesa bonita que aparece na TV mostra tudo com tanto charme. É que televisão não tem perfume. E o calor? Também não serviria para ser atriz. Primeiro, morro de vergonha de interpretar até música. Segundo, já pensaram repetir uma cena mais de trinta vezes? Nem com o Johnny Depp, gente! Talvez teatro seja mais interessante, porque vai tudo de uma vez. Mas eu prefiro ficar na platéia. E modelo-manequim? Além da falta do physique du rôle, eu tenho pavor de experimentar roupas. Detesto comprar roupas só porque tenho uma preguiça fora do comum de tirar tudo, vestir, andar um pouco, ver se ficou bom (e nunca fica, com aquela iluminação de provador). Fazer isso o dia inteiro? Pior que isso, só sendo aeromoça. Usar uma maquiagem pesada, viajar de avião sem parar e comer aquela comidinha de quinta categoria durante quantos e quantos anos de vida...
Resta-me a dúvida quanto a qual será a pior profissão do mundo: Sumo Sacerdote ou Rainha da Inglaterra.

Que o Papa era pop, não há como negar. Retrógrado, arrojado, careta, mal humorado, bonitão, aquele que "depois do atentado, nunca mais foi o mesmo, perdeu a vitalidade", mas conseguiu voar pros quatro cantos desse mundo de meu Deus com uma disposição que eu sequer invejo, pois jamais teria. O Papa tinha um dos empregos mais chatos deste mundo: dizer a multidões que elas deviam ser muito boazinhas, rezar missas, encontrar chefes de estado, assistir às mais aborrecidas e bregas cerimônias, rezar mais umas missinhas, usar aquelas roupas chiquérrimas, mas, convenhamos, muito pouco práticas, além de jogar pra platéia como ninguém - aquele gesto nojento de dar beijo no chão de cada lugar em que aterissava era o máximo!
A cobertura das exéquias (papa não pode ter apenas um funeralzinho besta, ora) foi das mais completas que o jornalismo mundial propiciou. Perdeu pro 11 de setembro, porque, embora os rituais fossem solenes e severos, não há como resistir a tanto colorido e manter a tristeza em filas literalmente quilométricas. Virou festa, happening! Todo mundo sabe agora como se elege papa, quanto tempo demora um conclave, o que faz o camerlengo. Eu só me lembro bem do Paulo VI, o João XXIII morreu quando eu era pequena, o João Paulo I morreu (?) rapidinho. E ficou o Karol, com seu talento dramático e charme incontestável.
O único Sumo Pontífice que eu vi de perto foi o Dalai Lama. Era a Eco-92 e eu, Hugo na barriga de oito meses, fora destacada para cobrir o que acontecia no Hotel Glória, um pouco da badalação do Aterro do Flamengo, e a Barbara Bush. Aonde iam aqueles cabelos brancos, ia eu atrás, porque era uma cobertura leve. No MAM, me encostei numa escultura do Krajberg, cansada de tanta andança. O tótem quase desabou em cima justamente de quem? Da Mrs Bush. Um cinegrafista me amparou, um iluminador escorou a escultura de madeira que não me parecia levinha como era, na verdade. Vexame total, veio uma segurança da Bush, parecida com a Kate Mahoney. Eu morri de medo da mulherzinha miúda, óculos escuros de Polícia Federal e casaco de couro. Pensei que fosse acabar na Praça Mauá, sendo visitada pelas crianças na cela, mas como nada aconteceu, me safei.
O Dalai também me fez passar maus bocados com a segurança. Uma baita confusão no Hotel Glória, Dalai ia fazer uma palestra. Lá estava eu, pensando em subir de elevador, mas, no corre-corre, decidi subir as escadas rolantes em meu ritmo de pata choca. Um segurança afobadinho foi pedindo licença e empurrando as pessoas na escadaria, que era bem estreitinha. Quando chegou perto de mim, perguntou: "Dá pra chegar pro lado?". De costas para o rapaz, respondi que não. Ele insistiu, eu me virei de lado, dando a dimensão de meu perfil. O segurança esperou bufando chegarmos ao andar superior para me cortar pela direita e voar ao encontro da entourage do Dalai. Aguardei com paciência zen que todos fossem devidamente revistados e, quando chegou minha vez, nem por detetor de metais passei. Naquela época, apenas grávidas oriundas da Colômbia ou Bolívia eram escaneadas pelos federais...
