7.5.05

Para o resto de nossas vidas

Um dia haverá uma pesquisa sobre o que as pessoas gostariam de guardar como lembrança para os últimos momentos de sua vida. Pais e mães, certamente, iriam tentar reviver momentos doces com os filhos, esquecendo das respostas ríspidas, dos semblantes fechados na hora de acordar, dormir, tomar banho, estudar, comer cenoura. Filhos, mesmo adolescentes, escolheriam momentos com os pais, quando eram pequenos. Idosos talvez preferissem lembrar a descoberta do amor, a paixão, o riso.
A idéia é boa para ser patenteada pelas empresas de eutanásia que deverão ser criadas nos próximos anos. Não tenho a menor dúvida de que este tabu cairá e a morte feliz acontecerá. Aquele ritual da morte doméstica, de romances russos em que patriarcas reuniam famílias para proferir as últimas palavras, só voltará se alguém muito chique e influente quiser morrer assim, cercado pelos entes queridos. A Jacqueline Kennedy morreu assim, acho que o Betinho e a Linda McCartney também. Mas pra moda pegar no Brasil, tem que ser um Caetano Veloso a lançá-la.
Imagino que haverá casas bonitas, modernas, com laguinhos e sonzinho de água correndo, bem Nova Era, para receber os moribundos e projetar em filmes ou fotografias, as imagens mais agradáveis de sua vida, poupando a família da dor desta separação e alegrando os últimos momentos do doente. Também poderia haver um serviço misto, com os parentes e amigos em torno do que vai morrer, assistindo aos belos momentos escolhidos por ele, com uma boa trilha sonora, algo interessante, divertido, emocionante, produzido por profissionais especializados. Minha idéia é um desdobramento do que aparecia no filme "No Mundo de 2020", com Charlton Heston, em que a superpopulação terrena era alimentada por um biscoitinho chamado Soylent Green (acho que este era o nome original do filme). O Edward G. Robinson, para provar ao Charlton Heston que gente era usada na confecção do biscoitinho, vai a uma dessas empresas que recebem gente que cansou de viver e passa por um spa antes de se deitar numa sala com projeção de imagens que o agradam enquanto é envenenado até morrer. Daí, o corpo dele é levado para uma máquina, que transforma tudo em biscoitinho verde. A cena final é o Charlton Heston gritando "Soylent Green is made of people!". Não me lembro rigorosamente de mais NADA do filme.
Pensando nessa morte asséptica que o futuro deverá oferecer (a outros, não a mim, que sou tradicionalista, gosto dos métodos naturais de concepção, uso telefone para telefonar, máquina fotográfica para fotografar e não baixo música da Internet), comecei a buscar imagens da felicidade suprema, mas elas não as encontrei.
Houve um tempo em que algumas pessoas não faziam parte de minha vida pela simples razão de que não haviam nascido ou porque eu ainda não as conhecera. Então, aquela felicidade plena que eu procuro hoje não estava naquela época. Em outros tempos, em que importantes pessoas estavam a meu lado, outras haviam morrido.
A única forma, para mim, era pegar um momento feliz, sem pensar muito.
O momento que surgiu na minha lembrança foi estar na cozinha, com meu filho mais velho, por volta das 3 da madrugada de1o de janeiro de 2000. Acabávamos de chegar do Posto 6, em Copacabana, com minha mãe, as outras crianças e uma garrafa de champanhe. Artur tinha 11 anos, Oto ia fazer 10 dali a dois dias, Hugo tinha 6 e Júlia, 5. Os pequenos ficaram atordoados com a quantidade de fogos de artifício, pegamos engarrafamento de gente para voltar pra casa, pulei abraçada a todos na contagem regressiva e a champanhe estourou justamente à meia-noite. Eu gritava "Feliz ano 2000!", "Feliz Milênio Novo", "Feliz Século Novo", porque não importa se matematicamente estava errado, como um dos meninos insistia em repetir. Importava era festejar a esperança de melhores tempos. Na cozinha da casa de Mamãe, mortos de fome, eu e Artur improvisamos uma ceia de Ano Novo, com feijão, arroz, galinha e farofa, uma das melhores refeições que comi na vida.
No ano seguinte, os meninos passaram o Reveillon com o pai, em Brasília. Caiu um temporal à meia-noite. E minha mãe estava em coma, no CTI de um hospital. Eu, acompanhava a chuva, na casa de amigos. Minha família se acabava. E na véspera do Dia das Mães, que meus pais sempre taxaram de data comercial, o que me isentou de comprar presentes por 40 anos, não há melhor lembrança de uma vida do que uma madrugada na casa de quem me deu força para ter quatro filhos, mesmo que dispersos neste mundo.

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