31.5.05

Além da Linha Vermelha





Hermes era o protetor dos viajantes na Grécia Antiga. Sei que São Cristóvão é o protetor dos motoristas, mas quem será o santo dos passageiros? A cada incursão profissional por este Rio de Janeiro adentro, imagino o quão maravilhoso deve ser viver em lugares calmos, pequenos, distantes dos grandes centros, ou talvez em países pequenos, com poucas paragens, que não exijam um deslocamento penoso. Algo assim como a tundra siberiana. Quem cai lá, sairá por quê?
Mas sou carioca, guanabarina (nasci no estado da Guanabara, só tive uma passagem de vida fluminense até chegar à idade da razão e tornar-me rubro-negra, claro) e jornalista. Ou seja, não basta ser classe média empobrecida, tem que sofrer para se sentir culpada e lamentar as condições de vida de quem mora no fim do mundo.
Estive perto dele. Deixei a reportagem, mas, como assessora de imprensa, tenho a função de acompanhar repórteres que fazem matérias sobre projetos patrocinados por minha empresa. Por isso, fui a Reserva Ambiental de Tinguá, um dos únicos recantos aprazíveis da Baixada Fluminense. Reza a lenda que no verão e nos fins de semana, a região fervilha de gente. Durante a semana tem gente também. Gente que encontramos na estrada e informa que a Reserva "ih, é longe. Segue por ali e vai ter chão. Você chega lá. Mas demora".
Demora mesmo. Na verdade, poderia demorar menos que 1h45m, tempo transcorrido entre Botafogo e nosso destino, caso o motorista do táxi:
1) soubesse o caminho;
2) dirigisse a mais de 65 quilômetros por hora;
3) mantivesse o pé firme no acelerador, sem reduzir a velocidade a cada três segundos.
O motorista, seu Fernando, português de 63 anos, 45 de Rio de Janeiro, separado da mulher há oito após três décadas de casamento, contava sua vida, reclamava do governo e proferia ditados populares enquanto pedia instruções pelo rádio aos colegas de cooperativa para chegarmos ao Hospital da Posse - ponto de referência para o destino final. A mulher de seu Fernando é que decidiu a separação, mas queria continuar como amante dele. "Isso eu não aceito, né, minha senhora! Casamento é igual cachaça: uma alegria no começo e muita dor-de-cabeça no fim". Ditado que se aplicava à nossa odisséia, já que, passada a Linha Vermelha, o ar-condicionado do carro pifou.
No Centro de Nova Iguaçu constatamos que indicação de trânsito por placas é raridade. Todos os motoristas parecem conhecer os caminhos, assim como os diversos pedestres consultados durante nossa travessia. Havia placas, nenhuma com o nome de qualquer rua, muitas indicando o Detran. Provavelmente, se fôssemos até o Detran, encontraríamos um serviço de informações acurado a respeito daquelas paragens. O Hospital da Posse só merece três placas. Afinal, é a unidade de referência da Baixada e, portanto, todo mundo deve saber chegar a ele sem necessidade de indicações por escrito.
Para compensar a ausência de placas, todas as lojas e biroscas pelas ruas têm seus nomes estampados nas mais variadas grafias (Kaktu é uma empresa de projetos de jardinagem, ou seja, uma loja de plantas, na qual não se vê um só cactus). Há muitas faixas anunciando shows como o de Rodriguinho (?), pela primeira vez em Nova Iguaçu, e o baile comandado pela MC Sabrina. Não sei se Rodriguinho e Mc Sabrina são artistas conhecidos. Talvez meu esnobismo explique minha ignorância a respeito da existência deles.
O desprezo pela sinalização é tamanho em Nova Iguaçu que, numa esquina de cruzamento (cruzamento na Baixada é mais ou menos como duelo em faroeste: é preciso ser muito macho para enfrentar, porque todas as ruas são de mão dupla, algumas subindo colinas e todos os veículos trafegam sem se importar com os demais) há quatro placas, duas encobrindo as outras. Para lê-las, é necessário aproximar-se da esquina (que, naturalmente, está na outra mão da rua, num morrinho) e tentar vislumbrar os dizeres, esmaecidos pela ação do tempo.
Pergunta daqui, pergunta de lá, alcançamos Tinguá, um lugar muito agradável mesmo.Difícil de chegar, mas bonito, fresquinho, muitas árvores. Numa das muitas estradas que trilhamos, bonitas casas de sítio, muros cobertos por bouganvilles, algumas fazendolas abandonadas, poucas ruínas, muitos ajuntamentos de imóveis modestos, só no tijolo, um ponto acima das favelas. Pracinhas próximas a escolas, muitas igrejas evangélicas (Universal, claro), apenas uma católica, um Ciep com a pintura descascada, um colégio particular. Adolescentes de bicicleta, jovens conversando, crianças indo para o colégio sozinhas. Minha estagiária observou que o local é muito tranqüilo, não corresponde à imagem aterradora que temos da Baixada. Mas não há emprego fora do comércio local, composto por biroscas e oficinas de ferro-velho. A sensação de segurança deve desaparecer à noite.
Acompanhamos a matéria, compramos souvenires - viagem é viagem; sempre trazemos lembrancinhas para os colegas, amigos e parentes - e retornamos. A volta é sempre mais rápida quando tomamos as mesmas estradas. É verdade que passamos sobre a linha férrea, que, em Vila da Cava é anunciada com uma placa monstruosa onde está escrito: TREM. Todos caminham sobre os trilhos, sem qualquer preocupação com o TREM. O aviso encantou seu Fernando, que aproveitou para engatar algumas piadas sobre o uso da expressão pelos mineiros.
Depois de mais algumas voltas erradas, consultamos outros pedestres, nos recusamos a dar carona para uma senhora que estava no ponto de ônibus - o que, na Baixada é reconhecível pelo ajuntamento de pessoas, já que não existe qualquer poste com os números das linhas que param no local - e, enfim, voltamos à Dutra. Seu Fernando informou que não podíamos oferecer carona porque as leis trabalhistas punem a empresa caso haja um acidente e tenhamos algum não-empregado a bordo.
Após 139,9 quilômetros de viagem, confirmo minha impressão: a Baixada tem vários fins de mundo e, em todos eles minha valente Elba 91 encontraria carros ainda mais mal conservados e idosos que ela. Em verdade eu vos digo: nesta carcaça carioca vive uma socialite fluminense.

