30.11.05

29.11.05

Espírito natalino



Convenhamos que a árvore de Natal da Lagoa é feiosa, sim. De uns anos pra cá até que ficou mais bonitinha, apesar da estrela no alto - um horror! Mas o que ela traz de gente para apreciá-la já faz valer o excesso de luzes e agora, suprema glória da cafonice, das águas dançantes.
Fomos ver o espetáculo das luzes e águas na nossa Vegas tropical. Muita gente de outros bairros, algum aperto e o show. São velinhas e triguinhos, estrelinhas azuis e as agüinhas dançando. As pessoas tiram fotos, compram churrasquinho, cerveja, refrigerante, penduricalhos que brilham em neon, joggers disputam a ciclovia com o povo que passeia à noite, chupando picolé.
As luzes falham, por vezes a chaminha das velas não se acende (as referências são todas no diminutivo: agüinha, velinha, triguinho, foguinho...Afinal, estou acompanhada pelas crianças). As pessoas riem, brincam, caminham. Igual quando eu era criança e saíamos todas as noites para dar uma voltinha até a Praça da Paz ou até o Roxy, sem qualquer objetivo consumista, apenas esticar as pernas e conversar. Quando comento isso com a geração que hoje tem 25 anos, causo espécie. Passear à noite pelo Rio, só em ocasiões especiais, como quando a árvore da Lagoa está acesa.

Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima

Olhos cansados, corpo moído, nova mudança no campo do trabalho, mas desta vez a recuperação foi ainda mais rápida e com maior rentabilidade que a anterior, graças a um dos anjos que surgem na vida para me levarem a questionar minhas convicções materialistas.
A vantagem de me tornar uma trabalhadora temporária, o que permite renovações constantes e a ampliação do universo de conhecidos.
A rede de amigos telefona (Edu de NYC, Ana C de SP), a notícia corre e todos se congratulam com o novo rumo.
Os meninos seguem firmes, Oto manquitolando com três dedos do pé direito quebrado, Artur animado com a proximidade da vinda para as férias, Hugo lendo o último Harry Potter, Júlia promovendo uma maratona doméstica dos filmes do bruxinho - na platéia, Vanúzia e as gatas, claro - enquanto se prepara para assistir ao quarto no cinema.
O computador, consertado, continua lentium.
Vida que segue.

27.11.05

Poeira, moços e moleza

Um vírus está comendo meu computador. Outro quase estourou meu ouvido esquerdo. O dia ficou lindo, depois de uma viradinha de tempo, mas quem disse que tenho ânimo pra me aventurar fora de casa?
Aqui, só poeira. Limpo as plantas, desço algumas para a varandinha interna do prédio, tiro passarinhos de perto da principal frente de obras.
Minha página está maluca, pouco de meus enfeitezinhos (gatinho, contador de entradas, fase da lua) aparecem. Não sei se o problema está no Blogger ou no computador, que endoidou de vez. Chamarei o moço (tem uma crônica do Fernando Sabino falando sobre essa instituição brasileira, "o moço" - o moço da máquina de lavar, o moço da geladeira, agora, o moço do computador; a variável pro moço é "o homem"), não sei se o último, que, naquelas coincidências cariocas, morou a vida inteira no edifício em frente ao de meus pais, em Ipanema, e agora se mudou para um apartamento pertinho do botequim do Beto, namorado da Maria. Aí eu acho que esse moço, bonitinho, menino, parece o Tom Cruise, está predestinado a ser o guru de meu computador. Amigos me indicam outros moços e o que me atender primeiro será o agraciado com este conserto, para mim, tão vital quanto o funcionamento perfeito de minha máquina de lavar roupas.
Aliás, o moço que conserta a máquina de lavar roupas é o Helinho, dublê de técnico de refrigeração e professor de violão. Conheci o Helinho quando éramos adolescentes e ele tocava banjo no finado bar Western (que ficava numa caveira de burro no Humaitá, onde nem clínica médica deu certo. Atualmente, é um centro espírita-terreiro, onde se bota tarô, I-Ching e se estuda cultura cigana também, creio). Bem, o tempo passou, Helinho casou, descasou, voltou a meu convívio e agora namora uma amiga de outro amigo meu, porque esta cidade definitivamente é uma aldeia.
Já tive também um estofador que era ex-guerrilheiro tupamaro. Mas troquei por uns rapazes muito legais, todos irmãos (uns cinco), que desapareceram no mundo. O que vale é que em frente a meu novo emprego tem igreja, sala dos AA e um estofador. Tem também uma boca de fumo, o que tira um pouco do encanto da rua simpática, pela qual caminho diariamente para comprar coca light na padaria da esquina, na verdade, um armazém das antigas.
A obra foi reduzida, mas continuará por muitos dias. Só farei a parede da sala e as outras infiltrações. Não há reservas financeiras para atacar todos os problemas já. Enquanto isso, estamos cobertos de poeira por todos os poros.