O Dalai era uma gracinha, simpaticíssimo, gentil, com as vestes mais lindas que alguém poderia usar. O público fazia aquela cara de elevação, sorvendo suas palavras como se fossem a verdade absoluta. Nem me lembro do que ele falou, mas deve ter sido alguma coisa sobre harmonia e paz entre homens e natureza. Ou seja, uma chatice total. Apesar da roupa.
Roupa linda também usou a protagonista da maior história de amor dos últimos tempos, a Camilla feiosa Bowles, que casou com o não menos feioso Charles, desagradando mãe e o povo britânico. Aquela família real ganha os tubos, vive às custas do Erário Público, esbanja dinheiro e charme, mas têm uns empreguinhos muito chatos mesmo. Não podem comer, não podem engordar, não podem beber em público, têm que ser simpáticos, não podem dar mancada, assistem a todos os shows de nativos em tudo quanto é Papua Nova Guiné do mundo, comem um pouquinho de feijoada, um pouquinho de buchada e tiram férias esquiando em público. Sempre. Estão sempre com cara de que saíram do banho e que nunca precisaram usar desodorante. Eventualmente, há uns 600 anos, são envenenados, decapitados, enfrentam alguns escândalos com amantes, mandam matar as mulheres, fundam uma nova igreja. E ainda querem ser reis. Tem gosto pra tudo nesse mundo...

Uma Mulher Pública





Há pelo menos duas situações na vida de uma mulher em que ela se torna pública. Bom, há uma terceira, mas só vou tratar das que não têm qualquer conotação moral – estar grávida ou acima do peso. A gravidez, fruto de uma atividade até pouco tempo extremamente íntima (médicos, técnicos de laboratório e sabe-se lá quantas pessoas hoje em dia participam de uma concepção), torna-se propriedade pública no exato momento em que é anunciada. Se Maria viesse a saber atualmente que estava grávida, o anjo seria o primeiro a abraçá-la, beijá-la, amassá-la, como qualquer desconhecido faz com uma gestante. Parece que o júbilo com o ventre rotundo, leva homens e mulheres a apalparem a barriga da grávida, a quem só resta agradecer tanto carinho.
Isso quando as grávidas não precisam enfrentar uns tarados. Eles surgem para afiançar, com olhos semicerrados e sussurros, que não existe nada mais irresistível sexualmente do que um barrigão de grávida, enquanto tentam passar a mão na barriga. Como mulher grávida está com os nervos à flor da barriga, é difícil explicar aos malucos que aquela gestação, geralmente, é fruto de uma paixão por outro homem. Tais dissabores, felizmente, cessam com o parto. Aí começa uma nova fase na vida da mulher pública: os observadores da amamentação, que, além de adorar assistirem ao ato de amamentar, têm receitas fantásticas para "engrossar" o leite. A mais popular delas é tomar cerveja preta, que, segundo sei, engorda um bocado, mas não aumenta a produção de leite de ninguém. É o momento em que, geralmente, a mulher começa a se sentir apenas uma reprodutora e resolve botar para correr todos os curiosos, transformando-se numa mãe leoa, furiosa e pronta a atacar quem for mexer com ela ou com seu filhote.
Outra ocasião em que a mulher se torna pública pode ser mais perene que uma gestação e tão permanente como a maternidade. É quando a mulher engorda. Tanto faz estar dois ou 30 quilos acima do peso. Basta não ter medidas de top model para suscitar a clássica pergunta: "Quando você vai começar uma dietinha?". Pais, amigos e parentes estão aí para azucrinar nossa existência mesmo e vão cansar de repetir a pergunta, pois desejam o que consideram melhor para nós. Mas ouvir isso, das mais variadas formas possíveis, de desconhecidos é igual a encarar os tarados por gestantes. Constrangedor e insuportável.
Atire a primeira pedra a gorda que nunca foi informada sobre produtos miraculosos, como alcachofras em cápsulas, nos balcões de farmácia! Ou quem já ouviu de um total desconhecido loas sobre os pós mágicos do Herbalife? Para desvencilhar-se do ataque dos caçadores de gordos, o jeito é engatilhar um sorriso amarelo e informar que tem endocrinologista marcado para a semana seguinte.
