30.3.05

Os pagãozinhos

. Nunca assisti aos "Dez Mandamentos", nem ao "Manto Sagrado", sequer "Ben-Hur" me pegou totalmente acordada. Educada como católica, estudei em colégio de freiras, onde só passavam um seriado mexicano sobre a vida de Cristo que tinha, essencialmente, dois episódios: um que mostrava Jesus - de costas - caminhando sobre as águas e outro em que Pedro larga tudo para acompanhá-lo. Cheguei a assistir a "Jesus de Nazaré", do Zeffirelli, chorando mais que Maria na cena de crucificação. Vi "Jesus Cristo Superstar" e "Godspell". Mas filme bíblico, em geral, tendo Jesus ou não, me deixava angustiada.
Embora eu tentasse me apegar à fé, então, assistindo missa todas as sextas-feiras na capela do colégio (furiosa porque não valia pela missa de domingo), a religião jamais aplacou meu temor da morte, algo que só aconteceria quando abandonei os cultos e procuras de conhecimento teológico. Da missa, o que mais gostava era dos sermões. A consagração, aquela encenação teatral, a cantoria, a comunhão não me interessavam. As hóstias eram saborosas, às vezes embebidas em vinho de missa. Uma vez, junto com outras delinqüentes de 12 anos, brincamos de padre e pegamos um monte de hóstias, que encontramos dentro de uma gaveta de um móvel na capela. Demos umas para as outras, falando "O Corpo de Cristo". Uma das meninas do grupo, sentindo-se muito culpada, contou tudo para a Irmã Clarência, que nos passou um sabão, mas não sei se chegou a falar com nossos pais. Sei que, na confissão semanal, fui, apavorada, contar meu pecado ao padre. Ao se assegurar de as hóstias nem estavam consagradas, ele riu e me mandou rezar algumas aves marias, pedindo que eu não voltasse a brincar de padre.
As filas de confessionário sempre me angustiavam. Quando criança, porque sabia que ia levar bronca por ter pecado mortal de faltar à missa de domingo. Filha única, não tinha um excelente pecado venial a relatar, a briga com os irmãos. O ideal era enumerar muitos pecados veniais e jogar os mortais no meio do relato. O problema é que nem tanto pecado a gente tinha assim e ficávamos sugerindo delitos umas às outras, enquanto aguardávamos o momento de confessar. Bom era confessar com o Frei Clemente, que dispensava a gente no terceiro pecado, provavelmente por não nos encarar como grandes pecadoras. Duro é que, na adolescência, até o Frei Clemente prestava mais atenção aos nossos pecados, já que a luxúria se instalara em nossos corações e mentes.
Uma frustração que a religião me trouxe foi a de jamais ter sido anjinho na micro-procissão que a escola promovia dentro da capela, sexta-feira antes da Semana Santa. Nem me imagino solene com uma veste de anjinho em cetim azul, muito menos tendo que agüentar uma missa interminável toda paramentada. Mas sonhava com a honraria, oferecida apenas a crianças bem-comportadas, diziam as irmãs. Meu conceito em comportamento, que oscilava entre Regular e Deficiente, não era compatíval com a função.
O primeiro contato com a religião como algo fora do mundo da família veio através do colégio. No Jardim de Infância, aos quatro anos de idade, recebi um cartão com a figura de Jesus cercado por criancinhas de todas as etnias. Perfurávamos o cartão com alfinetes, nem sei por quê, e arrecadávamos dinheiro entre os parentes para enviar aos pagãozinhos. Os pagãozinhos eram as crianças das missões que as irmãs de Notre Dame mantinham na Amazônia, África e Ásia. Também recebíamos peças de tecido cortadas para que as mães costurassem em casa. Eram roupas para os pagãozinhos. Minha mãe, uma das poucas mulheres que trabalhava fora, na década de 60, que nem sabia costurar direito, coitada, tinha que coser as peças à máquina à noite, depois de voltar do serviço. Era isso ou fazer parte de um grupo de mães que ia ao colégio costurar para os pagãozinhos.
Naquela época, entrávamos para o catecismo aos 7 anos de idade. Era uma tremenda chatice o catecismo, porque só se fazia decorar umas rezas, a Via Crucis e os Mistérios Gozosos, Dolorosos e Gloriosos. Nunca aprendi a rezar o Salve Rainha, mal sabia o Credo e preferia passar a aula lendo a única parte que me interessava da Bíblia, o Velho Testamento. A irmã catequista sempre deixava para me argüir por último, antevendo que eu não passava dos Gozosos para os Dolorosos. Semana após semana, eu lia a vida dos hebreus, Abraão imolando o filho a Deus, o que eu considerava um absurdo total, José sonhando com vacas magras, Moisés abrindo o Mar Vermelho, trombetas derrubando os muros de Jericó, Sodoma e Gomorra destruídas por Javé, as filhas de Lot seduzindo o pai. Por pouco a irmã não confiscou minha Bíblia. Mas o que reclamar de uma menina tão piedosa?
Um dia, depois da enésima bronca por minha desatenção com Cristo, decidi decorar os mistérios. Na aula seguinte, pouco antes de tocar o sinal, a irmã chamou meu nome, pronta a me ouvir até o quinto ou sexto mistério. Falei todos os quinze. De tão emocionada, a irmã me deu um santinho e um marcador com a imagem da Sagrada Família e, glória suprema, uma estrelinha! A lua-de-mel da irmã comigo durou pouco. Dias depois, minha mãe recebeu o modelo de roupa da Primeira Comunhão e decidiu que eu não participaria da cerimônia, que iria cair exatamente no dia do meu aniversário. A roupa era de mangas compridas, cheio de debruns, babadinhos, botõezinhos até o colarinho, com um arranjo de flores na cabeça, igual à roupa de Santa Terezinha, informava a circular com o modelo.
"Santa Therezinha era uma menina rica, você não é", concluiu Mamãe, que adaptou a roupa de minha prima para eu fazer Primeira Comunhão numa missa comum, numa pequena capela num arrabalde de Petrópolis, em missa celebrada por meu tio, monge beneditino. Eu me senti ridícula, com um hábito de franciscano branco, uma cruz no peito, e todos os meus parentes adultos me vendo receber a hóstia. Meu tio deu um tapinha na minha cabeça depois que comunguei e, a partir daí, eu era uma católica bastante consciente, que preferia ir à missa domingo de manhã cedinho para pegar uma praia depois. Quando informei à irmã que já havia comungado, a freira se indignou: "Mas você não estava preparada!". Instruída por Mamãe, respondi: "Fui preparada por meu tio monge" e calei a professora. Descobri, então, o poder que a palavra "monge" exercia no meio religioso.
Esta última Semana Santa, passei doente, em casa, espantada com o número de filmes bíblicos em cartaz na televisão, dos quais fugia como o Diabo da cruz. Hugo e Júlia, ao contrário, se entusiasmaram em assistir à carnificina filmada por Mel Gibson. Sinceramente comovida, minha filha pergunta:
- Coitadinho do Jesus, Mamãe, por que ele foi morto daquele jeito?
Pigarreio e engreno uma explicação político-filosófica sobre a razão para os judeus pedirem a condenação de Jesus à morte. Espanto da menina.
- Ué, Jesus era judeu??? Ele não era cristão??? Olha, dessa eu não sabia.
É o que dá batizar os filhos e afastá-los totalmente de qualquer contato religioso. Viraram pagãozinhos.