24.11.05

Pescoção


Às 10 pra meia-noite de uma quinta-feira, véspera do aniversário de minha Júlia, só me resta repetir frase proferida uma madrugada, anos atrás, dentro de uma redação:
"E eu pensava que mulher decente não trabalhasse neste horário..."

23.11.05

Em obras



O quebra-quebra recomeça em diversas frentes. O buraco do corredor, finalmente, foi fechado. Uma infiltração imensa na parede da sala, provocada pela papelaria vizinha ao prédio que levantou um andar ilegalmente numa mais valia escondida da Prefeitura, levou à retirada de reboco, massa etc. Dá pra ver os tijolos originais, que lá estão há mais de 62 anos. E na área de serviço, investigamos outra infiltração.
Depois haverá raspação de paredes da varandinha para tirar o chapisco e alisar as superfícies, pintura no corredor e na sala principal. Se eu me animar, ainda pinto o resto da casa. Despesa alta, mas revigorante. Se pudesse, eu bem faria um jardim de inverno...
Adoro obras!

The candy man



Então quer dizer que o grande vilão da "Fantástica Fábrica de Chocolates" é o pai do Willy Wonka, o Christopher Lee encarnando um dentista radicalíssimo, que encerra o filho num aparelho que o impede de relacionar-se com o mundo, igualzinho às mãos de tesoura que o Vincent Price enfiou no Edward...
Ou seja, Willy fica com dentes de cinema, boquinha de moça, jeito andrógino entre Michael Jackson, Walter Mercado e Ishbone Crane, e as crianças se amarram naquele centro de torturas onde ele se encerrou por anos? E os pais das crianças ouvem dele, um biruta sem família e sem amor, lições sobre como educar seus filhos mimados?
O que me espanta é uma atriz que já teve projeção importante como a Helena Boham-Carter viver com o Tim Burton, que fatura em cima da fama de esquisitão, mas que, para mim, deu o melhor de si em "Ed Wood".
(Tá, tudo bem, eu não sou louca por chocolates e não deixo meus filhos se empanturrarem de açúcar. Um mundo dominado pelos doces não é bem minha imagem de paraíso.)
O primeiro Willy Wonka, com Gene Wilder, nunca vi. Mas gostava da musiquinha "The Candy Man", cantada pelo Sammy Davis Jr.

22.11.05

Generation Gap


- Você não pode classificar um filme como chato! - revolta-se meu jovem amigo, com aquela indignação que só temos aos 25 anos.
- Posso, sim. Se eu posso dizer que uma pessoa é chata e pronto, por que não posso falar isso de um filme? - respondo com a tranqüilidade sábia que só conquistamos aos 45 anos.

21.11.05

Metida

Paulo Thiago, autor do Pindorama, (http:///www.ipaco.blogspot.com/), um dos mais interessantes blogs cariocas, fotógrafo inspirado e poeta do cotidiano elevou estas Arenas à categoria de blog de jornalismo gonzo. Imaginem se essas croniquetas dão notícias que ultrapassam o umbiguismo...
Enfim, foi uma referência dentro do belo texto sobre um artigo do Eduardo Graça que saiu no "Valor" de sexta-feira passada e que também foi publicado no Edu do Brooklyn (http://edudobrooklyn.blogspot.com). O blog do Eduardo, digo com a maior das isenções, embora sejamos mais que amigos, é jornalístico com pitadas subjetivas de sua experiência de vida em Nova York nesta era Bush, sem descuidar jamais de um olhar sobre a terrinha, lembrando, de longe de nossos hábitos e da maldita política tupiniquim. Ou seja, é um blog sério. Ainda acho que Paulinho, que escreve linda e filosoficamente sobre Rio, boemia, antropologia e suas musas inspiradoras, além da rede de amigos que arregimenta por onde passa, foi generoso demais em sua classificação sobre este caderno de pensamentos de uma senhora que insiste em manter um hábito de menina. Mas que estou metida à beça, ah, estou!

