1.3.05

Pátria Minha

Tá, esperei o Rio completar 440 anos para me dar conta de que nosso charme vem mesmo é da França... Gente, como brasileiro detesta descender de português! Que coisa mais boba, como se ter ancestrais de outras partes da Europa conferisse algum título nobiliárquico... Na hora de bancar o exótico pro estrangeiro, todos somos miscigenados, bons de samba e de futebol, mas adoramos dizer que temos avós gringos, desde que não sejam patrícios.
Sim, a cidade só nasceu porque alguns franceses resolveram se instalar aqui para fundar a França Antártica. Conquistaram alguns índios e acabaram se dando muito mal, com a chegada de Estácio de Sá e do próprio São Sebastião para expulsá-los das águas e terras da Guanabara. Faz parte do jeito carioca ter uma historinha tão mal contada sobre seu nascimento. Agora, a moda é reabilitar o Villegagnon, nome que me dava pesadelos, em criança, que não sabia com quantos "eles" e "gês" teria que escrever. Acho que na época do 4° Centenário do Rio, quando eu estava no Jardim de Infância, não se falava tanto assim na influência do francês na vida carioca. Eu só me lembro que aprendi a desenhar o algarismo 4 brincando com o símbolo do 4° Centenário. O 1 era um soldadinho, o 2, um patinho. O 3, não me lembro, mas o 4 era aquele monte de triângulos interligados, meio estrela, meio suástica, que simbolizavam os 400 anos do Rio.
Um amigo diz, volta e meia, que eu me apego a um Rio que não mais existe. Não, estou apegada ao Rio atual mesmo, que poderia ser sensacional novamente. Um Rio violentíssimo, miserável, agressivo, imenso, preconceituoso, feio. E belo, vincado, batalhador, alegre, colorido, de uma vivacidade inebriante.
O que leva a gente a se apaixonar por uma cidade, não sei. Amigos que tiveram a oportunidade de viver fora do Brasil acabaram retornando, com saudades não apenas da família, mas da vibração e, principalmente, dos tons azuis do céu e do mar. Essas pessoas iriam encontrar um mercado de trabalho pífio, violência urbana e inflação assustadora. Por que voltaram? Talvez porque cada calçada portuguesa em que torcemos o pé tenha uma história para contar. Porque cada sardinha acompanhada por cerveja tomada sobre caixotes ou banquinhos de botequim seja mais saborosa do que uma paella. Porque nada se compara a meio Maracanã apreensivo com a cobrança de um pênalti. Porque a cidade nos surpreende a cada olhar de relance para o retrovisor, quando, além dos carros, vemos a Pedra da Gávea. Porque a Rua São Clemente é a entrada de um bairro "de passagem", mas é nela que a gente dá de cara com o morro do Corcovado e o Cristo tão alto, sobre nuvens, dentro da Floresta. Ou porque é de tirar o fôlego se deparar com a mata que surge entre os Rebouças quando vamos em direção à Cidade.
Não tem explicação esses lampejos de paixão, principalmente para quem nasceu por aqui e já deveria ter se acostumado com o verde insistindo em explodir nos ambientes mais áridos. Não existe favela modesta carioca sem samambaias exuberantes, palmeirinhas, vasinhos com avenca se mostrando por entre grades em forma de estrela.
Para me transformar em carioca da gema, oriunda de um ovo paulista-catarinense, desde pequena fui ensinada a glorificar meu berço. Em meu caso, literalmente, esplêndido, no Silvestre, dentro da Floresta, sob as bênçãos do Cristo. E, ao lado de uma favela, claro. Sempre morei perto de favelas. Quando bebê, na Nascimento Silva, grudada no Cantagalo. Cerquei o Morro, tendo vivido na Visconde de Pirajá e, por mais tempo, na Barão da Torre. Depois, tive uma breve passagem pelo Turano, quando morei na Barão de Itapagibe, num apartamento que troquei em um ano por outro na Dona Mariana, pertinho do cemitério. Lá, ouvia os bailes funk da Ladeira dos Tabajaras. Três anos depois, fui para a São Clemente. A primeira noite, um sábado, acordei apavorada, depois de um dia inteiro de mudança. Os fogos anunciando a chegada das drogas pareciam ser lançado na minha sala. Hoje, mal os ouço. E quando são eles, não granadas ou morteiros, me sinto tranqüila.
É estranho sentir-se tranqüilo com os fogos das drogas. Meu desencanto com o Rio começou em novembro de 1998, quando jogaram a cabeça de um traficante morto lá de cima do Cantagalo na entrada da Teixeira de Melo. A barbárie chegara a Ipanema. Fiquei aterrorizada, tentei até fugir da violência, indo morar em Rio das Ostras. Era meu sonho odara, tinha um quiosque na praia, vivia de canga, trabalhava em jornalzinho local. Lá, um amigo foi assassinado num assalto. A violência me seguia.
Não, não me sinto imune. Nem segura, nem insegura. Só sinto que, hoje, aqui é meu lugar. Sem saudosismos. Eu gosto tanto do Rio que viajar não é tão empolgante assim. Atualmente, sou como adolescente, que detesta largar o grupo de amigos nas férias, quando é obrigado a visitar a família em outra cidade. Meu grupo é a cidade inteira. Se a deixo por muito tempo parece sempre que perdi alguma coisa porque não estava aqui, na mãe gentil.
Os códigos só são claros para os nativos. Andar de biquíni é na praia. Na calçada, tem que vestir alguma coisa. Dá pra ir de canga a um bar aberto, mas não comprar roupas ou sapatos sem estar adequadamente coberto. Ninguém vende fiado, exceto o vendedor de sorvetes, o pipoqueiro, o botequim e a locadora de vídeo. Na terceira compra em uma lojinha de bairro, a dona vira sua amiga de infância e divide o pagamento em quatro cheques pré-datados, acompanhados com o indefectível "Entre nós não tem disso", quando você diz que não pode levar a mercadoria. Confidências íntimas a desconhecidos são permitidas na fila do banco, do correio ou do cinema. A turma da praia dificilmente freqüenta sua casa. Os colegas de trabalho dificilmente se encontram ou ficam juntos na praia. O povo é confiado e ríspido, mas se lembra de oferecer um café a quem foi vítima de um temporal e ficou ilhado na portaria de um prédio (isso me aconteceu: acabei sentada na sala do casal). Nada supera o calor da Zona Oeste, a comida da Zona Norte, a beleza da Zona Sul e o jeitão de interior de Santa Teresa.
Não sei se descendemos do produto da luta entre tupis, tamoios, franceses, portugueses e santos guerreiros. Mas que aqui ficou uma gente valorosa, leal e heróica, ficou, que tem por sua terra muito mais que bairrismo. Talvez eu seja muito mais carioca que brasileira.

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