30.12.10

Segundo tempo

Botafogo estaria em silêncio quase total não fosse a papelaria vizinha ao meu prédio, que aproveita o dia morto pra consertos em geral. Além do batuque de martelos, há uma serra ou furadeira elétrica acionada com toda a exuberância que não convém a uma tarde cinzenta, abafada e que merecia ficar dolente, quieta em seu cantinho.
Atendendo a reclamos de duas amigas amadas, que lamentaram o abandono deste blog, penso neste 2010, um ano que passei na tentativa de reestruturar diversas áreas da vida. Nunca tive "um ano bom", de conquistas excepcionais. Estou perto de um ideal budista, aquela vidinha na pasmaceira, sem grandes júbilos, mas com as tristezas de praxe. Não posso dizer, jamais, que "aquela foi a pior fase de minha vida". Tive tempos ruins e outros bons, ocorrendo quase simultaneamente. Vivi dias maravilhosos, outros pavorosos. Foi sempre assim, ao longo desses 50 anos.
A exibição constante da vida que levamos, uma exigência da atualidade, aqueles sorrisos extasiados em qualquer reunião de amigos que estampamos no Facebook, nem sempre me parece reflexo do real, mas sim do que desejamos apresentar como a tal da felicidade. Houve um momento delicioso este ano, pra mim, quando festejei meu aniversário e me vi cercada de gente que fez parte de minha história. Outro instante bonito foi comemorar a entrada na vida acadêmica de meu filho mais velho e o encerramento da vida escolar do mais novo dos meninos. Além de observar o crescimento pessoal do segundo e as transformações de minha menina em bela jovem.
Trabalhei bastante, retornei aos estudos - o que foi interessantíssimo e me levou a ganhar novos amigos - a mais importante aquisição de 2010. Li um bocado, vi bons filmes, encontrei - pouco - os amigos queridos em almoços, jantares, bares e demais lugares. Flanei pela cidade, torci muito por esta terra - e não só no futebol. Sofri duas perdas nos dois lados da família, enquando acompanho o esfacelamento desses grupos e a formação de novos ajuntamentos de pessoas, não-aparentadas e tão próximas como se compartilhassem do mesmo sangue, dos mesmos segredos sussurrados, das piadas e casos que são contados de geração para geração.
Ganhei novas rugas, mais peso (!!!!) e novas melenas brancas. Não há jeito para nada disso, apenas formas de camuflar o aspecto que meus olhos se recusam a aceitar. A cabeça, em compensação, se expande, pronta a absorver mais e mais do planeta, dos homens, do que surge de novidade, e a guardar o que é tão precioso que não podemos esquecer. Desde criança sempre achei que a melhor fase da vida é a que estou atravessando. Continuo assim. 2011, 2012 - se der, né? - e o que vier depois trazem o brilho do olhar que precisamos para persistirmos neste mundo. Cinquentenária que sou, sei que meu segundo tempo começou.


......

Ah, sim, boas festas!!!!!!!

22.12.10

Resenha/entrevista sobre o interessantíssimo "Arte & Dinheiro", que saiu esta semana no Valor.

Valores :

A relevância do dinheiro no mercado de arte

Olga de Mello | Para o Valor, do Rio
21/12/2010

"Arte & Dinheiro"Katy Siegel e Paul Mattick. Tradução de Ivan Kuck. Zahar. 223 págs., R$ 89,00

Através dos séculos, dinheiro e arte estabeleceram um relacionamento delicado. Enquanto a arte pode gerar conforto, fortuna e prestígio para criadores e patrocinadores, o dinheiro, geralmente, é um componente que interessa à produção artística. Definir os limites dessa relação e quando o dinheiro passa a ser tema - ou se transforma em objetivo - da arte são algumas das reflexões suscitadas por "Arte & Dinheiro".

"Cada vez mais o julgamento do valor da arte contemporânea se assemelha ao comportamento do mercado financeiro. Os rumores definem valores. Alguns trabalhos acabam sendo avaliados a partir do preço, o que não é, originalmente, o propósito da arte", observa o economista Gustavo Franco, que assina o prefácio.