Ginástica

Hoje no jornal saiu uma nota - todas as matérias lá são tão curtinhas que parecem notas - informando que escrever diário é bom para a saúde, dizem médicos. Evita depressão, Alzeihmer, burrice, esquizofrenia. Tudo, claro. Hoje em dia, faço religiosamente palavras cruzadas como exercício para a mente. Preciso urgentemente comprar aquelas da "A Recreativa", que são bem difíceis, porque Coquetel, convenhamos, é pra criancinha. Atualmente, as do Globo são um vexame de tão fáceis. Acho que a mente nem trabalha tanto assim pra completar as letrinhas ali...
Eu me lembro que um namorado-residente se espantou ao me flagrar fazendo palavras cruzadas. "Coisa de gente velha", ele disse. É verdade. Fui entrevistar Dona Neuma, na Mangueira, e ela me confessou que amava fazer palavras cruzadas. Minha mãe adorava, minha Tia Zélia, tem paixão. Bem, como não exercito condignamente o corpo, ao menos tento preservar a mente. Nunca valeu tanto assim, mas entre perder my looks or my mind, com a mais profunda sinceridade, eu confesso que me apavoraria em ser mentalmente incapaz. Afinal, o corpinho já foi pro brejo mesmo. A cuca, esta segue sem grandes vislumbres ou deslumbres. Mas segue. Escrevendo aqui, que é quase um diário, completando meu diário de papel, que já deve estar em seu trigésimo volume (comecei aos 11 anos, mantive anotações quase que diárias por muito tempo, mas fiquei irregular por volta dos 20 anos, quando a vida era tão agitada que nem dava tempo de registrar o que acontecia. Vieram casamento, filhos, crises, perdas, novas conquistas até que "O Diário de Bridget Jones" me inspirou a recomeçar a relatar meus dias, cinco anos atrás). Então, sigo escrevinhando aqui e acolá, às vezes abrindo dores e júbilos publicamente, às vezes guardando-as para o papel. Os resultados de tanta ginástica mental se eu tiver sorte, constatarei algum tempo pra frente.
(Júlia, deitada em minha cama, preparou-se para assistir "Alice no País das Maravilhas", no Disney Channel. Ressona em berço esplêndido desde que apareceu o jardim da cena inicial, parecido com o que está acima. Um jardim que eu gostaria de ter para ofertar algumas de suas flores ao moço que hoje cedo, largou seu caminhão no Vão Central da Ponte Rio-Niterói de onde se jogou. Quem me contou foi Vanúzia, que se atrasou com o tremendo engarrafamento na Ponte. Os jornais on line nada noticiaram. RIP)

A arte de envelhecer bem

Elaine, um beijo

Semana passada, um dia começou horrível. Abri o jornal, li um nome no Funéreo, reconheci a foto, mas não a pessoa. Em três segundos, entendi que era uma amiga querida de 20 anos, daqueles amigos cariocas, que a gente deixa de encontrar por milênios, mas se senta junto no botequim por acaso e faz confidências sobre o tempo de separação mútua. Elaine conheci em 83, 84. Foi minha única estagiária mais velha que eu mesma. Tinha dois filhos, era casada com um pescador, morava em Niterói. Totalmente diferente da garotinha de Ipanema que vivia com os pais, sem a menor dificuldade para curtir a vida adoidado naquela época.
A vida da gente mudou. Casei, engravidei e ganhei fama de ser "boca de sapo" na redação. Olhava para a mulherada e decretava: "Está grávida". Não dava outra. Estava no refeitório, Elaine senta-se em minha mesa, zangada: "Você, hein? Que coisa!". Indaguei o que havia acontecido. E ela: "Tô grávida, como você disse!". Expliquei que era apenas uma sensitiva, não tinha nada a ver com a concepção em si. Júlia foi a temporã de Elaine. Saí do jornal, tive mais dois filhos. Me separei. Encontrei-a há dez anos, tranqüila após uma mastectomia radical. Animada, namorando, brincando. Passamos juntas um reveillon.
Perdemos contato, mas sempre tive notícias dela, afastada do trabalho diversas vezes para submeter-se ao tratamento. Ela se foi sem nos despedirmos. O Ivson escreveu este texto lindo sobre a Elaine no "Coleguinhas", que reproduzo aqui.