23.3.05

Quis criar outro blog, hoje




Esses espaços da Internet não me pertencem. São democráticos, mas não é neles que vou me abrir. Sei lá quem vai ler isso aqui, ora... Qualquer um pode entrar, qualquer um pode me ver. Então, hoje, quis criar outro blog. Tá lá, tá criado.
É como a gente ter duas casas ou sentir-se mais à vontade num dos cômodos de uma casa. Não, isso não existe. A casa da gente só tem um ou dois cantos que não são nossos - o quarto e o banheiro de empregada, talvez. O resto é tudo da gente. Pelo menos, na minha casa, ninguém tem a menor cerimônia em usar banheiro da minha suíte, invadir meu quarto pra usar computador, essas coisas.
A verdade é que estou me multiplicando muito dentro desta Internet. Mas é uma fase, claro. Só que aqui, o Arenas, é um fórum com vida quase própria. Estou começando a me sentir mais à vontade dentro dele que no Multiply, o primeiro site, onde soltei a franga mesmo...
No Multiply eu estou muito vigiada, o espaço não é meu, meu assim MEEEUUU!!!! O Arenas nasceu como back up do Multiply e logo fiquei mais animadinha, mais assanhadinha. Botei foto, pronto, virou meu mesmo. Igual a pregar quadro na parede.
Então, tentarei. Aqui haverá espaço pra bobajada, sim. Pelo menos vou tentar. Embora ainda faça um pouco de cerimônia.