30.5.05





A gente descobre que não vai morrer de amor quando os dias recomeçam mesmo se o outro não está do lado, acendendo a luz cedinho, desligando o despertador, tentando caminhar silenciosamente para não nos acordar. A gente sabe que vai sobreviver à ausência de quem viajou, dos mortos, dos que abandonaram o barco por vontade, por doença, por medo.
E aí nos sobra a dor, que sai do peito e se espalha pelos braços, imobiliza pernas, cerra os olhos, quebra os dentes, rouba a cor dos cabelos e o brilho da pele. A gente se encasula, se embota, se camufla nas paredes de casas sem forro, com buracos nos tetos, reboco descascando.
A vida continua à noite, nos sonhos, quando todos os desaparecidos retornam para cobrar a prestação de contas devidas que se embolam e destroem os vestígios do passado. De manhã, mais um dia começa desanimado e a ele se sucedem tardes infinitas, depois noites curtas, frescas, insuficientes para restaurar a energia de quem perdeu o alento.
Odeio tecnologia que me faz de besta. Depois de quase uma semana sem PC em casa, ele voltou lindão, com mais memória e um XP no lugar do Windows 98. Oba, tenho XP no trabalho, onde também conto com uma rede e dois milhões de memória, claro! Em casa, a memória, mesmo reforçada, não é grande coisa, já que o XP é pesadão. Mas tem um visual belíssimo, modernoso, cores sensacionais e ... vontade própria, é óbvio. A seção Meus Favoritos, por exemplo, traz aquela lista de sites interessantíssimos indicados pela Microsoft "Gambling on line", "Pharmacy", "Travel", com link para hotéis de Las Vegas, Shopping gifts com Video Survellance. Ou seja, tudo o que não está entre meus favoritos. Só que não há santo que faça desaparecer esses não-favoritos.
Então, só há um jeito, apagar todos os meus sites favoritos, porque esses todos que se acoplaram aos meus e que não há como retirar, são sites indesejados, pros quais gostaria de botar um bloqueio.
Da mesma maneira, além daqueles milhões de breguetes em três barras de ferramentas, ainda há uma droga de faixa de "search", da Microsoft, que também é pra gente acabar fazendo compras na Web.
Ô, Bill Gates, dá um tempo! Faça uma caridade, atividade que você tanto preza, e NÃO ME CHATEIA MAIS!!!! Deixa meu PC em paz!

27.5.05

Aos 44 do primeiro tempo





Parece que perdi muito tempo. Vinte anos atrás, não fiz mestrado, não fiz doutorado, não troquei de país. Comecei a correr o mundo, aí, resolvi aburguesar pra ver se dava certo. Não agüentava mais a noite, abandonei parte das drogas, bebia só vinho no fim de semana. Fumava dois maços e meio de Marlboro por dia. E não aprendi a cozinhar. Comprei carro, casa.
Tive que largar o cigarro, um menino crescia em mim. Comprei a segunda casa, não corri mais o mundo. Fiz um montão de crianças, cuidei de tanta gente. Perdi tanta gente. Continuo criando gente e bichos.
Arrumei uma tartaruguinha que vai viver mais do que eu, espero. Será minha permanência perto de meus netos.
Enquanto ela não cresce, tento fugir da velhice me infiltrando em novos mundos, já que não pude conhecer o velho planeta.
Aos 44 do primeiro tempo.
foto: Guillaume Pazat/kameraphoto





Se eu pudesse escolher um cenário para a vida,mesmo amando as praias do Atlântico,
viveria dentro de uma pintura de Raoul Dufy, no meio de todas aquelas cores, aqueles traços de tecidos diáfanos, noites estreladas, enfumaçadas e borbulhantes.
Eu trocaria Ipanema pelo Mediterrâneo. Mas na Riviera.
Do outro lado, só passeando de navio ou na corcova de um camelo, chapéu safari, muitas écharpes e um olhar curioso, porém arrogante.
Nada de cair daquele lado do Mediterrâneo. Aquele lado, deixo pros tuaregues.
Naquele lado só serei turista. No Mediterrâneo europeu, ao contrário, eu nem sonharia. Só viveria. E muito.




Fico TÃO impressionada com o número de visitantes em blogs. Quer dizer, com o número de visitantes em outros blogs, blogs célebres, inteligentes, eruditos, heterodoxos ou, pelo menos, pretensiosos. O meu, mal chega a 200 visitas, enquanto outros têm literalmente milhares de visitantes.
Quando comecei este blog, mero back up era ele do Multiply. Começou a caminhar com pernas próprias, ou melhor, com digitadas próprias, porque realmente sinto que as palavras não saem de mim, saem dos dedos, como se magicamente fluissem, sem qualquer interferência consciente do meu ser. Com ficção é assim mesmo, as histórias acontecem sozinhas, tomam rumo próprio. Aliás, acho que escrever, no meu caso é assim. Jamais tenho um plano traçado. Começo e as idéias brotam, jorram, se espalham, saem da ponta dos dedos.
Isso nunca aconteceu com a música. Estudei piano por quase doze anos. Achava bonito o som. Meus pais me compraram um Bentley, armário, muito bom, depois que eu batuquei um pouquinho num pianinho de brinquedo cor-de-rosa. Mamãe perguntou se eu queria aprender piano e aos quatro anos, assumi o compromisso solene de ingressar nos mistérios da música. Para mim, era uma tortura absoluta estudar piano. Comparecia às aulas, aprendia ali e nunca praticava. A única bomba que tomei em estudos foi no quarto ano de teoria musical. Fiquei livre daquela chatice.
Eu simplesmente não compreendia tempos, compassos, ritmos, notas, não identificava sons, era um terror em ditado. Até hoje sou assim. Canto até razoavelmente, sou afinada, sou musical, mas nunca tive qualquer prazer em tocar qualquer instrumento. Lógico que houve a fase da flauta também. Como eu era do contra, enquanto toda a turma aprendia a tocar em flautinhas soprano, eu comprei uma contralto, claro. Até que flauta eu toquei direitinho. Piano também, fui selecionada, sem saber, durante uma apresentação na escola, para tocar no João Caetano. Lá fui eu, a única a não estar nervosa entre as pequenas musicistas, toquei uma sonata de Mozart tranqüilamente. Devia ter uns 10 anos. Somente aos 15 anos tive coragem de dizer, en passant, durante uma festa, para minha mãe, que não queria mais estudar piano - que, em nossas brigas, ela ameaçava sempre arrebentar com um martelo. Eu imaginava a cena: teclas saltando com as marteladas que viriam de lado ou por baixo, senão, como elas sairiam? E jurava que iria estudar ou me calava. E continuava enrolando com o piano.
Hoje, meu repertório se limita ao "Bife". Com acompanhamento, claro. Não sei ler mais clave de fá e descubro que partituras foram substituídas pelas práticas cifras, quando meus filhos tocam violão. Fim do parênteses, volto ao tema do post.
Sem planos definidos quanto ao objetivo deste blog, curvo-me ao umbiguismo que tanto vejo pela Web. No meu caso, um umbiguismo freudiano de gente precocemente envelhecida. No qual as palavras passam por meus dedos sem que eu reflita ou tente detê-las. E daí, uma reflexão sobre blogs se transforma numa recordação que deveria estar escondida sob os cobertores da memória.

Vigilância Sanitária





Sexta-feira pós-feriado, pouco a fazer no trabalho e, além de lamentar a impossibilidade de estar em qualquer outro lugar, ainda temos o banheiro feminino dominado por uma vendedora de jóias que há uma semana faz ponto lá dentro. Não contente apenas com a inconveniência causada por sua simples presença, ela faz questão de ser simpática e de informar quem entra no recinto que está monitorando a freqüência no local.
Se não impedirem a entrada dessa mulher no prédio, todas teremos cistite em breve!

