30.11.17

Sobre fome e tristeza

Como boa parte dos habitantes do planeta, vivo para pagar dívidas e serviços. Sei que conseguirei saldar tudo em algum momento, nem que para isso me desfaça do patrimônio conseguido com sacrifícios e trabalho. Começar de novo é difícil, porém não impossível para mim. Meus problemas são equilibrar contas, e, vez por outra, passar pelo constrangimento de ter luz ou gás cortados por falta de pagamento.
E as pessoas que não têm como se constranger? Pessoas que só tiveram o azar de não serem frutos do mesmo acaso biológico que eu. Pessoas que tentam buscar algum oxigênio na miséria e que perdem um direito social cortado porque precisamos, sim, arcar com salários e benefícios altíssimos para apenas uma parcela ínfima da população. Pessoas que vivem à míngua, completamente ignoradas pelo Estado.
Foi para isso que depuseram Dilma Roussef.
Não pela corrupção, que, esta sim, sobreviverá e alimentará os poucos de sempre.
Enquanto se isentam de impostos os bancos, lutam para encerrar programas "populistas", retirar direitos trabalhistas e reformar a Previdência.




Mas isso não interessa a Simone e a seu filho. E ninguém se interessa por Simone e por seu filho. Ela, uma folgada, que viveu às custas da gente de bem, terá que se virar para alimentar o garoto. Ou morrer, né? De fome e de tristeza mesmo.

28.11.17

Sobre eles, que dão trabalho

Em época relativamente recente, pessoas sem filhos criticavam quem tinha crianças para criar, de como esses pais haviam se tornado desinteressantes desde que obrigados a cuidar de gente. Isso caiu de moda, porque muitos desses se tornaram pais. Agora, a tendência é mães de primeira viagem reclamarem do quanto a maternidade é cansativa - as mesmas lamentações que ouvi quando era menina, numa praia em Cabo Frio, de uma roda de mulheres, uns 40 e poucos anos atrás.
Ninguém está descobrindo a roda: crianças são chatas e trabalhosas, sim, educar é um sacerdócio, durante doze anos consecutivos temos de repetir para aquele povo tomar banho, escovar os dentes, comer de boca fechada, agradecer, cumprimentar, dar lugar para os mais velhos na condução. Um dia, eles fazem tudo isso sozinhos.
A intolerância pública, no entanto, ressurge, exuberante, imatura, sempre que tem chance. Ela é filha dileta de quem caiu no conto da família de anúncio de margarina, acreditando na importância de decorar um quarto de bebê, de equipar a vida com eletrônicos como se eles suprissem as necessidades de um recém-nascido. E aí vem a descoberta de que ter filho tarde, quando a carreira está consolidada, exige uma energia que a idade nem sempre oferece. E que a terceirização desses cuidados - com filhos, em creches, pais e parentes idosos sob a supervisão de cuidadores ou em asilos - custa caro a ponto de acabar sendo exercida por quem gostaria de ter como se desvencilhar dessas tarefas sem fazer o trabalho sujo.
A PEC das domésticas tornou a vida mais igualitária e ... redistribuiu o trabalho. A quem lamenta a crise e bota a culpa no PT pelo fim da vida mansa, melhor é reescrever a letra de 'Mulata Assanhada' e resmungar contra o patrulhismo politicamente correto. E se acostumar com os petizes irrequietos. Um dia, eles crescem.