A relevância do dinheiro para a arte contemporânea pode ser resumida através da epígrafe escolhida pelos autores, uma citação do crítico de arte e historiador Paul Ardenne: "A principal preocupação de nossa época - a economia - é, para a arte de hoje, o que o nu, a paisagem ou o mito do novo foram, em seu tempo, para o neoclassicismo, o impressionismo e a vanguarda: tanto um estímulo à criatividade, quanto um tema ao gosto do momento". Segundo a crítica de arte Katy Siegel e o professor de filosofia e jornalista especializado em economia Paul Mattick, a volta à moda "ideológica da ideia de um mercado global autodeterminado e sem compaixão pelos fracassados", que teve especial relevância nas últimas duas décadas, garantiu à riqueza, ao consumo e ao prazer o status de valores publicamente aceitáveis. Entre os questionamentos invocados por "Arte & Dinheiro" está o caráter efêmero da produção de riquezas.

O uso de cédulas em trabalhos artísticos - como "Zero Cruzeiro", de Cildo Meireles - e aspectos menos concretos do valor do dinheiro surgem no livro, montado como uma exposição, com "salas temáticas" (capítulos) e um debate entre especialistas em arte no epílogo. A visão bem-humorada sobre a relação dos artistas com o dinheiro começa na capa, que traz o "Zero Cruzeiro" e a fotografia de cinco artistas dançando nas areias de uma praia das Antilhas, durante a chamada 6ª Bienal Caribenha. Promovido em 1999, o evento denunciou o vazio de reuniões semelhantes, que deveriam fomentar encontro de ideias e novas produções.

"A reunião no Caribe obteve patrocínio de diversas empresas, convencidas de que artistas de renome criariam obras destinadas àquele espaço, mas eles fizeram abertamente o que acaba acontecendo em eventos semelhantes. Passaram o tempo todo se divertindo e descansando", esclarece Franco, que sugeriu a inclusão de "Zero Cruzeiro" na capa da versão local, já que Cildo Meireles é o único brasileiro com dois trabalhos destacados no livro. A série de cópias de cédulas de cruzeiro é da década de 1970. Com efígies substituídas por figuras de índios e a assinatura do artista no lugar da chancela do presidente do Banco Central, as cédulas falsas tiveram uma grande tiragem, a fim de denunciar a alta inflação do período e também para diluir o valor da obra, "à semelhança do que o governo brasileiro estava fazendo com a moeda nacional", observam os autores. A instalação "Missão/Missões" (como construir catedrais) foi criada com 600 moedas, 800 hóstias e 200 ossos de boi, para remeter à violência da evangelização católica na América Latina.

As "salas" mostram grande variedade de atitudes e práticas artísticas, sempre refletindo sobre dinheiro, consumo, política e poder. Na sala "Negócios" estão agrupadas fotografias de comemorações de executivos pela fusão de empresas e outras mostrando pessoas nas filas de seguro-desemprego. A sala "Alternativas" tem trabalhos do cubano Felix Gonzales-Torres (1957-1996), que criava instalações com papéis de bala e incentivava os apreciadores de suas serigrafias a levarem um pedaço da obra para casa - sem nada cobrar por isso. Interagir com o público era a intenção do americano Rob Pruitt, que enfileirou uma carreira de cocaína sobre um espelho de cinco metros de comprimento no chão de uma galeria nova-iorquina, em 1998. Em questão de minutos os convidados consumiram a droga. Já o artista alemão Boris Becker trata de objetos ordinários que podem esconder a riqueza, ao fotografar quadros, sapatos e folhas de mata-borrão utilizados por traficantes de drogas colombianos para contrabandear cocaína.