25.5.05

Rosinha Não!!!!!





Para quem acha que ela deve ser reeleita alguma coisa.

24.5.05

Desolada





Eu vejo - e morro de medo - "Lost", série gravada no Havaí, mas que tem a trama localizada numa ilha que seria Atlântida, o Triângulo das Bermudas, o Purgatório ou sabe-se lá o quê. Um acidente de avião que ia de Sidney para Los Angeles deixa 48 sobreviventes na tal ilha. Já morreram uns três desses que sobraram. O próximo presunto é o bonitinho acima, que tem olhos azuis impressionantes! Descobri porque fui ler o resumo dos capítulos que já passaram nos Estados Unidos. Bem feito por ser curiosa.

Os produtores, claro, são homens que detestam homem bonito. Também, nesses tempos politicamente corretos, como é que eles poderiam matar um feioso, um gordão, uma senhora negra, um velho ou alguma mulher? Tinha que sobrar pro adonis mesmo...

Esta é para Marina, a anônima que gosta de olhos claros...

Dá um close nela





O Gael não ficou muito mais bonito como mulher do que como homem?

Malandragem, dá um tempo!





Uma campanha virtual pela saúde de nosso estado!
Colado de http://adonadoblog.blogspot.com/ por motivo de força maior!

23.5.05

Webliterata

Minha estréia literária na web está no blog www.anjosdeprata.com.br
Tem um monte de contos sobre o tema "Meia-Luz". Um deles é meu. Está por ordem alfabética e, se o link não der certo, é só procurar lá.

Nas alturas




Existem lugares no mundo que eu jamais conhecerei ou que nunca pensei em conhecer. Rondônia, por exemplo. Nada contra Rondônia, mas não há motivo algum, nenhum amigo morando por lá, nem qualquer curiosidade antropológica ou cultural que me faça pensar em visitar Rondônia. Exceto o trabalho. Meu ofício me fez conhecer locais do Rio de Janeiro que gente em meu círculo de amizades sequer sabe o nome. Para eles, ir a Barros Filho é o mesmo que ganhar uma passagem para o Cafiristão.
Quando repórter geraldina, trilhei muitos caminhos que hoje não me passam sequer pela cabeça. Catar endereços em Bangu, que só tem um bairro famoso, o Jabour, é tarefa para detetive que não use capa impermeável, porque o calor de Bangu só se compara ao frio que faz naquelas plagas. Cansei de sair para uma roubada na Zona Oeste, que, na época, os chefes de reportagem consideravam próxima de qualquer local no mapa fluminense. De lá, quando dávamos o retorno por rádio ou por orelhão, algumas vezes das casas dos entrevistados, éramos mandados para "Seropédica, que fica aí do lado". O "do lado" significavam uns bons trinta quilômetros. Mas geraldino não fala. Está um ponto acima do repórter especializado em polícia, dois do que fica na escuta, três dos que fazem exclusivamente jornais de bairro e é quatro vezes superior, na mesma escala hierárquica, que um estagiário. Ou seja, repórter de Geral não apita quase nada e segue humildemente as determinações do chefe. Assim, fui descobrindo a existência de recantos não tão aprazíveis quanto a ZSul, porém interessantes e apavorantes, quando era neles abandonada, sem carro ou fotógrafo, precisando suplicar por um carro que me pegasse ao fim da apuração e me levasse de volta ao Centro.
A angústia, por vezes, era minha companheira nessas incursões, num tempo em que não existia telefone celular nem ar condicionado no carro de reportagem, nos quais, quem mandava era o motorista. Aos sábados de manhã, as viagens eram embaladas por um programa que entremeava canções de Roberto Carlos e Julio Iglesias. Ao longo da semana, era pagode sem parar. Atravessar a Avenida Brasil ao som de pagodes era insuportável, a ponto de eu carregar comigo um walkman, só para ouvir a Rádio MEC, como antídoto contra a mediocridade auditiva a que era submetida por meus algozes.
Essa época inglória, embora divertida, pude recordar quando, a serviço, fui mandada para um congresso de jornalistas em Itatiaia, tendo como companheira de viagem e de quarto de hotel, minha amiga Rosane Serro. Para passar o fim-de-semana. Bom, como dizia a Laura Antunes, do Globo, pobre quando vai a Búzios, pega chuva. Desde a convocação, eu pressentia que a viagem não seria tão divertida quanto se apresentava. A nós foi dada a opção de ir em carro ou seguir de ônibus, com outros jornalistas. Preferimos o carro. O motorista logo nos perguntou qual gênero musical preferíamos.
- Nada de sertanejo, pagode ou gospel - definimos.
Começava ali nosso tormento. Engarrafadas na Avenida Brasil, ouvimos sucessos românticos das décadas de 60, 70, 80 e 90 , ininterruptamente, por três horas e meia. Sem sequer um locutor sussurando "Good Times, 98", enquanto éramos invadidas por "You're once, twice, three times a lady" e todo o repertório dos Commodores, além de Diana Ross, Donny Hathaway, Michael Jackson meloso ("Ben"). O mais animadinho, nesse purgatório soul de segundo escalão, foi Stevie Wonder cantando "I've Just Called to Say I love You" - e eu aguardava surgir, a cada refrão, o jingle "Antena Um". E dá-lhe Whitney Houston, Jackson Five ("Got to be There"), Mariah Carey, Lionel Ritchie, Bee Gees ("How can you mend a broken heart"), Minnie Ripperton.
Fim da jornada, Sinatra cantando "New York, New York", saímos para a geleira em que se transformara Itatiaia naquela noite, quando os termômetros registravam 3 graus centígrados, temperatura para a qual não fui geneticamente programada. Ao deixarmos o carro de nosso Caronte, não havia um cérbero para nos dar boas vindas, mas gente transfigurada de frio, coberta por estranhas vestimentas, parecendo que entrávamos numa hospedaria do Senhor dos Anéis. Crentes que, enfim, descansaríamos aquecidas, descobrimos que no Hotel Simon, tradicional palco de lua-de-mel de diversos pais de amigos, não havia calefação. Mas tinha mofo. Esperava encontrar um laboratório onde haveria estufas para cultura de ácaros ou era apenas o desvario provocado pelo consumo de seis comprimidos de antialérgico durante nossa interminável estada naquele cenário dantesco.
Nosso quarto estava em penumbra, conforme a outra repórter que seria nossa companheira de hospedagem gostava. Escureceu mais ainda quando Rosane resolveu ligar um ferro elétrico para passar um vestido e cortou a iluminação no andar inteiro. Restaurada a luz, descemos para o salão de refeições, eu com três blusões superpostos, parecendo um boneco de neve mal ajambrado, Rosane elegante, apesar do vestido amassado. Grupos de coleguinhas lutavam contra o frio, embriagando-se de vinhos nacionais de qualidade duvidosa. Prática que segui para conseguir adormecer de madrugada, congelada e prester a ter uma crise asmática após quase 30 anos sem a doença manifestar-se.
De manhã, a neblina cobria tudo. A visibilidade limitava-se a um raio de meio metro em torno de cada pessoa. Um rapaz com cara de maluquinho, de short e camiseta SEM MANGAS oferecia-se como guia para uma caminhada leve até o Pico de Itatiaia. Em lamentável estado de desolação absoluta, sem respirar pelo nariz, olhos semicerrados e inchados, cochilando depois de tanto antialérgico, decidi, com Rosane, chamar nosso Caronte de volta para nos tocar serra abaixo assim que o seminário acabasse, mesmo perdendo o churrasco que o hotel prometia para a noite. Caronte, que se despedira triste por não termos ouvido Celine Dion cantando "Titanic", providenciara para que esta fosse a primeira das mais de 60 músicas no mesmo estilo desesperado-light a ouvirmos seguidas enquanto descíamos para o Rio, onde Rosane ficou de cama por três dias e eu fui parar no imunologista com asma.
Foi a partir daí que desenvolvi uma estranha reação sempre que ouço Commodores. Mesmo quando soa a introdução de "Lady" bem distante, surge um chiado em meu peito.