22.3.05

Sobre os trilhos





Eu pensando na coincidência, na conjuração dos fantasmas dos Durrell e Corfu em torno de mim, que comecei a ler “O Colosso de Marússia” , de Henry Miller, para descobrir que o relato da viagem do americano pela Grécia começa em ... Corfu, na casa de Lawrence Durrell. Quase pulei por cima do homem barbudo, imundo, cáqui, derrubado no chão em profundo desfalecimento alcoólico. De longe, parecia um menino, mas é um homem jovem, sem camisa, pouca roupa, talvez tenha sido menino de rua. Ai quem me dera uma Corfu, longe desta realidade social que jamais mudarei. Na escadaria, o casacão bate nos joelhos, graciosamente, majestoso. Será? A capa de crepe marrom deveria me tornar enigmática e elegante como um protagonista de Matrix, mas, no máximo pareço com Alcione, a Marrom, vestida como cantora de coro gospel. Sabe, aquelas negonas de vozeirão e corpanzil?
E aí entrou o casal, protegido por uma bolha de paixão. Ela, baixinha, sobre uma plataforma Anabela, jeans atochados, blusinha em feitio de corpete, de flores miúdas sobre fundo castanho, uma pela morena e linda, cabelos castanhos crespos com luzes douradas, dentes claros e irregulares de quem não teve pais financeiramente estáveis o suficiente para usar aparelho ortodôntico na infância. O olhar era apenas para ele, feioso, baixo, gordo, branco, muito branquinho, braços roliços cobertos de pelos que só desapareciam exatamente aonde deveria começar a manga de uma camiseta. Mas ele prefere a camisetona sem mangas azul marinho, bermudões grunge, deixando ver as pernas grossas e peludas, o contraste do fundo branco da pela e os pelos escuros. Os cabelos negros e crespos presos num rabo de cavalo, muito mais compridos que a cabeleira dela. Cavanhaque, óculos escuros, argola na orelha esquerda, um jeito indiferente, enquanto ela se derrama sobre ele, o protótipo do músico de garagem ou do motoqueiro Hell Angel com a namorada gostosa. Como ela, tão gracinha, pode se apaixonar por um horroroso daqueles, provavelmente sem a menor grana?
A mocinha que não quer se sentar e cede o lugar para um homem é mais branca que o motoqueiro grunge, gordinha, pálida como uma figura de novela russa do século XIX. Ela combina com um samovar e com a moda da época, dizem, das mulheres que tomavam arsênico para ficarem mais alvas. Alva carrega uma bolsa com desenhos de animais e o logotipo da Suipa. Ela tem jeito de tijucana e, se não fosse tão jovem, diria que vive num apartamento com 15 gatos. Ai, eu tenho três gatas, fiquei doida para acolher mais um filhotinho que chorava no estacionamento, ontem, mas, não, não serei a mulher louca de meia idade com uma casa entupida de animais, bastam as gatas, a tartaruga, os passarinhos e os filhos. Ah, eu tenho salvação na loucura, eu tenho filhos! Alva é bonita, embora sem graça. Se um desses dandys modernos que apresentam programas para ensinar gente comum a ter um gosto sofisticado e esquisitíssimo encontrasse com Alva, iria valorizar sua boca de Alicia Silvertone, trocar seus óculos de aro metálico por algo mínimo igual ao das antigas funcionárias dos Correios (na década de 60, todas as funcionárias dos Correios estavam na menopausa, eram solteironas, usavam óculos de leitura e fumavam na cara da gente, com muito desprezo) e, certamente, pintar seus cabelos curtos de vermelho sangue, amassar tudo com gel. Pronto, Alva terá atitude para compensar a falta de melanina. Os dandys também se deliciariam com o motoqueiro grunge. Iriam tosar suas melenas, fazer luzes, trocar a argola por um brinquinho mais discreto, colorir suas camisas, apertar suas calças compridas. A mim... ah, eles nem me olhariam, tenho vincos no rosto e muita idade para formar um novo conceito. Igual ao senhor a meu lado, que me empurra com uma mala 007, em silêncio.
O vagão só não é silencioso pelos constantes avisos de que ‘os bancos laranja são reservados para idosos, deficientes físicos e pessoas com crianças de colo, seja solidário’ e pelo homem que fala entusiasticamente com um tal Fernando ao celular. A conversa é impessoal, mas ele diz “Fantástico!” ou “Sensacional” a cada intervenção de Fernando, a quem manda um carinhoso abraço. Homens brasileiros são muito afetuosos ao falar. É “meu querido” pra cá, “abraço carinhoso para você, Fernando” pra lá, mas são incapazes de beijar o próprio filho adulto no rosto em público. O amigo de Fernando se cala, uma mulher de piercing no umbigo pega o bastão do papo telefônico e entabula a típica bronca na mãe: “Oi, você comprou? Mas eu falei que era pra pegar ontem, mamãe. E agora? Olha, to chegando no trabalho, depois a gente vê, mas eu queria pra hoje, né? Tem jeito? Sei. Sei. Sei. Eu vou desligar. Eu tenho que desligar. E você pode ir hoje? Tá certo, depois eu ligo pra você. Outro, tchau!”. O vagão volta a silenciar. O motoqueiro grunge e sua namorada, vez por outra, trocam algumas palavras inaudíveis para quem está fora do halo amoroso que os isola do mundo.
Na estação, a mulher que brigava com a mãe torna-se reservada. Meu vizinho, o senhor com a mala 007, que parecia o ator que fazia o Q, empertigou-se, cresceu e sobe os degraus da escadaria bem mais rápido que eu, que finjo prestar muita atenção no balanço de minha capa. Antes de alcançar a claridade, uma menininha com um bebezinho no colo pede “uma ajuda, tia, pra compra leite pra ele”. Ontem, era um menino que estava com o bebê, a menina observava a alguns metros. São todos bem pequenos. Nenhum adulto ou adolescente por perto, mas deve haver alguém para explorá-los por aí. O sol saiu, um homem com cara de pregador explica a dois camelôs que os Estados Unidos têm um plano para tomar a Amazônia e invadir o território brasileiro. Fujo do sol, do calor e da cidade no prédio totalmente climatizado, higienizado, artificialmente iluminado. Não tenho Corfu. Vou trabalhar.

Esta é pra Rosane, que trilha esses caminhos todos os dias.

18.3.05

Sonhos gregos ou praianos



Esta é a água de Corfu, a ilha grega da qual já falei. Era lá que eu queria ter passado minha infância, embora as águas de Ipanema, vez por outra, 40 anos atrás, também ficassem cristalinas e azuis. Acho que também gostaria de ter uma Corfu para dar a meus filhos uma bela infância. Tentei, ao emigar para Rio das Ostras. Pensava muito na vivência dos Durrell, quando fui pra lá. Imaginava deslumbrar meus filhos quando víssemos conchas e mexilhões nas praias ou no leito do Rio São João. Queria que eles pudessem conhecer a vida da colônia dos pescadores, andar descalços nas ruas de terra, ir à praia todos os dias.

Lógico que não chegou a acontecer nem um décimo do que eu imaginava. A vida era difícil, cara e isolada. Não havia como ser afável e travar sólidas amizades na cidade, por dificuldades de temperamento da família à qual eu então pertencia. Meus filhos não chegaram a virar minhocas da terra, até porque o sistema educacional da cidade era inferior a minhas exigências sofisticadas. Saímos de lá um ano e meio depois de chegarmos, casamento acabado, família em reconstrução.

Não sinto saudades de Rio das Ostras atual, porque a cidade, "enricada" com os royalties do petróleo, cresceu, foi pavimentada e continua com algumas deficiências anteriores: falta luz e água, ainda duvido da qualidade de ensino, a vida não é tão barata quanto se imagina e a orla ficou ridícula, totalmente "urbanizada". Sinto saudades de ter vivido uma época mais primitiva da cidade, cinco minutos antes de Macaé explodir em negócios. Ainda amo a cidade, mas já não é bem o lugar em que pretendo ter uma casa para viver durante o verão, quando eu for rica e só morar em locais agradáveis. Sim, porque meu plano de riqueza é viver constantemente na primavera. Aqui, em Aruba, nas ilhas gregas... Rio das Ostras seria uma dessas opções diversificadas em outras eras. Agora está muito maquiada, como mulher botoxada (botocada? Ou botocuda).