A guerreira
A primeira surpresa com Elaine Rodrigues veio na mesa do nosso bar preferido do Triângulo Alcoólico, localizado no fim da Rua Lara Vilella, bairro do Ingá, Nikiti: aquela mulher era do MR-8, mas, apesar disso, tinha o pensamento claro e ordenado, defendendo, com tranqüilidade e agudeza, as sandices pregadas por aquela tendência do PMDB (você ainda pode lê-las no Hora do Povo).
A segunda surpresa veio logo depois, por meio de colegas mais velhos no Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS), da UFF, onde eu cheguei naquele 1980, dois anos (ou coisa assim) depois de Elaine. Eles me contaram um pouco de sua vida e eu vi que ali não havia apenas um cérebro límpido, mas também uma alma poderosa, ao mesmo forte e terna.
A diferença de períodos e de posição política não me permitiram privar mais da companhia de Elaine na faculdade. Essa oportunidade se ofereceu depois, em minhas passagens no Globo, primeiro como repórter, depois como redator e, por fim, como pauteiro. Em todos esses momentos, que se estenderam, intermitentes, entre meados dos anos 80 a meio dos 90, confirmei o que intuíra lá em Niterói: Elaine tinha cérebro privilegiado e alma forte, mas tinha mais- um coração de guerreira. Por possuir essas qualidades jamais se entregou à doença que a matou, depois de mutilá-la. Doença que herdara da mãe e da avó e que a fez pôr a filha em acompanhamento médico aos oito anos.
Da última vez em que trabalhamos juntos, vem o exemplo que sempre dou aos jovens que têm o azar de me cair nas mãos durante os estágios e que não sabem - e não querem aprender - a apurar. Numa noite de fins de 95, Elaine chegou à redação por volta das 23 horas. Deu boa noite de passagem e foi direto ao armário onde ficavam guardados os diários oficiais, pegando o do Estado. Sentou-se na minha frente, na mesa da chefia de reportagem, e folheou o calhamaço até a parte da Secretaria de Saúde :
- Que cê tá fazendo? - perguntei.
- Arrumando pauta pra você. É aqui que saem todas as maracutaias - respondeu, olhando por cima dos óculos, com a clareza de sempre.
A imagem que tenho agora nos olhos, porém, foi da última vez que a vi, aí por 97 ou 98, num fim de tarde, na esquina da Rio Branco com a Ouvidor. Apresentei a Andréa e perguntei o que estava fazendo. Adivinhou?:
- Tô apurando. Descobri uma licitação fraudada na Saúde. Tenho que ir logo pra redação - confidenciou e, toda satisfeita, se despediu.
Vai na paz, guerreira.

19.11.05


Anos atrás era um sábado, Dia da Bandeira e fazia um calor senegalesco. Nas escadas do Palácio Guanabara, eu acompanhava uma homenagem à bandeira comandada pelo Darcy Ribeiro que era vice-governador ou governador em exercício, não me lembro mais. Nem sei que coisas o Darcy falou. Só me lembro que uma aluna de escola pública desmaiou por causa do calorão. As crianças, coitadas, tinham ido participar da solenidade.
Quando eu era criança, em plena ditadura militar, fui avisada que teria 10 em Educação Moral e Cívica se participasse do desfile de 7 de setembro na Presidente Vargas, de uniforme de gala, ou seja, camisa de manga comprida, gravata e boina de feltro branco, combinando com luvinhas brancas. Eu fiz um fuzuê na sala de aula. Disse que achava um absurdo ganhar nota boa apenas por ir marchar na rua. Nem falei em casa, e hoje tenho certeza que meus pais não permitiriam que eu fosse. Eu adorava marchar na época pré-semana da Pátria. Em vez de jogarmos vôlei ou corrermos em torno do nada nas aulas de Educação Física, marchávamos por uma hora. Mas passar vexame na Presidente Vargas era demais para mim. Preferi decorar os símbolos da Pátria, cantar todos os hinos, incluindo o "Salve-lindo-pendão-da-esperança, salve-símbolo-augusto-da-paz", o meu favorito. Tirei nota 8, acho. E ainda fui chamada de antipatriota pela professorinha de direita festiva.
Fui educada para odiar qualquer regime totalitário. Minha mãe odiava Getúlio porque, em menina, fora obrigada a jogar livros de Monteiro Lobato numa fogueira, por ordem das freiras do colégio interno. Papai anulou voto sistematicamente até voltarem as eleições diretas para presidente da República. E se zangou quando me ouviu cantando "Eu te amo, meu Brasil". Mamãe gostava de cantar hinos em geral. Eu também. Adorava "hora cívica", que acontecia uma vez por semana ou por mês, dependendo das determinações da diretoria do colégio, pois cantava, por vezes três a quatro hinos, incluindo "Cidade Maravilhosa". Mal comportada, nunca pude hastear a bandeira, o que vim a fazer uma vez, na Câmara Municipal, convocada, num Dia da Mulher, por ser a única representante do sexo feminino em plenário, além de uma vereadora. Não foi apenas constrangedor. Tinha que hastear a bandeira durante a execução do Hino Nacional e não acabar antes do fim da música. Deu certo, mas eu puxava a cordinha em câmara lenta, apavorada com a possibilidade de errar o andamento e cometer algum ato antipatriótico. Suspirei aliviada ao fim do hasteamento, pois não havia incorrido em qualquer crime lesa-Pátria. Mas fiquei tão preocupada que nem pude curtir o momento de glória em que vivenciei um sonho de infância.