27.11.17

Sabores e poses

Feirinha de comilança em prol dos refugiados que se abrigam no Brasil. Sábado de sol lindo na Província, uma monte de gente branquíssima se enfileirando para comprar comidas "exóticas" e beber cerveja artesanal. Fora o discurso sobre o aroma frutado e tom ácido da bebida, uma delícia, o chope bem carinho, mas palatável, assim como o lanchinho indiano, que dispensou a bula, porque a vendedora tinha mais do que 40 anos de idade. O chá da moda também só é vendido depois de muita informação sobre odores, sabores e efeitos colaterais benéficos para quem comprar uma garrafinha.
Tem artesanato boliviano confeccionado por nativos que vivem à beira da indigência em suas aldeias andinas. Uma bolsa coloridíssima sai por meros R$ 200. A pequenina, pouco maior que um moedeiro, a R$ 80. Duas coroas se sentam em um banco onde uma jovem mãe amamenta o filhinho. Uma delas amigas faz festa para a criança e fala com saudade da época maravilhosa, do laço entre bebê e mãe. A jovem mãe não sorri. Parece dizer com o olhar sério que a maternidade é um ofício duro, sem alegrias, repleto de sacrifícios para o corpo que merecia descansar e não ter suas forças sugadas por aquele ser parasitário que ela cuida com desvelo, impedida de ingerir álcool ou desfrutar de prazeres garantidos a quem não tem compromisso com a criação de pessoas. Em frente aos bancos, um rapaz de coque ninja corta (mal, muito mal mesmo) cabeleiras de moças despenteadas. O resultado é ruim, mas combina com as roupas desbeiçadas, peles pálidas tatuadas.
Os velhos presentes comem muito. As crianças fazem cara feia para a comida, correm e não querem saber de recreadores que oferecem oficinas de desenho.
As amigas coroas gastaram, cada uma, em torno de 30 reais no lanchinho. Ficaram apenas nas iguarias árabes e indianas. Para experimentar os pratos argentinos, colombianos, nigerianos e peruanos, além de tudo quanto era pão, sorvete, café e docinhos brasileiros, teriam que gastar em torno de 90 reais por cabeça.
Como programa, perde para um dia de praia.
Como caridade, fica impossível para bolsos combalidos por tantas crises.
A causa é nobre, o dinheiro, infelizmente, curto. A pose, essa foi perdida junto com as ilusões.

9.11.17

Carta para Gal

Gal,
Faz uma semana que você se foi. Eu estava na cozinha, buscando o saleiro, direto dentro do armário, o lugar dele, do óleo, do vinagre e do azeite por determinação sua. Pensei em devolver a bandejinha onde se equilibram as garrafinhas ao parapeito ao lado do fogão, onde ela ficava até você quebrar dois frascos de azeite. Faz muito tempo, faz pouco tempo, nem sei mais. Acho que ficará como você me obrigou a decidir, tudo guardado no armário mesmo. Já me acostumei.
Ainda não entendi a vida sem você. Agador incorpora hábitos seus e da Jolie. Aparece no meu quarto de manhã, miando desafinado, acho que tentando imitar o seu tom de indignação por não ter sido alimentado. Segue a Júlia pela casa inteira, mas também se embola em minhas pernas e nas de Hugo, rondando cada um, temeroso de ficar sozinho. Gosta de carinho, mas não de colo. Tem mania de se deitar ao lado de meu travesseiro – o que não melhorou em nada a minha asma.
Aliás, eu achava que fosse dispensar o broncodilatador, depois da partida de vocês duas. Que nada, uso religiosamente, duas vezes ao dia. Tive uma crise muito séria pouco antes de sacrificarmos Jolie.
Engordei. Como pão o dia inteiro, desacostumada em abrir a geladeira sem você saltando para retirar o que estivesse em minha mão. A casa está imensa, Gal. A casa que era sua e da Jolie. Uma vez fiz uma foto sua num sofá, bem egípcia, bem proprietária, logo depois da morte da Mel. Não sei lidar com um gato só, ainda por cima macho. Sim, são diferentes. É provável que peguemos mais um, já idealizei: todo negro, de olhos amarelos. Dificilmente corresponderá ao perfil, bem sei. Mas não deve ser por agora.
A vida começa a se reconstruir. Eu subestimava a dor da perda de animais até vocês nos enlouquecerem e preocuparem. É uma relação silenciosa, brincalhona, sem retorno algum além do apego, do carinho. Eu costumava dizer que a Jolie era uma “gata de companhia”. Você já havia deixado essa fase. Mais novinha, você adorava se enfiar debaixo das minhas cobertas, enroscar-se comigo quando eu assistia TV ou lia. Depois, mudou-se para a cozinha, dormia em tapetes, em caixas de papelão. Envelheceu sem perder o apetite.
Igual a mim.
Desde q você morreu, a fome me consome. Vai passar, eu sei, junto com  esta saudade danada. Mas ainda faz o olho encher d’água, a cara se encrespar, o coração se afundar. E eu nem sei se quero que passe.