Para Franco, a exposição proposta no livro ajuda o leitor a conhecer a arte contemporânea. "Há sempre um enredo para dar sentido às obras atuais. Esse sentido vai além do estético ou sensorial, não segue a lógica dos trabalhos dos velhos mestres românticos, clássicos ou renascentistas. Raramente se consegue compreender a arte contemporânea sem uma leitura, uma referência. Hoje, a discussão de conceitos se impõe, com temas que passam pelo fenômeno do valor atribuído a assinaturas em papéis, por exemplo. Muitos artistas estão discutindo um pouco do fenômeno da assinatura de um papel, que vale muitas vezes mais do que um trabalho artístico", observa o economista.

6.12.10

Do Rio para o Nordeste

Tô toda prosa, porque escrevi uma pensata pro Diário do Nordeste sobre nossa guerrinha urbana, que foi publicada no sábado. Um depoimento do ponto de vista da moradora desta cidade sofrida. Saiu com fotinha e ainda surjo como "especialista". Ah, a glória...
Brincadeiras à parte, a coisa é séria e dolorida. Segue aqui.

OPINIÃO DO ESPECIALISTA
O fim da guerra e a retomada da esperança

Em novembro de 1988, os moradores de Ipanema conheceram a barbárie. No asfalto da Rua Barão da Torre, onde fui criada, jazia a cabeça de um homem, atirada do alto do Morro do Cantagalo. O decapitado era imposto como símbolo do poderio dos déspotas que controlavam as favelas cariocas.
Como boa parte da população do Rio, sempre tive a favela como vizinha. Por mais de 40 anos, convivi com o Cantagalo. Meus pais, moradores de Ipanema, jamais temeram o propagado dia em que "aquela gente" da favela tomaria a cidade. Porque, para nós, "aquela gente" eram trabalhadores honestos que moravam encarapitados em casebres, sobrevivendo sob o olhar desconfiado das elites. "Aquela gente" tivera que se submeter às ordens de criminosos pelo descaso absoluto das autoridades constituídas.
A partir da década de 80, a banalização da violência cresceu, aterrorizando os moradores das favelas e amedrontando os "do asfalto", que desviavam o rosto, como se faz em relação a mendigos e aos meninos de rua do Rio. Tomadas de favelas por forças policiais assisti a muitas, sempre após batalhas entre grupos de bandidos. Os policiais entravam para solucionar crises, montavam postos de guarda no alto dos morros ou em praças no centro do aglomerado de casas, quando a favela era horizontal. E os moradores se rendiam tanto ao temor e às ordens dos criminosos quanto à truculência da Polícia. Casas eram invadidas por traficantes, portas arrombadas por policiais.
Chega um momento em que todos preferimos a ignorância das estatísticas para não sofrer mais ainda. A implantação das UPPs em algumas comunidades foi encarada com ceticismo por boa parte dos cariocas. Os traficantes eram alertados pelo governo e abandonavam a região, que tinha imediata valorização imobiliária - o que contribuiu para a aprovação das medidas pelas classes média e alta. A venda de drogas nesses locais continuava, discretamente, sem a exibição de armas. Outros negócios movimentados pelos traficantes e pelas milícias foram impedidos pela chegada das UPPs. A reação do tráfico era aguardada. Quando ela aconteceu, há duas semanas, imaginava-se a total desmoralização da política de ocupação. Mas isso não aconteceu. A diferença da recuperação do conjunto de favelas do Alemão para as ações anteriores é que, além do apoio das Forças Armadas, esta contou com o aplauso de quase 90% da população do Rio. Ela foi saudada não apenas por quem vive na linha de tiro, mas também pelos que se protegem em grades e vidros blindados. O momento é de euforia e expectativa, apesar de alguns ainda desacreditarem na ordem. Os cariocas, que insistem em amar seus cantos sofridos apesar das tragédias diárias, quer ter o direito de confiar no Estado e na Polícia. Espera-se para breve novas batalhas pela retomada dos muitos territórios onde os bandidos se aquartelaram. Ninguém pode prever o que acontecerá. Porque, definitivamente, alguma coisa mudou na praça de nossa guerra urbana de cada dia.

Olga de Moura Mello
Jornalista