16.11.05

Devoção


(Acabei o "Ripley" que me faltava. Uma decepção.
Os que havia lido antes não eram da coleção Cantadas Literárias, mas do Circo de Letras, que trouxe belos policiais em traduções brasileiras, como O Destino Bate à sua Porta e outros do James Cain, o David Goodiss e Hammets a valer.)
Em minha casa, não havia televisão. Então, a conversa versava sobre livros, cinema e música. Lógico que isso jamais afastaria meu pai da paixão por futebol, mas sendo o único homem numa casa de mulheres - eu, Mamãe, Maria, minha babá, e Andrea, filha de Maria, afilhada de meus pais, e, futuramente, minha comadre -, não encontrava grandes interlocutores para debater a escalação da seleção ou as campanhas gloriosas de seu tricolor de coração. O jeito, então, era falar de livros.
Quem trazia um livro novo para casa tinha que disputar o volume para ler primeiro. Eu, que sempre li em altíssima velocidade, dava a volta nos outros e comia as páginas com os olhos. Papai era lento demais na leitura. Mamãe, dependia. Na fase dos Cem Anos de Solidão, eu me lembro que Papai foi obrigado a dividir a leitura com ela. Quem chegava mais cedo em casa se atracava com o calhamaço e só soltava ao ser vencido pelo sono. Papai, de uma longa linhagem de insones - caso sério: dormia de quatro a cinco horas por noite e olhe lá -, atravessava parte da madrugada lendo, devagarinho o Garcia Marquez. E ficava furioso quando Mamãe e Lícia trocavam idéias sobre capítulos adiante de seu ponto de leitura.
Eu não tinha o menor problema em saber o fim da história, naquela época. Antes de começar a ler, passava pela na última página para saber se haveria um bom desfecho para os protagonistas. História chata, eu largava no meio ou pulava muitos trechos - o que faço até hoje. Mamãe era igual a mim, mas Papai encarava cada volume como uma missão que exigia fervor quase religioso. Uma vez iniciado, só deixava o livro meses depois.
Mamãe, completamente anárquica, lia nas mais estranhas posições imagináveis. Aliás, da mesma forma que há manuais de posições sexuais, deveria haver estudos sobre as estranhas maneiras em que as pessoas se concentram em leitura. Mamãe adorava ler na cama. Quer dizer, ela gostava era de se deitar com o livro e cochilar imediatamente após se deitar. Quando tirávamos o livro de suas mãos, resmungava: "Estou lendo, estou lendo!", mas entregava os pontos. Papai ficava danado, porque achava que poderia danificar as folhas quando elas tombavam sobre o corpo sonolento. Para não despencar de sono, Mamãe decidia ler sentada numa cadeira de balanço. Lá, o estrago era maior: o livro despencava ao chão e, indignada porque a chamávamos para ir dormir na cama, Mamãe saía tropeçando, às vezes, chutando o livro.
Papai se indignava, mas Mamãe acabou desistindo de chegar ao fim de Conversa na Catedral de tanto dormir na vã tentativa de lê-lo. Eu tracei o livro em quatro dias, apaixonada pela prosa de Vargas Llosa, que tanto aborrecia Mamãe. Gosto é definitivamente indiscutível. A mesma mulher que cochilava com Vargas Llosa, virava a noite mergulhada em qualquer história de aulkner, uma leitura nem sempre tão fácil para a maioria dos bons leitores.
Foi nessa época que adquiri um hábito detestável, aprendido com meu pai. Não posso ver alguém com um livro na mão, aberto ou fechado, que preciso saber qual é o título. Faço contorcionismo ocular para descobrir o título dentro de elevadores, ônibus, metrô ou na praia. Sabendo qual é o livro, me parece que vou descobrir quem é seu leitor. Na maioria das vezes, a pessoa está carregando um best seller, um manual de auto-ajuda ou um livro técnico. Cabe a mim, então, imaginar a vida daquele leitor que segue seu caminho sem saber que carrega um objeto de devoção para minha família.