Arrogância

Tem dias em que me sinto menos brilhante que o mundo inteiro. Sinto-me pequena, sem conhecimento, sem leitura, sem citações memorizadas, sem experiência.
Aí, me lembro que a maioria dos que lêem ou escrevem jamais estiveram em Costa Barros ou Barros Filho.
Continuo pouco blazeé, mas tenho muito mais chão que a maioria dos que um dia me vasculharam e dos que um dia me folhearão.

Ninho vazio

Dois dias sem computador em casa.
Quase dois dias sem filhos em casa.
Uma só conclusão:
com chuva e edredom, pra que escrever?

20.5.05

Botafogo pede passagem




Eu já achava que Botafogo só não era o mais suburbano bairro da ZSul porque existe a área do Catete, Largo do Machado e afins (um pouquinho da Glória e do Flamengo). Assistir ao "Bendito Fruto", filme de estréia de Sérgio Goldenberg, só confirmou o que eu pensava. Comédia carioca gostosinha, um pouquinho sem ritmo, um banho de interpretação da mulherada (Vera Holtz, Zezé Barbosa, Lúcia Alves e até a linda Camila Pitanga) em torno de Otávio Augusto não tão brilhante como em outras atuações, mas ainda assim, bem.
O pano de fundo é um bairro sem praia, com um movimento estúpido de automóveis e pessoas, calçadas estreitas, uma "passagem" que é destino de muita gente com tantos colégios e consultórios médicos, além de clínicas dos mais diversos tipos, inclusive de aborto. Existe o Botafogo mais ZSul, intelectualizado, que freqüenta os cinemas do Estação, o Sérgio Porto, a Prefácio e compra no Zona Sul da Bambina. Este Botafogo convive com o bairro empobrecido, onde mansões encobrem a Santa Marta. Com o bairro do Rajá, que tem outro nome agora, mas a mesma população que freqüenta, democraticamente, o Escadaria Praia Shopping e a Casa & Vídeo. Tem o Botafogo aristocrático, dos colégios de mauricinhos e patricinhas (Santo Inácio, Andrews, Corcovado e Padre Antonio Vieira), dos meninos de classe média menos alta (Santa Rosa, Princesa Isabel, Imaculada Conceição), dos filhos dos bichos-grilos, alternativos, intelectualizados e artistas (Sá Pereira e Edem), das ruas maravilhosas do Humaitá. Tem também o bairro de classe média baixa, que põe os filhos em escolas modestas, como o Santo Carlos Magno e o Nossa Senhora de Lourdes, que só compra no Mundial da Voluntários (apontado pelas donas-de-casa como o mais barato dos supermercados da ZSul). Os pobres, do Santa Marta, esses têm filhos estudando na México ou na Joaquim Nabuco. E, perto do Carnaval, participam dos ensaios da São Clemente na praça do metrô.
A Voluntários da Pátria é uma das ruas mais feias do mundo, mas melhorou um pouquinho, após o Rio Cidade, admito. Na São Clemente, não deu para fazer Rio Cidade, ou o caos imperaria da Avenida Brasil ao Pontal. "Bendito ao Fruto" começa com um acidente que realmente aconteceu, ali na São Clemente, a tampa de bueiro que voou e foi parar num carro, onde, milagrosamente, não matou o motorista. Foi bem na esquina de minha casa, em frente ao palacete do Paula Machado, que considero o cenário perfeito para uma mansão mal assombrada. Botafogo tem locais soturnos e sombrios, como o fim da Arnaldo Quintela, aquela pracinha na Eduardo Guinle, que foi onde pudemos observar uma gata parindo numa tarde úmida.
Não era para eu gostar de Botafogo, nascida em Santa Teresa que sou, criada desde os 2 dias de idade em Ipanema, de onde saí aos 26 anos para viver 11 meses na Tijuca e me mudar para a Dona Mariana. De lá, fui para a São Clemente, onde permaneço pensando que gostaria de estar mais perto do mar outra vez. Mas o dinheiro e a praticidade me fixam em Botafogo, lar do Horácio, o mendigo, tem uma história tocante de vida (é irmão do outro Horácio, o padeiro, tem uma casa no Santa Marta, mas cisma em viver pelas ruas). Sofia, a outra mendiga, já teve três filhos, adotados sempre por moradores da Dona Mariana.
A todo momento sobem novos edifícios em Botafogo, o bairro sem calçadas, onde não podemos passear, apenas morar. O comércio pouco sofisticado apresenta provavelmente o maior número de farmácias por metro quadrado do mundo. E lojas de animais que recolhem os gatinhos nascidos nas ruas para doar aos fregueses (caí nesse conto quantas vezes...). Tem a amante de gatos que os anuncia na Internet e exige que assinemos fichas de responsabilidade quando pegamos um bichaninho em sua casa. Na loja do seu Manoel, acabamos nos convencendo a carregar viveiros e poleiros coloridos para pássaros. Ao lado, a loja de macumba, uma das várias do bairro, vende vasos de plantas lindas e baratas.
Uma região imensa e tão desigual tinha que abrigar templos para todos os credos. Quantos terreiros, quantos centros espíritas, quantas igrejas evangélicas e católicas coexistem harmonicamente, separadas, às vezes apenas pelo asfalto? A Rua da Matriz, em frente à maior igreja católica do bairro (há pelo menos mais umas cinco, de rua, ou dentro de escolas), tem três templos protestantes e um centro espírita.
É certo que o Rio inteiro é heterogêneo, mas Botafogo hoje ombreia Copacabana em vida pitoresca.

19.5.05

Que vergonha!