Quando vivia lá, trabalhei em um jornal cuja sede ficava em Barra de São João, a 10 quilômetros de minha casa. Para Rio das Ostras, esta distância é imensa. Eu ia de carro e voltava por uma estradinha na praia que liga as duas cidades (Barra pertence a Casimiro de Abreu e é a terra do poeta. Fui várias vezes visitar a casa dele, à beira do Rio São João, procurando, nas tardes fagueiras, a sombra das laranjeiras - que já não existem mais lá, só na serra). Nas noites estreladas, depois que as crianças dormiam, eu ficava olhando o céu, sentindo a brisa do mar, quando moramos num sobrado. Às vezes, acordava assustada com o barulho de algo pisando nas folhas do quintal - na verdade, um imenso matagal raramente capinado, onde eu estendia as roupas para quarar. Abria o janelão e a luz do luar mostrava um cavalo, que pastava nosso capim sempre que se soltava dos postes em que os carroceiros os largavam para passar a noite. A visão do cavalo parecia sempre um fotograma de filme do Fellini. Meu sonho odara foi bom enquanto durou.

Ficou o sonho ainda da árida Corfu, antiga Corsira, segundo minha amiga Gabriela Máximo, que anda traduzindo um livro sobre a Guerra do Peloponeso e virou uma verdadeira helenista. Sei que Corfu deve estar invadida de turistas, como a Provence de Peter Mayle (e até mais por causa dele). Em Corfu há placas indicando aonde os Durrell moraram e, provavelmente, hordas de visitantes munidos com maquininhas fotográficas se aglomeram em cada local descrito nos livros de Gerald Durrell. Ao encontrar fotografias da ilha e das casas da família, me bateu aquela sensação de que "My family and other animals" era um dos livros que eu queria ter escrito. (Tenho uma lista mental deles, como "Léxico Familiar", "A Casa de Papel", "O Amante", "O Apanhador no Campo de Centeio" e, nada modestamente, "Bartleby, o escrivão", assim como "A Fera na Selva". Pena que essa gente teve tais idéias - e experiências - antes de mim...) As descrições são tão precisas que, ao ver as fotos, reconheci varandas, cômodos das casas, os caminhos que eles percorriam na ilha, o lago, as praias. Corfu, que era um sonho para viver, tornou-se também o sinônimo de fim de outro sonho, de ter a clareza e brilhantismo para contar o que é bonito, não apenas o que é notícia. Mas como sou uma bem-aventurada, que pôde escolher em quê trabalhar, viver o real não é tão duro assim. E quem sabe um dia eu não esteja entre os bandos que incomodam os moradores de Corfu, procurando, ávida, os locais que já conheço por letras e imagens.



Começa aqui uma nova fase blogueira. Ilustrada, graças ao conhecimento internauta de Rosane Serro. Mas como eu havia prometido, esta crônica é dedicada à nossa helênica Gabi.
Quem quiser saber da Corfu e dos Durrell, é só ir em http://www.shoarns.com/Corfu.html

14.3.05

Minha família e outros animais


Este título não é meu. É do Gerald Durrel, magnífico naturalista, irmão caçula do eterno candidato ao Nobel de Literatura Lawrence, mas, não tão bem sucedido quanto o mais velho, diz o V.S. Naipaul, segundo conta Rosa Montero, na "Louca da Casa". Discordo ardentemente, até porque fui só ler Lawrence, por duas razões: haver assistido ao filme "Justine" e lido Gerald. Lawrence, para mim, era Larry, o mais velho dos filhos da viúva Durrell, que não ligava para as esquisitices de cada um de seus pimpolhos, com quem foi viver na ilha grega de Corfu, antes da Segunda Guerra Mundial. Enquanto Larry vivia escrevendo, a irmã, Margareth, só queria saber de se apaixonar, enquanto o outro irmão, Leslie, tinha mania de armas e fotografia. Lawrence tinha 23 anos, mas Gerry apenas uns 10, quando foram para Corfu. O menino tinha mania de observar e criar animais.

O livro é o primeiro de uma trilogia sobre os anos em que a família viveu na Grécia. Gerald Durrel dizia que Corfu dera forma a sua vida e que se tivesse o dom de Merlin, daria a todas as crianças uma infância como a sua. Lógico que ele dizia isso de uma forma bem melhor do que eu (“My childhood in Corfu shaped my life. If I had the craft of Merlin, I would give every child the gift of my childhood.” ) Prestei atenção em Durrell ainda na Cultura Inglesa, ao ler um trecho engraçadíssimo de "My family and other animals", que li emprestado da biblioteca até conseguir um exemplar em português, editado pela Civilização Brasileira. É certo que pulava as descrições das descobertas do jovem Gerry para me concentrar nos relatos sobre o cotidiano da família. Muito tempo mais tarde, li "Birds, beasts and relatives", também traduzido, emprestado por uma amiga. Juro que me arrependo amargamente de ter sido honesta e devolvido o livro. Nunca mais encontrei, nunca o tive para ler. O terceiro volume, então, "The Garden of Gods", este eu jamais vi.

Por mais que eu gostasse de Gerald Durrell e de seu irmão mais famoso, não imaginava, então, que teria, em minha casa, uma modesta réplica do pandemônio zoológico de Corfu. Claro que nunca vivi nas vilas deliciosas que os Durrell puderam desfrutar na Grécia, nem dei a meus filhos uma infância tão libertária quanto gostaria. Mas, proporcionalmente, meus naturalistas tiveram tanta oportunidade quanto Gerry para observar a vida animal diretamente. Criada em apartamento, sempre convivi com passarinhos e uma tartaruga, Relâmpago, animais que pouco empolgam uma criança, mas dão aos pais a consciência tranqüila de que proporcionaram ao filho o contato necessário com o bichinho de estimação. Eu deveria ter seguido o sábio exemplo de meus pais, mas a gente sempre quer testar os limites humanos.