14.11.05

Amores literários


"... há dias em que você se sente tão inspirada, tão cheia de palavras e imagens, que escreve com uma total noção de leveza, escreve como quem sobrevoa o horizonte, surpreendendo a si mesma com o que escreveu... Às vezes acontece de você escrever muito acima da sua capacidade, de escrever melhor do que sabe escrever. E então não quer sair da cadeira... "

Rosa Montero, A Louca da Casa, que me fez entrar numa polêmica amigável no blog da Sonia (www.contandocausos.blogger.com.br), pois não concordo com alguns aspectos do livro, que, na verdade, é um passeio/papo sobre a arte de escrever e o amor aos livros. Esta paixão, este vício que adquiri em família, não transmiti a meus filhos, com, talvez, uma exceção. É difícil, hoje em dia, competir com tantas informações imediatas e tanto conhecimento circunstancial. Há pouco tempo, conversando com Cíntia, falávamos sobre um livro pelo qual ela havia se encantado e eu me lembrei que datava de mais de um ano minha última paixão literária, Possessão, de A.S. Byatt, uma escritora que eu descobrira num livreto de contos, Histórias de Matisse, e, depois, devido ao Anjos e Insetos, filme interessantíssimo, baseado em uma de suas novelas. Mas quando cheguei ao Possessão, foi uma paixonite mesmo. Eu simplesmente não me separava do livro, andava com ele pelo País, carregava-o em viagens.
A primeira vez que ouvi falar neste affair com livros foi numa conversa de minha mãe com uma amiga, Lícia. Ambas estavam lendo Cem Anos de Solidão, e nada, nada mesmo era mais empolgante que o livro naquele momento. Muitos anos mais tarde, numa madrugada, comecei a ler a saga dos Buendia e acabei quando o dia raiou. Foi uma das minhas poucas noites de insônia naquela fase da vida, excelentemente aproveitada, embora o Garcia Marques que mais me envolvesse ainda estivesse para ser descoberto por mim, com a Crônica de uma Morte Anunciada, que li numa viagem entre Ipanema e a Praça Onze, num 464, indo trabalhar no Globo (eu leio rápido mesmo).
Atualmente, intercalo Minha Vida, Uma Farsa com O Menino que seguiu Ripley, com a mesma avidez. Meu primeiro Ripley foi Um Passo em Falso, que lia no Globo, comentando o mau caratismo impressionante do protagonista com um colega, que me aconselhava: "Larga esse homem que ele não presta!". Era uma edição da Brasiliense, da coleção Cantadas Literárias, se não me engano, que, logo depois, lançou O Amigo Americano. Só então juntei os pauzinhos e liguei Patricia Highsmith a seu maior personagem. Eu já gostava muito de policiais, mas pouco conhecia do gênero com profundidade, mesmo tendo passado a adolescência lendo a Coleção Amarela, de Papai, Agatha Christie, Simenon, Chandler e meu amado Hammet. Só quando percebi que Ripley era o canalha interpretado por Alain Delon no Sol por Testemunha, recordei outra conversa de Mamãe e Lícia, que estava lendo o romance (minha mãe só lia Simenon, entre os policiais) e contava que, diferentemente do filme, Ripley seguia impune. Mamãe estranhou e Lícia explicou que o Ripley do livro era fascinante, apaixonante, simpático.
A revelação sobre a "identidade" desses personagens e sua fama literária é como descobrir que seus amigos se conhecem de outras circunstâncias. Dá aquela sensação de que o mundo é pequeno como uma cidade do interior.
Estou com muita vontade de me apaixonar perdidamente por algum livro, andar com ele em tudo quanto é canto, dividir com aquele volume a minha existência. Os outros viciados me compreenderão.