A cara dura da bandidagem não apenas me indigna, mas me deixa estupefata. Agora, as bocas-de-fumo diversificam suas atividades, oferecendo à clientela telefones celulares roubados. Não é porque fui vítima recente de perda do celular, mas quem são os compradores desses aparelhos? Será que ninguém mais tem vergonha de adquirir bens roubados?
Na praia, por duas vezes, já passaram homens oferecendo um relógio e um par de óculos escuros de griffe. Tava na cara que eram produtos de roubos recentes.
Nossa complacência e conivência com o crime descarado me envergonha pessoalmente de resistir e insistir em ser carioca.

18.5.05





Em tanto lugar do mundo tudo o que sei de nada vale.
Na maior parte do mundo tudo o que prezo nada vale.
Tudo o que prezo sequer existe por aqueles lados
Se eu cair do lado de lá
por acidente, azar ou castigo,
de nada me adiantará saber ler e escrever em um ou cinco idiomas
mexer com qualquer celular
ser malabarista de conta de banco.
Nesses lugares não tem banco nem livraria nem jornal.
Tem bicho brabo e eu terei que reconhecê-los, catá-los, matá-los
Terei que saber arranjar comida
procurar água
carregar água em cacimbas na cabeça
fiar roupas
costurar
confeccionar sapatos.
Não haverá lugar para adornos, para vasos de plantas
nem hidratante, esmalte, xampu, filtro solar, papel higiênico
Nesse deserto árido, quente ou gélido, pouco do que aprendi na vida me servirá
Nadar, dirigir, trocar pneu de automóvel?
Serei velha e enrugada antes do que pretendia
e bem mais sábia do que a cidade imagina.

17.5.05

Arenas, areias e roqueiros




Tem prefeitinho novo na praia! César Maia, herdeiro do hábito do Marcello Alencar de nomear menudos para cargos municipais, arrumou um guri de 27 anos para acabar com a zoeira nas calçadas e areias da orla. Alguém acredita?
Engraçado que ele só falou em segurança (novidade...), população de rua, camelôs e puxadinhos nos bares e restaurantes. E o loteamento da areia? Não me refiro aos vendedores de bebidas, que alugam barracas e cadeiras de praia, não. Falo dos currais de esportes que não apenas invadem a areia, mas impedem que a gente se isole de um dos maiores problemas urbanos: a poluição auditiva!
Domingo, chego ao Leblon manquitolando. Ali onde geralmente fico, entre a Carlos Góes e a Cupertino, não tocava a habitual musiquinha de elevador que vem do aparelho de som um vendedor de alguma coisa indefinida. Todos os domingos ele está lá. Uma vez descida a areia, a musiquinha só embala quem está andando na pista fechada da Delfim Moreira. Só que no domingo passado, a Academia Leblon montou uma arena pertinho da calçada, na areia, para uma disputa de luta livre. Não vou nem me posicionar a respeito disso a que chamam de esporte. O que me tirou o humor totalmente (eu já havia despencado no chão, minutos antes, graças a ruguinhas no tapete que são nossas calçadas, e estava com o tornozelo roxo) foi o equipamento de som que ampliava a 850 mil decibéis os entusiasmados berros de um locutor.
Com uma riqueza vocabular de fazer inveja aos roteiristas de "Malhação", ele urrava: "AíÊEE, povo do Leblon! A Academia Leblon tá aqui, trazendo pra praia essa pit-luta! Aêê, pitch lutchadorezxxxx! Aêê! Quem vai sê o rei da praiaaaa??? Aêê!" . Vez por outra, ele se desculpava com os "banhistaxxx do Leblon", informando que o incômodo acabaria rapidamente e que todos teriam tranqüilidade na praia novamente, assim que o rei e a rainha da pit luta fossem definidos. Alguns "aêês" mais tarde, os pitreis receberam troféus de representantes da região administrativa. Aêê! Enquanto a parafernália era desmontada, os "banhistaxxx do Leblon" eram brindados com uma seleção de hip-hop e música eletrônica, uma combinação perfeita para um domingo de sol glorioso junto ao mar.
Longo parênteses: eu não sabia que ser "pit" era motivo de orgulho para alguém além dos descendentes do finado primeiro ministro britânico William Pitt ou do Pitt que ainda não entrou para a História mundial, mas que alegra os olhos de muita gente contemporânea, o Brad. Enfim, o adjetivo, para mim, era ofensa séria. Pelo que ouvi (e como ouvi) dos brados retumbantes do speaker da Academia Leblon, existe muita honra em ser pit atleta.
Será que o prefeitinho, agora apelidado de xerife, vai pensar nos nossos ouvidos torturados pelos berros ensandecidos de pit-locutores e obrigar a baixar o volume de seus pit-amplificadores de som? Aêê! Duvido. É mais fácil proibirem o show dos Rolling Stones, que vai ser barulhento, sim, que tem tudo pra dar uma baita confusão e que poderia, tranqüilamente, ser montado lá no lugar do Rock in Rio. Até eu vou praquela lonjura conferir o ectoplasma do Keith Richards por trás do rebolado do Mick Jagger. Porque afinal, Charlie Watts, o mais certinho deles, já teve câncer, e, se não me engano, o Ron Woods também anda baixando estaleiro com alguma freqüência. Para ouvir a Velha Guarda do Rock'n' Roll quem reclamaria de seguir para a Zoeste?

16.5.05

Inventário





Meu sapato já furou, minhas roupas estão puídas, minha paciência não se acaba apenas porque há novidades farmacológicas poderosas específicas para se aturar a vida. Não estou depressiva, mas realista. Impaciente, talvez, e com razão.
Em poucos dias, engoli uma obturação (durante um almoço de negócios, claro), um vírus se instalou em meu computador, o celular da empresa foi furtado (nem senti levarem. Vão se dar mal, o modelito da Samsung é bonitinho, mas ordinário) e, depois de uns bons seis meses, me estabaquei no chão, a caminho da praia. Como disse uma amiga, à parte a obturação que é erro genético mesmo (como confundir um pedaço de porcelana com comida?), minhas demais agruras são rotineiras na vida moderna (Web) e dos que permanecem na Resistência em uma cidade violenta e esbucarada.
No corredor de meu apartamento, um cartaz em tamanho quase natural do Indiana Jones tampa a cratera aberta pelo pedreiro há algumas quinzenas para observar o que acontece na infiltração da parede. Bom, confiro todos os dias que a infiltração, que estava lá, quietinha, não seca. Por que resolvi me antecipar ao desastre a abrir a parede? Para ter esta oportunidade única de uma observação científica sobre um vazamento que, segundo o especialista, vem da banheira e, em vez de descer para o andar de baixo, sobe em direção do chuveiro. Nem me perguntem por que eu aceito explicações que desafiam a lógica e a física. Pior que isso só os sustos que levo ao me deparar com a silhueta do Harrison Ford. Igual a uma estátua de um padre, pavorosa, que tinha no Notre Dame e que era constantemente transferida de lugar, provocando calafrios aterrorizados nas alunas. Normalmente, ela era instalada na escadaria de entrada na clausura - um local misterioso que, segundo meninas possivelmente mentirosas, tinha cortinas de filó como divisórias das camas das freiras. Essas mesmas meninas juravam que as irmãs eram carecas, o que comprovamos ser mentira quando elas abandonaram os véus e parte dos hábitos. Bem que o Indiana Jones tem um aspecto muito mais agradável do que o padre corcunda, mas anda me atemorizando da mesma maneira...
Há outra infiltração na sala, esta imensa, ameaçando romper há alguns anos. Tive a sabedoria de deixá-la ao sabor do tempo e não esburacar tudo em busca da origem dos problemas, que, sei bem, de onde vêm. A papelaria ao lado do prédio já fez diversas obras de mais-valia. E eu minhas paredes se danam a cada uma delas.
Descobri também, por esses dias, que as gatas, não contentes em desfiar um dos sofás, furaram a palha de uma cadeira de balanço. Para consertar no faz-tudo, da rua, usando fio sintético, sai baratinho, só 80 reais. O braço da mesma cadeira quebrou, assim como o de um sofá sessentão, que foi da minha avó, de meu tio, de minha mãe e agora é meu. Há duas janelas com vidros quebrados, assim como o box de um dos banheiros. Ah, também preciso de uma nova cadeira para o computador, mas é melhor tirar o vírus antes.
Na casa de minha mãe, nada disso acontecia. Perfeccionista, ela não dormia com fios despencando por trás de aparelhos de som ou TV. Por mais que eu tente ser organizada, as coisas despencam sobre mim e, para não despencar junto, o que fazer? Esperar sábado para pegar uma praia, claro! O que não se resolve, resolvido está.