Enquanto meus filhos eram muito pequenos, bani passarinhos de casa e não permiti qualquer animalzinho, exceto por uma breve experiência em Rio das Ostras, quando tivemos dois cachorrinhos vira-latas, Paul e Linda, doados ao retornarmos para a cidade grande. No apartamento de minha mãe já estavam Fred e Ginger, um casal de diamantes gould e um casal de manons (Jean Paul e Simone). Era um tal de levar gaiolas de Ipanema para Botafogo e vice-versa a cada viagem de fim-de-semana que os pássaros viviam estressados. Pássaros que morriam em casa ou no veterinário, como um periquitinho de Oto. Sabia que o bicho ia morrer, mas e a dor do menino? Lá se ia dinheiro e vinham outros pássaros - Gala e Dali, Frederico e Giulietta, Elvis e Priscilla, Catarina e Petrucchio, Romeu e Julieta, Christian e Satine, entre mandarins, periquitos e agapornes. Até a chegada da dinastia dos Jason. Teve Jason I, Jason II e Jason III. A Viuvinha (uma mandarim que enterrou três maridos). O Indiana e a Blue, que durou uns três anos. Indiana está velhinho, mas resiste aos outros periquitos. Já desisti de aprender o nome dos seis atuais, mas um deles é Jason, claro. Temos também três pombinhas chinesas, que são lindas.

Como as crianças reclamassem a necessidade de um mamífero em casa, caí no conto do hamster. Na verdade, no conto dos quatro hamsters, um para cada filho. Na verdade, quatro fêmeas, que dividiam a mesma gaiolinha. Não queria mais que quatro hamsters. Um mês depois, eu tinha doze. Bit, uma delas, viera grávida. Foi ótima mãe, a Bit. Dei hamsters de presente a muita gente. Uma das filhas de Bit, Saturnina, também engravidou e comeu os filhotes. Foi a hora de acabar com a criação de ratos em casa. Como me livrar da bicharada sem o protesto das crianças? Comprei uma linda beagle, Zelda, que durou exatamente três meses no apartamento. Perdi sapatos roídos pela cachorrinha e toda a minha liberdade. Não havia como sair de casa. Ela chorava o tempo todo. A vizinhança reclamava. Foi-se Zelda e voltaram ... novos hamsters, peixinhos Beta e mais passarinhos.

Resisti o quanto pude a trazer gatos para nossa comunidade. Mas eles foram a melhor desculpa para me livrar dos hamsters, que viviam fugindo das gaiolas. Foi assim que Mel chegou em minha vida, seguida por Sol (que só ficou uma semana), Gal, Luz (que fugiu, depois de me fazer gastar uma nota no veterinário) e Jolie. São quietas, discretamente chorosas quando no cio, têm pavor absoluto de cruzar a porta e de estranhos em casa, e tentam, diariamente, alcançar algum pássaro no viveiro. Nossa última aquisição foi Valentina, uma tartaruguinha, que ganhamos ao visitarmos a casa da tia de uma amiga, na Vila da Penha, onde nada menos que seis tartarugonas, jabutis e cágados, passeavam solenes pelo quintal.

Embora todos os meus filhos gostem de animais, Júlia beira o fanatismo. Só desenha bichos, assiste ao Animal Planet com a fidelidade de uma noveleira, cata as lagartas das samambaias e guarda num vidro, coberto por gaze para observar sua transformação em mariposa. A primeira palavra que disse foi "Linda", para chamar a cachorrinha, em Rio das Ostras. Quer que eu compre uma casa para criar vários cachorros. Seu dia ideal inclui passeio pelo Zoológico ou, no mínimo, ao Jóquei, para ver os cavalos na pista, conversando com os tratadores. Paradoxalmente, tem pavor de mosquitos, besouros e baratas, embora o último caso seja mais que compreensível, já que faz parte da personalidade feminina. Como a mãe dos Durrell, eu aguardo que o talento aflore em cada um dos meus rebentos. E suporto até as visitas de uma rolinha, que vai comer alpiste todas as manhãs, no parapeito da janela, onde Júlia deixa um pratinho. Será a minha sina, que nasci no dia de São Francisco, abrigar tantas famílias de bichos?

11.3.05

Ranzinza





Quem acha graça naqueles calouros de faculdade todos pintados esmolando pelas ruas? Eu, que raramente dou esmola pra mendigo mesmo, me irrito com aquela falsa demonstração de júbilo pela participação no ridículo rito de passagem. Nunca vi graça nisso, como também sempre detestei bagunça em cinema ou em ônibus.
Sou uma mulher anacrônica. Vim de uma era em que discrição era sinal de distinção. Nada que se maculasse com risos ou com uma dança arrebatadora em público. A expressão maior da alegria não se confundia com intromissão ou exibição gratuita. No entanto, vandalismo ou chamar a atenção sobre si, intencionalmente, era tão feio quanto dar chilique em enterro ou velório.

Não dá para rir com um cara-pintada qualquer que me aborda em plena passarela da Avenida Chile, suplicando uns trocados para gastar em cerveja, quando todos passam indiferentes ao rapaz que esmola sobre uma espécie de skate. Ele não anda e ali é seu ponto. Tá certo, ninguém tem obrigação de se comover com a miséria e existem lendas urbanas que apontam os pedintes como ricaços que se fingem de pobres a semana inteira, mas sábado à noite, vão para suas mansões, todas além de Ricardo de Albuquerque, num mato em Santa Isabel, Costa Barros, sei lá aonde. Pelo sim, pelo não, prefiro pensar que eles não encontraram alguma maneira digna de sobreviver.

Mas os moleques pintadinhos igual aos corações valentes do Mel Gibson? Ah, não, esses vão fazer coisa melhor com seu tempo ocioso... Vão arrecadar dinheiro em casa para pintar salas mal conservadas de escolas públicas, arrumar jardins de asilos de idosos, algo mais nobre que farrear às custas dos que ainda acreditam em marotos.