Lá fora é um dia lindo, azul, que terei de encarar a caminho do trabalho, numa véspera de feriado em que eu deveria festejar a República, reunindo amigos para um almoço comunitário, mas que passarei dentro da redação, porque assim é a vida de jornal, que eu havia esquecido há muito.
O trabalho é tranqüilo, a convivência agradável, o local próximo de casa, um projeto jovem e cheio de atitude. A casa retoma um cotidiano mais próximo de mim, crianças entram e saem, novas pequenas reformas planejadas, a rotina inexiste novamente, só preocupações que embranquecem as melenas, incham-me os dedos, turvam-me os olhos e embotam a capacidade criativa.
A troca de mensagens internauta com os amigos espalhados pelo mundo é um tônico neste novembro soturno de minha alma. O verão e seu calor insuportável se avizinham. Que os Stones sejam um sopro de vitalidade antecedendo meu outono.

10.11.05




Há 17 anos, este cara mudou minha vida para sempre!!!!

8.11.05


Em criança tive uma breve porém intensa fase de recusas peremptórias a entrar no banho. Era pequena, Maria, minha babá, me arrastava até o banheiro e eu gritava, desesperada, que a água iria estragar minha roupa (sim, ela acabava me jogando no chuveiro de roupa e tudo) e, percebendo que tal argumento não a comovia, bradava, aos prantos: "Vai estragar minha pele!". Lembro-me perfeitamente da convicção que me invadia ao justificar a falta de necessidade de higiene diária.
Nos últimos 17 anos, não sei quantas vezes obriguei crianças a tomar banho. Eles apresentam todas as desculpas do mundo para postergar a entrada sob os pingos d'água e já não são mais tão pequenos que eram postos dentro da banheira ou instados a entrar nela com brinquedinhos e transformar o ambiente em piscina. Ainda bem que a fase cascãozinho chega a seu fim. Mas dá uma saudade de correr atrás dos molequinhos e mergulhá-los no banho!

7.11.05

Uma casinha assim - apesar de tanto azul - me faria muito feliz.

Pé de pato, mangalô três vezes!


O pé de arruda é para agradar a meus amigos crentes no poder desses talismãs. Tenho três amigos tranqüilamente materialistas. Só. Os demais, sem exceção, professam as mais diversas fés. Boa parte deles é espírita. Alguns são macumbeiros mesmo, mas agora se diz espiritualista. Há poucos católicos, uma taoísta, um reikiano, uma xamãnica. Bem, todos esses meus amigos acham que devo acreditar em divindades de qualquer maneira, o que não consigo assim tão facilmente, não. Para eles, tá aqui meu pé de arruda virtual, que tem a vantagem de não soltar aquele perfume enjoativo das folhas na vida real. Ele deve levantar os maus fluidos que cercaram minha última incursão profissional na véspera de iniciar a próxima.
Afinal, o dia foi bem esquisito. O abre e fecha do tempo impede que a gente se desloque até a praia. Então, dormi até tarde, levantei da cama ao meio-dia fui abastecer no posto da esquina de casa, mas, como sempre, demoraram a me atender, desisti e fui para o asfalto apenas a tempo de ficar presa no sinal, enquanto um carro entrava no meu lugar e era imediatamente abastecido. Segui para outro posto, na Lagoa, aonde esperava tirar dinheiro no caixa eletrônico. Um, do Itaú, fora removido. O outro, do Banco 24 horas, estava com defeito. Segui, então para pegar Hugo na casa de um amigo, em Laranjeiras, e, de láe fui pro supermercado para compras de emergência, que iriam incluir guloseimas se eu não descobrisse que saíra apenas com um pouquinho de dinheiro e nenhum cartão eletrônico. Desisti. Comprei apenas comida para as gatas.
Em casa, continuou a azáfama de menininhas iniciada no sábado, quando Júlia e suas amigas se preparavam para uma festa à fantasia. Hugo ia de Hades, o Deus da Morte, mas acabou desistindo e se vestindo de ninja (calça e camiseta preta, capuz preto). Júlia caprichou e montou asas de algodão em armação de papelão, com haste para segurar uma auréola. Era um anjo. Outra amiga foi de diaba. As demais, de bruxinhas. Logicamente, hoje todas vieram para cá à tarde e ficaram para dormir. O único momento realmente lamentável do dia foi quando o agaporne macho saiu da gaiola e, enquanto tentávamos atraí-lo novamente para a gaiola, voou janelão da sala afora. Vai morrer, mas em liberdade. Tenho que comprar outro macho para acompanhar a fêmea, que choca três ovinhos. Algo me diz que será mais uma ninhada a perecer.
Fora isso, uma tarde movimentada, com meninas correndo pelo apartamento, dando risinhos irritantes, enquanto Hugo permanecia no computador sem dar importância aos sorrisos marotos que elas soltam quando próximas a ele. Júlia declara que sempre quer morar na São Clemente, pois está próxima das amigas, inclusive uma que vive num apart-hotel em frente, onde elas tomam banho de piscina noturno.
Meus amigos que me desculpem e fiquem com a arruda. Para mim, não há talismã melhor que gente e risos.