12.5.05

Em louvor das donas-de-casa do Terceiro Milênio


Uma conversa amena de almoço rendeu assunto no blog da coleguinha Paula Machado, que nele conta sua venturosa vida de recém-casada. Casei-me com a mesma idade que Paula, mas tinha idéias um tanto diversas sobre vida conjugal e afazeres domésticos. Algo que me causava estranheza - e ainda causa - é que algumas primas de Florianópolis, que são da minha idade, tenham parado de trabalhar quando se casaram. Há cerca de dois anos, a filha de uma dessas primas se casou, bem jovem (19 anos) e também deixou o emprego para ocupar-se inteiramente dos afazeres domésticos.
Nada tenho contra donas-de-casa, ao contrário. Uma das mulheres que mais admiro, amicíssima de minha mãe, é a perfect housewife: levanta cedo, passa pano no chão do aparamento todos os dias, cozinha divinamente, lava até os ternos do marido à mão, costura, faz artesanato, dá aulas de catecismo e ainda arruma tempo para sair de casa, no Posto Seis, e levar as netas, que moram no fim de Ipanema, à creche, porque gosta de supervisionar os cuidados com as meninas. O máximo que faz por si é hidroginástica. O marido é um príncipe, que não come no jantar a comida servida no almoço. Ela não reclama da trabalheira da casa, porque é dinâmica e caprichosa ao extremo. Quando alguém adoece, vai visitar o doente com uma sopa deliciosa que levanta o astral de qualquer um. Ah, sim, ela é cardíaca, hipertensa e não segue os conselhos médicos de que precisa dar um tempo.
Minha avó Júlia Mello também era dona-de-casa. Miudinha, parecia uma bruxinha, sempre de avental e vassoura na mão. Papai contava que aprendeu a comer quando saiu de casa, porque a Vovó fazia um prato diferente ao gosto de cada um dos sete filhos e do meu avô. A filharada ajudava a cuidar da casa e dos pequenos, como era comum nas famílias imensas de operários do século passado. Meu avô Candonga começou a trabalhar como pedreiro aos 9 anos, quando o pai morreu, porque era o mais velho de uma carrada de filhos. Só foi estudar para valer em adulto e escrevia lindas cartas com uma caligrafia cuidadosa, que o faria passar por um homem de educação refinada. Vovó Júlia vivia para o Vovô. Todos os dias, ele saía para fazer compras, porque em Florianópolis, até quando eu era pequena, as mulheres não iam aos mercados. À tarde, Vovô ia comprar pão e rosca para o café da tardinha. Batia 5 horas, Vovó se postava no muro, resmungando. "Aonde foi esse velho que ainda não voltou?", enxugando as mãos no avental, apoiando-se na vassoura. Vovô Candonga apontava na esquina, ela sossegava e aproveitava para varrer a entrada da casa ou regar as plantas - havia sempre um regador com água, pronto para ser usado. Na casa da Vovó, a louça era lavada e escaldada em todas as refeições. Não havia máquina de lavar, era tudo no braço mesmo. Minha avó era a primeira a acordar e só não era a última a se deitar porque Vovô a chamava para dormir cedo. Aos 48 anos deu à luz sua filha mais moça, tia Graça, vinte anos mais jovem que Papai. Ou seja, havia muito trabalho para a Vovó Júlia e parecia que nunca iria acabar.
Minha avó materna, Olga, era outra dona-de-casa invejada pela destreza com que administrava , que, quando mais velha, aceitou contratar uma faxineira para o trabalho pesado. Só que acompanhava cada milímetro que a faxineira limpava, apontando o que deveria ser feito, enlouquecendo as empregadas, claro. Tinha jardim de inverno com uma criação primorosa de violetas, bordava lençóis, cozinhava muito bem e dizia a todas as filhas que casamento não era meio de vida, portanto, todas deveriam trabalhar assim que saíssem da escola. Casou-se aos 13 anos, teve oito filhos, enviuvou aos 36. Meu avô José era tuberculoso e Vovó Olga, sua única enfermeira. Aprendeu a dar injeção, a aplicar cataplasmas, a ter filho e entregar para a parteira cuidar, porque o marido estava em crise com hemoptises, como aconteceu quando minha mãe nasceu. Orgulhava-se de que ninguém na família, fora o marido, pegara tuberculose, numa época em que a doença era quase epidêmica. Tinha mania de limpeza e a casa vivia escancarada, pois, como repetia minha mãe, "onde entra ar e luz, não entra doença". Falem isso para uma asmática como eu, que sempre vivi no meio de tufões providenciados por Vovó e Mamãe...
Se eu tenho alguma coisa contra donas-de-casa? Eu tenho é desânimo só de lembrar a faina das minhas avós e pela certeza de que jamais terei tanta energia quanto elas ...



11.5.05

"Guerra nas Estrelas", quem diria?

"A vingança dos Sith", de George Lucas, reatualiza no espaço estelar a função do budismo pop como suplemento ideológico do capitalismo virtual.
Não sou eu que digo isso, não, até porque não entendi nada.
Ou foi o Slavoj Zizek, escritor esloveno, autor de um texto muito estranho sobre o filme, com algumas impropriedades de quem não acompanhou a história direitinho ou foi o redator que leu esta verdadeira polca do eslavo biruta, num pescoção ensandecido.
e que a Força esteja com vocês...













10.5.05

Quem lê tanta notícia?