8.3.05

Mulherices

O Dia da Mulher começou com uma iluminação. Começou mesmo, a luz que nunca acende em cima do espelho do banheiro, milagrosamente, brilhou. Tremulou, tremulou e continuou acesa, meio manquitolas, porque faz tempo que ela não mostra toda sua glória. Não sei se ela voltará a brilhar, mas como tenho um acordo tácito com tudo que é inanimado e faz parte de minha vida, deixo-a em paz.
Acordo minha menina comprida. Se fosse mulher, seria franzina, miúda. Mas é uma garotinha, quase do meu tamanho, com um terço do meu peso. É um projeto de mulher, ainda, e não vai demorar muito a deixar de lado as brincadeiras com bonequinhas, o desvelo com as gatas, a tartaruga, os passarinhos. Não sei se vou gostar desta mulher grandalhona em que ela se transformará. Nossos jogos amorosos, nossas brincadeiras, beijos, carinhos extremados serão trocados por muxoxos, por desdém, por aborrecimentos sérios, amuos de ambos os lados. Ela sempre foi temperamental. Eu sempre fui temperamental.
A maior referência de minha vida era menor que eu, mais pesada, então, que eu, muito severa, muito bonita. Tento imitar o que ela tinha de melhor. Sua infinita capacidade de achar graça de si mesma, seu hábito de cantarolar a cada palavra dita, sua coragem para encarar problemas sem se esconder por trás deles, enfrentar a dureza da vida de cara limpa. Ela tinha uma preferência inconfessada por homens. Amava profundamente meus filhos, não queria dar bola para a menina. Mas Júlia não ligava. Subia em seu colo, sem ser convidada, com um livro na mão, a chupeta na boca. Sem falar, puxava-a pela mão e apontava o que queria comer. As duas se entendiam, na maneira delas.
Essas duas mulheres me fizeram. Ter três filhos homens foi fantástico, mas ser mãe de uma menina é muito diferente. Existe algo místico no útero dela. Dali, provavelmente, sairão meus descendentes. De meus filhos também, mas com ela existe uma ligação intensa, embora nossos gostos sejam mais concorrentes do que comuns. Trocamos bijouterias, bolsas, cortamos bonecas de papel. Passamos creme no cabelo, hidratante nas mãos. Não que ela precise, mas ela quer. Afinidades nem temos tantas assim. Sou muito mais parecida com os meninos, inclusive fisicamente. Mas ela é tão intensa...
... e difícil de acordar. Pede mais dois minutinhos, que se prolongam em seis. Até a hora em que dou o brado do desespero porque vamos nos atrasar. Em segundos, ela se veste e puxa um casaco. Está calor. O irmão usa bermudas, mas ela se preparou para um dia frio que não será hoje. Sonada, rosto lavado, dentes escovados, não quer comer nada. Sai do carro zangada comigo, embora tenha conseguido dinheiro para tomar sorvete antes de entrar na aula. Afinal, é dia da Mulher e sorvete tem leite!

(Tem quem ache o Dia da Mulher uma bobeira. Mas é um dia muito mais festivo do que as datas comerciais de sempre. A gente não ganha presente, no máximo umas florzinhas. Ganha beijo e batom (foi o presente que a empresa deu). É um dia bom pra pensar bem mulherzinha, falar em perfume, bolsa, sapatos, roupas, todos os clichês que são atribuídos a nós. Enquanto se levanta às 5 da manhã, chama o marido, deixa pronto o almoço do filho, pega o ônibus, se preocupa se a filha levou lanche pro colégio, trabalha, lembra de telefonar pro tio velho que estava gripado anteontem, trabalha mais um pouco, ganha parabéns e ouve piadinhas de todos os colegas homens, volta pra casa exausta para lavar roupa, estender na corda, jantar e apagar.)

Isso aqui foi escrito pra Marina, uma das mulheres mais gracinhas do mundo. Marina é doce, linda e uma alegria pra quem convive com ela.

4.3.05

Martha Stewart

Se amanhã chover, vou encarnar a Rainha do Lar.
Vou cerzir, consertar, limpar,
trocar as almofadas,
fazer artesanato,
lavar os bichos,
encapar os livros escolares,
arrumar estantes e armários.
Até cozinhar.
Com o maior prazer,
de camisão de flanela verde.
Mas se o sol sair, eu saio junto,
me encontra em frente ao mar.
O Rio não combina com amelices.