3.11.05

De Zellwegger a Hoffman


No milênio passado houve um filme que causou furor. Era "Kramer X Kramer", em que Dustin Hoffman de pai tradicional passa a pai presente, pois a mãe, Meryl Streep, o abandona, deixando também o filhinho pequeninho. Como eram anos 70/80, o pai fica totalmente atrapalhado ao ter que cuidar do menino (parece que nos filmes americanos existe uma impossibilidade filosófica de personagens bem sucedidos profissionalmente, como os solteirões do "Três Solteirões e um Bebê", ou a executiva de "Presente de Grego", ou ainda esse publicitário Kramer, contratarem babás) e acaba perdendo seu emprego muito bem remunerado. Na véspera de Natal, ele consegue um trabalho numa agência de publicidade modesta só para manter o menino.
Então, de Bridget Jones, há cerca de um mês, encarno, agora, Kramer.
E igualzinho aos personagens, espero a rendenção através de uma grande remuneração. Por enquanto, a felicidade de ter os melhores amigos do mundo me enche o peito de entusiasmo. Mesmo que o sobrenome de meus intérpretes continue dobrando letras e línguas...


Então, retorno à redação, oito anos depois de ter saído de uma, feliz porque jornal pega a gente como vírus, preocupada com a remuneração inferior ao que recebi por muito tempo, mas entusiasmada por ter que encarar o batente com apenas uma semana de desemprego. Não deu nem para deprimir! E o almoço mexicano volta a meus planos para o próximo feriado.

2.11.05

Finados



Hoje é Dia de Finados e eu iria dar um almoço mexicano. Moro perto do São João Batista, seria perfeito para os mais chegados a um culto aos ossos, entre os quais, naturalmente, não estão meus amigos próximos.
O dia começa pesado. Dormi depois de tomar um bom calmante. Como dizia minha ex-sogra, tecnologia existe para ser usada. Tudo bem que ela é hipocondríaca , ama um remedinho. Uma personalidade fascinante, mulher inteligente, culta, porém maníaca por médicos e doenças.
A festa foi cancelada porque meu novo emprego se acabou abruptamente. Tão abruptamente que não dá nem para me sentir a última das incompetentes. Segundo um colega, minha permanência foi tão breve que não houve tempo para fazer merda. Sem saber que teria um curto momento de glória e felicidade numa função encantadora, cercada de livros por todos os lados e trabalhando a divulgação deles e de autores, acabei gastando algo além do que deveria - caso previsse um futuro incerto próximo, o que deixou todos os meus conhecidos aparvalhados.
Entre minhas imprevidências está a aquisição do mais novo membro de nossa grande família animal: Mel Gibson, uma calopsita amestrada, que me observa escrevendo.
Ontem à noite, pesquisando na Internet, chegamos à conclusão que Mel pode ser Melanie, o que não importa muito, já que é o único pássaro solteiro da casa, atualmente com dois mandarins, dois periquitos, duas rolinhas chinesas e dois agapornes, que estão chocando três novos ovinhos.
Os amigos me cercam de cuidados. Eduardo liga de Nova York. Hugo se preocupa, Artur fica furioso e não sei da reação de Oto. Júlia desconta a fúria limpando a casa. Vanúzia diz que já passamos por coisas piores e corre a jogar na Megasena. Alguns pensam em encosto, outros prometem vingança e detração contra quem me iludiu.
É o calor deste abraço amoroso que me tira da cama.
A vida continua.