O Marcelo é meu amigo há quase 30 anos e sempre fez minha cabeça. Quando nos conhecemos, pensei que ele, louríssimo, fosse surfista. Nada, é descendente de filandeses e já estudava cravo. Cantávamos juntos no Coral da Cultura Inglesa, sua prima foi minha madrinha de casamento, fomos ficando mais que amigos e temos um grupo que mantém a amizade por esses quase trintanos.
Outro dia - 21 de abril, feriado de Tiradentes, um daqueles dias que começou à tarde e acabou quase às duas da manhã, lá em casa, com um monte de marmanjos vendo e cantando A Noviça Rebelde - ele me disse que tem muita gente escrevendo blog, mas poucos lendo.
Pode ser verdade. Marcelo mesmo, apesar do imenso afeto que nos une, não lê o que escrevo, até por falta de tempo. Quando ele morou na Alemanha, no anos 80, mantínhamos uma correspondência intensa de cartas e cartões postais mensais. Ano passado, ele foi para Paris, onde ficou por seis meses. Trocamos apenas três e-mails. Numa época em que temos as melhores condições de conversarmos virtualmente todos os dias, nos recolhemos. Ou então, vamos viver, sem gastar tempo refletindo sobre a vida.
A Rosa Montero conta na Louca da Casa que a diversos escritores/jornalistas foi perguntado o que prefeririam, se tivessem que escolher como única opção até o fim da vida, ler ou escrever. A maioria disse que preferiria ler. Eu, certamente, escolheria ler. Em minha atual fase de questionamento sobre a manutenção de dois espaços para escrita, o que Marcelo disse, calou fundo. Enquanto isso, entro no site dele e o ouço, tocando, como sempre, divinamente.

9.5.05

Dá um susto






... quando a gente vê que se passou tanto tempo.






Também dá saudade do passado. Mas como é bom ver que eles crescem bem e bonitos.

Afinal, o que deve ser um blog?





Tem tanto blog sério, informativo, filosófico, consistente na Web que eu fico cada vez mais constrangida em estar na rede. Diário eu tenho em cadernos, volumes intensos e extensos, que me acompanham há ... 33 anos, com um grande intervalo de uns bons 12 anos, período em que me casei, tive filhos, voltei a escrever, me separei, me anulei pras palavras, vivi muito e voltei a escrever quando estava com família em transição e mãe morrendo. Ou seja, a vida intensa, a escrita dispensa.
Passou tempo e fui entrando em comunidades de internautas para reencontrar amigos dispersos no mundo. Até chegar ao Multiply que eu achava uma chatice metódica, perfeito para pessoas organizadas como meu guru da Web, Ivson Alves. Mas comecei a ler textos interessantes, de gente interessante e inteligente, com as quais estabelecia diálogos agradáveis. Pois não é que foi no Multiply que soltei a franga, botando pra fora observações diárias que têm muito mais impacto escritas que faladas - além de boquirrota, sou péssima oradora, sarcástica em demasia para ser levada a sério. Do Multiply nasceu o Arenas Cariocas, que seria apenas um back up do primeiro, pois a cada mudança de estação, há um novo zoneamento (no sentido de bagunça mesmo) de caracteres, o que exigia a republicação de cada texto infeliz lá postado. Agora o Multiply anda cheio de gracinhas, enfeites, textos coloridos, tudo para personalizar o que era arrumadinho e burocrático.
Nesse meio tempo, transformei amigos virtuais em reais, o que é a grande conquista da Web para mim. E o Arenas foi conquistando seus leitores, como a Marina, que detesta entrar no Multiply. No Arenas, não espero resposta a minhas observações. No Multiply, não, a gente sempre escreve pra ser lida e comentada. Do jeito que sou neurótica, é o tipo de ambiente que eu deveria evitar, já que me acho abaixo de um Golum quando ninguém fala nada sobre os textos - o que ocorreu algumas vezes. Imagina o que isso faz pra minha baixíssima auto-estima? Pra não ecoar, tenho diário em casa, ora! Na Web, quero estabelecer diálogos. E no Arenas, ninguém tem muita paciência pra deixar comentários, fala direto comigo. E, incrivelmente, começo a produzir textos dentro do formulário do Arenas para depois passá-lo ao Multiply. Já estou tão insuportavelmente dominando os veículos, que escolho o que será mais apropriado para um que para o outro...
Admiro muito quem consegue manter um blog objetivo sem cair no umbiguismo. O Ivson tem o Coleguinhas e outros jornalistas também fazem blogs temáticos. O meu ... é como minha casa - paredes amarelas e vermelhas, com infiltrações, bichos, plantas, crianças, livros, discos, tudo mais ou menos armazenado, mais ou menos organizado, embolados em paixão.

7.5.05

Para o resto de nossas vidas

Um dia haverá uma pesquisa sobre o que as pessoas gostariam de guardar como lembrança para os últimos momentos de sua vida. Pais e mães, certamente, iriam tentar reviver momentos doces com os filhos, esquecendo das respostas ríspidas, dos semblantes fechados na hora de acordar, dormir, tomar banho, estudar, comer cenoura. Filhos, mesmo adolescentes, escolheriam momentos com os pais, quando eram pequenos. Idosos talvez preferissem lembrar a descoberta do amor, a paixão, o riso.
A idéia é boa para ser patenteada pelas empresas de eutanásia que deverão ser criadas nos próximos anos. Não tenho a menor dúvida de que este tabu cairá e a morte feliz acontecerá. Aquele ritual da morte doméstica, de romances russos em que patriarcas reuniam famílias para proferir as últimas palavras, só voltará se alguém muito chique e influente quiser morrer assim, cercado pelos entes queridos. A Jacqueline Kennedy morreu assim, acho que o Betinho e a Linda McCartney também. Mas pra moda pegar no Brasil, tem que ser um Caetano Veloso a lançá-la.
Imagino que haverá casas bonitas, modernas, com laguinhos e sonzinho de água correndo, bem Nova Era, para receber os moribundos e projetar em filmes ou fotografias, as imagens mais agradáveis de sua vida, poupando a família da dor desta separação e alegrando os últimos momentos do doente. Também poderia haver um serviço misto, com os parentes e amigos em torno do que vai morrer, assistindo aos belos momentos escolhidos por ele, com uma boa trilha sonora, algo interessante, divertido, emocionante, produzido por profissionais especializados. Minha idéia é um desdobramento do que aparecia no filme "No Mundo de 2020", com Charlton Heston, em que a superpopulação terrena era alimentada por um biscoitinho chamado Soylent Green (acho que este era o nome original do filme). O Edward G. Robinson, para provar ao Charlton Heston que gente era usada na confecção do biscoitinho, vai a uma dessas empresas que recebem gente que cansou de viver e passa por um spa antes de se deitar numa sala com projeção de imagens que o agradam enquanto é envenenado até morrer. Daí, o corpo dele é levado para uma máquina, que transforma tudo em biscoitinho verde. A cena final é o Charlton Heston gritando "Soylent Green is made of people!". Não me lembro rigorosamente de mais NADA do filme.
Pensando nessa morte asséptica que o futuro deverá oferecer (a outros, não a mim, que sou tradicionalista, gosto dos métodos naturais de concepção, uso telefone para telefonar, máquina fotográfica para fotografar e não baixo música da Internet), comecei a buscar imagens da felicidade suprema, mas elas não as encontrei.
Houve um tempo em que algumas pessoas não faziam parte de minha vida pela simples razão de que não haviam nascido ou porque eu ainda não as conhecera. Então, aquela felicidade plena que eu procuro hoje não estava naquela época. Em outros tempos, em que importantes pessoas estavam a meu lado, outras haviam morrido.
A única forma, para mim, era pegar um momento feliz, sem pensar muito.
O momento que surgiu na minha lembrança foi estar na cozinha, com meu filho mais velho, por volta das 3 da madrugada de1o de janeiro de 2000. Acabávamos de chegar do Posto 6, em Copacabana, com minha mãe, as outras crianças e uma garrafa de champanhe. Artur tinha 11 anos, Oto ia fazer 10 dali a dois dias, Hugo tinha 6 e Júlia, 5. Os pequenos ficaram atordoados com a quantidade de fogos de artifício, pegamos engarrafamento de gente para voltar pra casa, pulei abraçada a todos na contagem regressiva e a champanhe estourou justamente à meia-noite. Eu gritava "Feliz ano 2000!", "Feliz Milênio Novo", "Feliz Século Novo", porque não importa se matematicamente estava errado, como um dos meninos insistia em repetir. Importava era festejar a esperança de melhores tempos. Na cozinha da casa de Mamãe, mortos de fome, eu e Artur improvisamos uma ceia de Ano Novo, com feijão, arroz, galinha e farofa, uma das melhores refeições que comi na vida.
No ano seguinte, os meninos passaram o Reveillon com o pai, em Brasília. Caiu um temporal à meia-noite. E minha mãe estava em coma, no CTI de um hospital. Eu, acompanhava a chuva, na casa de amigos. Minha família se acabava. E na véspera do Dia das Mães, que meus pais sempre taxaram de data comercial, o que me isentou de comprar presentes por 40 anos, não há melhor lembrança de uma vida do que uma madrugada na casa de quem me deu força para ter quatro filhos, mesmo que dispersos neste mundo.