Um pouco blues

O tempo mudou e o template também. Ficou mais brumoso, mais azul bebê. Eu não gosto de azul. Gosto de céu azul e mar esverdeado. Mas tenho pouquíssimas peças de roupa azuis. Dentro de minha incapacidade de compreensão internauta, não consigo elaborar um template meu, original, com minhas cores, figurinhas de fundo etc e tal. Sequer consigo colorir uma página do Multiply.
Embora este blog seja absolutamente carioca, a figura estilo Nova Inglaterra me desperta muita simpatia. Apesar de ser azul também. Acho que ando fazendo as pazes com o azul. Quando criança, eu adorava e odiava ter olhos verdes. Depois, troquei o azul pelo verde. De repente, eu não tinha NADA azul. Era tudo amarelo, vermelho e verde. Para vestir, cheguei ao rosa (!!!) e permaneci no verde/amarelo/tijolo. E preto, claro. Qual gordo não usa pretinhos básicos. Na decoração da casa, houve a fase vinho, cor que vesti pouco por não cair muito bem. Assim como cinza, que eu adoro, mas me deixa abatida, ou marrom, que fica da mesma cor. Uso branco, tranqüilamente, sabendo que é por pouquíssimo tempo. O suficiente para eu me sujar e trocar de roupa. Minhas paredes da sala são amarelíssimas e vermelho. É grande o apartamento, comporta este espírito Almodovar.
Ultimamente, abri meus banheiros para o azul. E dá-lhe encher de velinhas azuis, sachês azuis, enfeitezinhos azuis. Como diz uma amiga, sou uma mulher totalmente bichona. Sou mesmo. Adoro casa de mulher, cheia de rococós. Casa que tem homem ou casa de homem não é assim. Nem os gays são tão frescos. Mulher não tem medo de entupir os cantos com miniaturas de Bali, de Cuzco, da Guatemala. Homem, não. Bota logo uma foto do Rio Antigo (gay), uma imensa máscara africana (gay) ou nada mesmo porque não tem tempo pra essas frescuras.
Não é que eu não goste de decoração gay. Eu amo, porque adoro gays em geral. Quer dizer gosto dos gays que sabem decorar. Alguns são meio machos mesmo, não têm o menor jeito pra arrumar uma parede decentemente. E há os que, por mais gays que sejam, não suportam frescura. Não estão nem aí para lustres, jogos americanos, poltronas combinando com o espelho do interruptor. São essencialmente masculinos. Estou me referindo literalmente a um amigo que adoro, cujo nome não citarei aqui. Ele tem um super apartamento, bem arrumado, bem limpo, mas... lustre? Ah, deixa a lâmpada pendurada lá mesmo que está bom.
Ou seja, homens podem ser felizes com lâmpadas penduradas caindo do teto, não importa a opção sexual deles. Mulheres nunca são felizes com a mesma decoração pra sempre, a mesma roupa, o mesmo corte de cabelos. Por isso, troco esses templates tanto tanto. Pena que não possa deixá-los com a feição de cada época. Limitações da Web.

3.3.05

Banheiro Feminino

Existe no mundo algum lugar mais constrangedor que banheiro público ou da empresa ?
É o local aonde qualquer lady se revela capaz de emitir sons esclarecedores sobre os odores fétidos que empesteiam o ambiente. Os banheiros coletivos femininos têm uma estranha categoria de freqüentadoras - as taradas do WC, mulheres que estendem sua permanência na área de forma a identificar cada responsável por aquela produção específica. Não apenas lavam mãos, escovam dentes e cabelos lentamente, mas retocam maquiagem com capricho de noiva casadoira ou se detêm admirando por tempo acima do suportável as sempre presentes mercadorias à venda no mercadão que é qualquer banheiro feminino.

As taradas de banheiro certamente não dispõem de olfato algum, pois resistem por tempo indefinido dentro de um antro úmido, extremamente iluminado e com perfeita acústica para a reprodução de cada suspiro exalado nos compartimentos privativos. A imensa maioria dessas mulheres tem entre 30 e 55 anos. Os cabelos são entre médio e comprido, alisados progressivamente ou mantidos umedecidos com muito gel, quando crespos. São facilmente reconhecíveis pela desenvoltura com que circulam no banheiro, igual a malhadoras que, depois de uma sessão de musculação, banham-se e desfilam peladas pelo vestiário da academia de ginástica.

A tarada de banheiro adentra em seu ambiente preferido acompanhada por uma necessaire quase do tamanho de uma bolsa de sacoleira. Na necessaire cabem mais apetrechos que ferramentas nas maletas de eletricistas. Há de tudo: todos os tipos de absorvente, batons, blushes, bases, esmaltes e acetona, algodão, lápis de olho, sombras (coloridas, claro), demaquilante, lenço de papel, corretivo e tudo o que a maioria dos homens tem a sorte de poder desconhecer, mas que os meninos do Queer Eye For the Straight Guy acham indispensável para a sobrevivência social do ser humano. Naturalmente, a necessaire também abriga escova de dentes, pasta e fio dental, pois o grande trunfo da tarada de banheiro média é o desvelo com a higiene bucal. Enquanto opina a respeito da calcinha ou da bijouteria exposta pela vendedora, ela enche a boca de espuma, sem o menor constrangimento. Depois de escovados os dentes e listerinados, é o momento glorioso de passar o fio dental caprichosa e lentamente, trocando olhares com o espelho, ouvindo atentamente os comentários das outras possíveis compradoras das mercadorias. Vinte minutos mais tarde, ela está de cara nova, maquiada, cabelos (geralmente de médio para longo, alisados ou molhados, quando crespos) escovados, pronta para voltar ao trabalho. É quando decide experimentar a lingerie à venda. Mais vinte minutos de banheiro garantidos.

O pior dos banheiros, talvez, é que neles a gente sempre pode esperar que haja alguém secretamente nos observando com uma câmera escondida. Tem maluco pra tudo neste mundo... Ou que um serial killer vá surgir por cima de uma divisória e nos matar barbaramente. Quem viu Brian de Palma sabe que existe tal possibilidade. Banheiro vazio é igual a garagem deserta em filme americano. Sempre vai dar merda. Por isso, melhor é esquecer do olfato e constrangimento que a presença das taradas do banheiro nos causam. No mínimo, elas são a segurança dos fóbicos.

