16.11.05

Devoção


(Acabei o "Ripley" que me faltava. Uma decepção.
Os que havia lido antes não eram da coleção Cantadas Literárias, mas do Circo de Letras, que trouxe belos policiais em traduções brasileiras, como O Destino Bate à sua Porta e outros do James Cain, o David Goodiss e Hammets a valer.)
Em minha casa, não havia televisão. Então, a conversa versava sobre livros, cinema e música. Lógico que isso jamais afastaria meu pai da paixão por futebol, mas sendo o único homem numa casa de mulheres - eu, Mamãe, Maria, minha babá, e Andrea, filha de Maria, afilhada de meus pais, e, futuramente, minha comadre -, não encontrava grandes interlocutores para debater a escalação da seleção ou as campanhas gloriosas de seu tricolor de coração. O jeito, então, era falar de livros.
Quem trazia um livro novo para casa tinha que disputar o volume para ler primeiro. Eu, que sempre li em altíssima velocidade, dava a volta nos outros e comia as páginas com os olhos. Papai era lento demais na leitura. Mamãe, dependia. Na fase dos Cem Anos de Solidão, eu me lembro que Papai foi obrigado a dividir a leitura com ela. Quem chegava mais cedo em casa se atracava com o calhamaço e só soltava ao ser vencido pelo sono. Papai, de uma longa linhagem de insones - caso sério: dormia de quatro a cinco horas por noite e olhe lá -, atravessava parte da madrugada lendo, devagarinho o Garcia Marquez. E ficava furioso quando Mamãe e Lícia trocavam idéias sobre capítulos adiante de seu ponto de leitura.
Eu não tinha o menor problema em saber o fim da história, naquela época. Antes de começar a ler, passava pela na última página para saber se haveria um bom desfecho para os protagonistas. História chata, eu largava no meio ou pulava muitos trechos - o que faço até hoje. Mamãe era igual a mim, mas Papai encarava cada volume como uma missão que exigia fervor quase religioso. Uma vez iniciado, só deixava o livro meses depois.
Mamãe, completamente anárquica, lia nas mais estranhas posições imagináveis. Aliás, da mesma forma que há manuais de posições sexuais, deveria haver estudos sobre as estranhas maneiras em que as pessoas se concentram em leitura. Mamãe adorava ler na cama. Quer dizer, ela gostava era de se deitar com o livro e cochilar imediatamente após se deitar. Quando tirávamos o livro de suas mãos, resmungava: "Estou lendo, estou lendo!", mas entregava os pontos. Papai ficava danado, porque achava que poderia danificar as folhas quando elas tombavam sobre o corpo sonolento. Para não despencar de sono, Mamãe decidia ler sentada numa cadeira de balanço. Lá, o estrago era maior: o livro despencava ao chão e, indignada porque a chamávamos para ir dormir na cama, Mamãe saía tropeçando, às vezes, chutando o livro.
Papai se indignava, mas Mamãe acabou desistindo de chegar ao fim de Conversa na Catedral de tanto dormir na vã tentativa de lê-lo. Eu tracei o livro em quatro dias, apaixonada pela prosa de Vargas Llosa, que tanto aborrecia Mamãe. Gosto é definitivamente indiscutível. A mesma mulher que cochilava com Vargas Llosa, virava a noite mergulhada em qualquer história de aulkner, uma leitura nem sempre tão fácil para a maioria dos bons leitores.
Foi nessa época que adquiri um hábito detestável, aprendido com meu pai. Não posso ver alguém com um livro na mão, aberto ou fechado, que preciso saber qual é o título. Faço contorcionismo ocular para descobrir o título dentro de elevadores, ônibus, metrô ou na praia. Sabendo qual é o livro, me parece que vou descobrir quem é seu leitor. Na maioria das vezes, a pessoa está carregando um best seller, um manual de auto-ajuda ou um livro técnico. Cabe a mim, então, imaginar a vida daquele leitor que segue seu caminho sem saber que carrega um objeto de devoção para minha família.

3 comentários:

BelowGrade disse...

me deu uma baita vontade de jogar fora a TV aqui de casa pra ver se crio uma família que nem a sua....

Olga de Mello disse...

Esta foi a família que me criou. A que eu criei é absolutamente ligada em monitores - de TV ou PC. Ou seja, santo de casa não faz milagre. Mesmo!

Anônimo disse...

De repente lembrei de quando me mandavam largar o livro e dormir, que já era tarde. Então comprei uma lâmpadazinha que se prendia à capa do livro, apagava a luz do quarto e me enfiava em baixo de um cobertor com a tal luzinha acesa para ler mais um pouco.