4.5.05

Grandes mulheres

Igual ao Eduardo Graça, reproduzo aqui a carta que a mãe de nossa amiga Gabriela Máximo enviou ao jornal “O Globo”. Eu, que sempre achei o Romário um chatinho talentoso, tornei-me admiradora dele pela maturidade e seriedade com que recebeu a pequena Ivy. Sua projeção ajudará, certamente, a todas as pessoas Down, que trazem muita felicidade a avós, como Dona Maria Alice e a mães como Gabi, uma das mulheres mais tranqüilas e orgulhosas de sua prole que conheço.

Para a Seção de Cartas do Segundo Caderno
Marcela, uma menina linda de onze anos, que cursa o primeiro grau, é uma das pessoas mais felizes que conheço. Gosta de coisas que as meninas da sua idade gostam. Dança jazz, faz teatro, desfilará este mês, convidada pela segunda vez, para uma grife de moda para pré-adolescentes. Mas não é por esse seu lado "alegre exibido" que ela mais marca sua presença no mundo. É por sua capacidade de dar e promover amor, por seu interesse genuíno na felicidade dos outros, pela facilidade com que dilui tensões e aproxima as pessoas à sua volta.
Na verdade, pela maneira suave com que nos torna, em seu convívio, pessoas melhores e mais felizes. Marcela é minha neta e tem síndrome de Down. Ao ler o Segundo Caderno hoje ( Gente Boa, 3/5 ), tive vontade de dizer isso e muito mais ao Romário e à Isabela. Tive vontade, principalmente, de felicitá-los pela chegada de sua princesinha e pela atitude bonita de exibi-la com orgulho como a exibiriam se ela não fosse Down.
Nem todos os pais demonstram de imediato essa aceitação. Por ser Romário a figura pública querida e respeitada que é, ele já está fazendo, em pouco mais de um mês, muito pela mudança de atitude das pessoas em relação aos portadores dessa síndrome. É na atitude preconceituosa de muitos, nascida da ignorância e da pouca capacidade de amar, que Marcela, Ivy e tantas outras pessoas encontram seus maiores problemas a superar.

Maria Alice Máximo/alicemaximo@superig.com.br

Instinto Selvagem





A abelha voa em torno de mim para deleite das gatas. Consigo espantá-la com uma jornalada. Se a abelha me picar, sei lá o que acontece. Sei que vai doer, que vai inchar e que preciso tirar correndo o ferrão antes de começar a alergia, que pode ir da simples irritação da pela a um edema de glote.
Atentas, as gatas perseguem a abelha, tentando agarrá-la. Mel, mais ágil, consegue atingi-la com a pata. A abelha se finge de morta. Em segundos está voando novamente. Jolie e Gal dão saltos no ar, enquanto tento me livrar da abelha, que insiste em se aproximar de mim. Devo ter um perfume natural doce. Ainda estou na mesa do café-da-manhã, não tomei banho, está tudo gelado.
Dou uma jornalada certeira na abelha. Bato mais duas vezes. Ela estrebucha e morre. Ai, meu Deus, será que era minha mãe reencarnada? Bom, do jeito como queria grudar em mim, bem parecia a Mamãe. Ainda bem que não sou budista. Eu não queria matar a abelhinha, mas foi ela que veio me amolar, ora.
Começo a tomar o mate nosso de cada dia - liberado pelo segundo médico!!! As gatas me encaram com reprovação.

3.5.05

Sobre os saltos




Minha comadre me liga, preocupada com o que leu aqui. Depois do inevitável sermão sobre a necessidade de cuidar da saúde, abre o peito. Está triste, cansada e estressada.
O cardiologista comprova: meu coração está sadio. Acelerado, mas sadio.
Para voltar a bater calminho, o melhor é sair do Rio, descansar, esquecer o trabalho.
Quem é que paga as contas, doutor?
Quem cuida dos meninos, doutor?
Quem compra comida pros gatos, areia pros gatos, alpiste pros passarinhos, molha as plantas, alimenta a tartaruga?
E quem mais usa a palavra comadre? Só nós duas, perdidas num tempo rápido demais para os corações acompanharem.
Aqui dentro, a estafa me estufa. Lá fora, outra chuva lava São Sebastião.

2.5.05

Abstinência





Meu coração está descompassado
e não é por nova paixão.
Por causa dele e de sua irregularidade
vem a angústia.
Mas é a angústia que causa o descompasso.
Por que, então, doutor, botar a culpa na coitada da cafeína?
Eu já parei de fumar,
nem gosto mais de beber
Enxergo mal.
Durmo pior ainda.
Tenho azia.
Minha coluna range, os tornozelos doem, o joelho incha.
Eu me arrasto pra vida.
E o senhor ainda me corta a cafeína?
Vou viver chapada
Desmemoriada
Deprimida.
Aí, o coração nem vai querer bater mesmo, ora!