Das mais pitorescas abordagem que sofri, uma foi em pleno estacionamento da Catedral Metropolitana. Uma velhinha se dirige a mim perguntando se eu não queria emagrecer. "Minha filha, eu era igual a você. Tomei Herbalife, olha como fiquei em seis meses". Estarrecedor, ela parecia uma retirante nordestina e eu não sei se gostaria de, em seis meses, ganhar tantas rugas... As estratégias de assalto desses vendedores precisam de algum refinamento. Ninguém superou o vendedor de túnicas na praia que se virou para mim e lascou: "Se eu arrumar uma túnica GG preta, a senhora compra?" Foi tão inesperado - e rude - que eu dei uma gargalhada antes de recusar a graciosa oferta. Uma amiga foi atacada de forma semelhante, provavelmente pelo mesmo vendedor, que lhe ofereceu uma camiseta Extra Large, em Ipanema. Minha amiga olhou seriamente para o homem e perguntou: "Extra Large? Por quê? Por acaso o senhor está dizendo que eu sou gorda?". Não adiantou o homem jurar que os tamanhos Extra Large GG Plus dele eram correspondente a manequim 38. Minha amiga manteve sua interpretação de ofendida e o vendedor deve estar até hoje analisando suas técnicas para conquistar freguesia.
Uma tática freqüentemente adotada pelos que tentam chamar ao regime as mulheres gordas é a adulação. Erroneamente, eles acreditam que classificar a pessoa de "fofinha" ou "forte" confere mais dignidade à vítima. Há os que dizem "Você não é gorda, tem quadris largos, um pouco de barriga, coxas grossas e um busto farto, que agora está na moda". E concluem com o que pensam ser o apelo definitivo: incentivar a vaidade. "Você é tão bonita, não pode se abandonar assim". Ou seja, as feias têm o direito de permanecer barangudas sem ninguém que as atazane. Outro bordão é "Não é uma questão de estética, mas de saúde". Mentira. Se a gente é magro e doentio, ninguém liga. O problema é ser gordo e saudável.
Interessante também é a absoluta convicção de que todos os gordos têm loucura por doces, chocolate, McDonald's e sabem cozinhar. Aliás, basta ser mulher para o mundo inteiro acreditar em seu profundo conhecimento culinário. Ao longo dos anos em que o peso passou a ser mais importante que minha personalidade, descobri que metade da humanidade tem certeza que o chocolate inebria qualquer coração ou mente. Bem, sou exceção à regra. Com peso acima dos três dígitos, dou meu testemunho: não como açúcar, não suporto balas, não gosto de gordura, não tomo sorvete, não ligo para chocolate, nem para massas em geral. O êxtase gastronômico para mim vem na forma de pão. Qualquer um. Sou absolutamente doida por pães.
Bem pior que convencer o mundo de que não gosto de açúcar nem de Big Mac é ficar com cara de paspalha com a insistência em me explicarem detalhadamente a confecção de pratos assim que elogio ou apenas provo uma comida. Imediatamente, a cozinheira (isso é coisa de mulher, querer compartilhar sua sabedoria; homem guarda para si) passa a enumerar ingredientes e desfilar detalhadas instruções para a montagem da iguaria, algo que jamais me habilitarei a tentar executar pela simples razão de que mal sei fritar um ovo e estou feliz desse jeito. Fui criada longe da cozinha, descobri como se preparava macarrão aos 26 anos. Vejo nos congelados aliados de gente como eu que gosta de comer, mas não tem a menor vocação para passar horas à frente de um forno quente, conversando com gente perfumadinha, enquanto adquire todos os odores do que está sendo preparado.
Enfim, adoraria que tivesse com o peso a mesma saudável relação que mantenho há 44 anos com meus cabelos, pele e bronzeado. Convivemos harmonicamente, trato deles com a higiene necessária e eles se apresentam sempre bem, sem sem vincos nem depressões e com uma coloração brilhante. Já que meu corpo não entendeu que meus parcos cuidados deveriam ser retribuídos com a firmeza dos 20 anos, só me resta esquecer o pão por algum tempo e trocá-lo por frutas, saladas e pouco queijo. Veremos o que acontece. Ah, 130 anos atrás isso não me atormentaria. Talvez tivesse que me proteger do sol para não amorenar tanto, mas... Ah, Maupassant, ah, Renoir!. Que musa vocês perderam...

Esta é para todos os meus amados amigos-irmãos, que, eu sei, vão continuar me atazanando enquanto eu não emagrecer por motivos de saúde, não estéticos.