1° clichê – 05/11/2004
2° clichê – 11/03/2005

1.3.05

Pátria Minha

Tá, esperei o Rio completar 440 anos para me dar conta de que nosso charme vem mesmo é da França... Gente, como brasileiro detesta descender de português! Que coisa mais boba, como se ter ancestrais de outras partes da Europa conferisse algum título nobiliárquico... Na hora de bancar o exótico pro estrangeiro, todos somos miscigenados, bons de samba e de futebol, mas adoramos dizer que temos avós gringos, desde que não sejam patrícios.
Sim, a cidade só nasceu porque alguns franceses resolveram se instalar aqui para fundar a França Antártica. Conquistaram alguns índios e acabaram se dando muito mal, com a chegada de Estácio de Sá e do próprio São Sebastião para expulsá-los das águas e terras da Guanabara. Faz parte do jeito carioca ter uma historinha tão mal contada sobre seu nascimento. Agora, a moda é reabilitar o Villegagnon, nome que me dava pesadelos, em criança, que não sabia com quantos "eles" e "gês" teria que escrever. Acho que na época do 4° Centenário do Rio, quando eu estava no Jardim de Infância, não se falava tanto assim na influência do francês na vida carioca. Eu só me lembro que aprendi a desenhar o algarismo 4 brincando com o símbolo do 4° Centenário. O 1 era um soldadinho, o 2, um patinho. O 3, não me lembro, mas o 4 era aquele monte de triângulos interligados, meio estrela, meio suástica, que simbolizavam os 400 anos do Rio.
Um amigo diz, volta e meia, que eu me apego a um Rio que não mais existe. Não, estou apegada ao Rio atual mesmo, que poderia ser sensacional novamente. Um Rio violentíssimo, miserável, agressivo, imenso, preconceituoso, feio. E belo, vincado, batalhador, alegre, colorido, de uma vivacidade inebriante.
O que leva a gente a se apaixonar por uma cidade, não sei. Amigos que tiveram a oportunidade de viver fora do Brasil acabaram retornando, com saudades não apenas da família, mas da vibração e, principalmente, dos tons azuis do céu e do mar. Essas pessoas iriam encontrar um mercado de trabalho pífio, violência urbana e inflação assustadora. Por que voltaram? Talvez porque cada calçada portuguesa em que torcemos o pé tenha uma história para contar. Porque cada sardinha acompanhada por cerveja tomada sobre caixotes ou banquinhos de botequim seja mais saborosa do que uma paella. Porque nada se compara a meio Maracanã apreensivo com a cobrança de um pênalti. Porque a cidade nos surpreende a cada olhar de relance para o retrovisor, quando, além dos carros, vemos a Pedra da Gávea. Porque a Rua São Clemente é a entrada de um bairro "de passagem", mas é nela que a gente dá de cara com o morro do Corcovado e o Cristo tão alto, sobre nuvens, dentro da Floresta. Ou porque é de tirar o fôlego se deparar com a mata que surge entre os Rebouças quando vamos em direção à Cidade.
Não tem explicação esses lampejos de paixão, principalmente para quem nasceu por aqui e já deveria ter se acostumado com o verde insistindo em explodir nos ambientes mais áridos. Não existe favela modesta carioca sem samambaias exuberantes, palmeirinhas, vasinhos com avenca se mostrando por entre grades em forma de estrela.
Para me transformar em carioca da gema, oriunda de um ovo paulista-catarinense, desde pequena fui ensinada a glorificar meu berço. Em meu caso, literalmente, esplêndido, no Silvestre, dentro da Floresta, sob as bênçãos do Cristo. E, ao lado de uma favela, claro. Sempre morei perto de favelas. Quando bebê, na Nascimento Silva, grudada no Cantagalo. Cerquei o Morro, tendo vivido na Visconde de Pirajá e, por mais tempo, na Barão da Torre. Depois, tive uma breve passagem pelo Turano, quando morei na Barão de Itapagibe, num apartamento que troquei em um ano por outro na Dona Mariana, pertinho do cemitério. Lá, ouvia os bailes funk da Ladeira dos Tabajaras. Três anos depois, fui para a São Clemente. A primeira noite, um sábado, acordei apavorada, depois de um dia inteiro de mudança. Os fogos anunciando a chegada das drogas pareciam ser lançado na minha sala. Hoje, mal os ouço. E quando são eles, não granadas ou morteiros, me sinto tranqüila.
É estranho sentir-se tranqüilo com os fogos das drogas. Meu desencanto com o Rio começou em novembro de 1998, quando jogaram a cabeça de um traficante morto lá de cima do Cantagalo na entrada da Teixeira de Melo. A barbárie chegara a Ipanema. Fiquei aterrorizada, tentei até fugir da violência, indo morar em Rio das Ostras. Era meu sonho odara, tinha um quiosque na praia, vivia de canga, trabalhava em jornalzinho local. Lá, um amigo foi assassinado num assalto. A violência me seguia.
Não, não me sinto imune. Nem segura, nem insegura. Só sinto que, hoje, aqui é meu lugar. Sem saudosismos. Eu gosto tanto do Rio que viajar não é tão empolgante assim. Atualmente, sou como adolescente, que detesta largar o grupo de amigos nas férias, quando é obrigado a visitar a família em outra cidade. Meu grupo é a cidade inteira. Se a deixo por muito tempo parece sempre que perdi alguma coisa porque não estava aqui, na mãe gentil.
Os códigos só são claros para os nativos. Andar de biquíni é na praia. Na calçada, tem que vestir alguma coisa. Dá pra ir de canga a um bar aberto, mas não comprar roupas ou sapatos sem estar adequadamente coberto. Ninguém vende fiado, exceto o vendedor de sorvetes, o pipoqueiro, o botequim e a locadora de vídeo. Na terceira compra em uma lojinha de bairro, a dona vira sua amiga de infância e divide o pagamento em quatro cheques pré-datados, acompanhados com o indefectível "Entre nós não tem disso", quando você diz que não pode levar a mercadoria. Confidências íntimas a desconhecidos são permitidas na fila do banco, do correio ou do cinema. A turma da praia dificilmente freqüenta sua casa. Os colegas de trabalho dificilmente se encontram ou ficam juntos na praia. O povo é confiado e ríspido, mas se lembra de oferecer um café a quem foi vítima de um temporal e ficou ilhado na portaria de um prédio (isso me aconteceu: acabei sentada na sala do casal). Nada supera o calor da Zona Oeste, a comida da Zona Norte, a beleza da Zona Sul e o jeitão de interior de Santa Teresa.
Não sei se descendemos do produto da luta entre tupis, tamoios, franceses, portugueses e santos guerreiros. Mas que aqui ficou uma gente valorosa, leal e heróica, ficou, que tem por sua terra muito mais que bairrismo. Talvez eu seja muito mais carioca que brasileira.