26.4.05

Frente fria

O tempo virou, ando mal humorada e não sei mais escrever. Eu, que sempre odiei comportamentos típicos, me vejo agindo como uma carioca daquelas que falam arrastado, puxando "erres" e "essechs". Voltei a ser uma criatura solar, dependente do sol e céu azul para me alegrar.
Nada contra a chuva e a queda de temperatura. Eu sempre gostei de uma chuvinha. Quando vocifero contra o calor, lendo notícias de frentes frias que sempre se dissipam antes de chegar à cidade, também imagino que exista um lugar muito bom, entre o Rio e São Paulo, entre o Rio e o mar, entre o Rio e as serras, onde as frentes frias se escondem e se aquecem. Tenho pavor é de inundação, de enfiar o carro em rios, de brincar de enduro pra chegar aos lugares. É que levei tanto tempo para fazer as pazes com o sol e o calor que estranho este clima londrino. Não calçava meias e mocassins há uns bons oito meses. E meu carro, que só recebia areia seca dentro, agora tem lama também. Culpa da chuva e da areia do estacionamento. Aliás, como tem terra nesta cidade. Parece um vilarejo do interior. Cada chuvinha que cai, depois que as águas da inundação baixam, as ruas ficam cobertas de lodo.
Para rir, só a inadequação do vestuário carioca em dias mais fresquinhos. Sem confiar na chuva que iria pegar, saí de "explosão em púrpura": calça ameixa, blusa cereja, blazer entre violeta e fúcsia, guarda-chuva vermelho. Modelo perfeito para o "Esquadrão da Moda", aquele programa das jornalistas de moda inglesas que pegam umas inglesonas manequim 50 e dão um cheque de milhares de libras para reformarem o guarda-roupa. Como todas as inglesas são alvas e louras, ficam bem de ameixa, a cor favorita das jornalistas. Agora, é só chegar na janela e ver que, debaixo de guardas-chuvas, há as mais estranhas combinações, verdadeiros atentados ao bom gosto. Os rapazes se enfiam em casacos impermeáveis apropriados para enfrentar tempestades em alto mar. Mulheres continuam decotadas, saltitando sobre saltos agulhas, estragando bons calçados na areinha que sobe das pedras portuguesas. Para completar as fatiotas, guardas-chuvas vagabundos de camelô, nos padrões xadrez, floral, transparente, metálico ou negro.

De onde surgem os camelôs de guardas-chuvas? Eles vêm com os primeiros pingos, sempre apregoando as mercadorias "só a cinco real" aos berros. Todos fariam facilmente carreira como timoneiros em regatas de remo, dada a capacidade vocal com que atordoam quem transita nas apertadas calçadas ocupadas também camelôs de brinquedos, capas de celular, artefatos telefônicos e vendedores de CDs piratas. Caminhar nas ruas cariocas, o que já é uma façanha diária, torna-se um tormento em dia de chuva. Isso porque além de driblar todos os produtos expostos em banquinhas ou no chão, ainda se corre o risco de ser alvejado por litros de água que se acumulam sobre as barraquinhas.
No livro O Rio de Janeiro de Meu Tempo, o cronista Luís Edmundo já criticava o excesso de camelôs na cidade em fins do século XIX. Não conheci o Rio sem camelôs. Conheci com menos camelôs, nunca sem eles. Ouvi em várias coletivas governantes afirmando que iriam confiná-los em diversos espaços, o que me parecia tirar o sentido do termo "vendedor ambulante". Eu estava errada, claro. O único camelódromo que deu errado foi o primeiro, criado na conjuntura Brizol-Darcy Ribeiro e sabe lá quem na prefeitura (Jamil Haddad, Marcelo Alencar ou Saturnino Braga). O camelódromo era na Praça Onze e ficou às moscas. Hoje existe outro, bem sucedido, perto do Saara. É horrível, nunca tive coragem de me embrenhar naquela selva de barracas. Já pensaram em transferir todos os camelôs para o Pavilhão de São Cristóvão, um dos locais em que nunca fui na vida, uma falha carioca (também nunca subi ao Pão de Açúcar, mas é porque sou covarde mesmo, nem peguei o bondinho de Santa Teresa). Esses planos me parecem aqueles projetos de revitalização da Zona Portuária, que escuto há 20 anos e nunca vejo sair do papel.
O certo é que os camelôs estão aí e vão permanecer. Houve época em que eu fazia boicote, não comprava nada de camelô para não prejudicar o comércio que paga impostos. Reconheço que meu boicote nada adiantou. Passei a entender o camelô como alguém que corre atrás da sobrevivência e virei freguesa fiel de artigos como ralos de pia, panos de chão e abridores de lata, bem mais baratos na mão deles que nos supermercados. Mas é só eu ter que me espremer no meio-fio porque a calçada é deles que meu ressentimento vem à tona outra vez. E quando o calor voltar e eu não estiver mais calçando mocassins e sim me equilibrando numa plataforma, continuarei maldizendo as calçadas entupidas de camelôs, pedintes e gente apressada. Como qualquer carioca típica.

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