30.3.05

Os pagãozinhos

. Nunca assisti aos "Dez Mandamentos", nem ao "Manto Sagrado", sequer "Ben-Hur" me pegou totalmente acordada. Educada como católica, estudei em colégio de freiras, onde só passavam um seriado mexicano sobre a vida de Cristo que tinha, essencialmente, dois episódios: um que mostrava Jesus - de costas - caminhando sobre as águas e outro em que Pedro larga tudo para acompanhá-lo. Cheguei a assistir a "Jesus de Nazaré", do Zeffirelli, chorando mais que Maria na cena de crucificação. Vi "Jesus Cristo Superstar" e "Godspell". Mas filme bíblico, em geral, tendo Jesus ou não, me deixava angustiada.
Embora eu tentasse me apegar à fé, então, assistindo missa todas as sextas-feiras na capela do colégio (furiosa porque não valia pela missa de domingo), a religião jamais aplacou meu temor da morte, algo que só aconteceria quando abandonei os cultos e procuras de conhecimento teológico. Da missa, o que mais gostava era dos sermões. A consagração, aquela encenação teatral, a cantoria, a comunhão não me interessavam. As hóstias eram saborosas, às vezes embebidas em vinho de missa. Uma vez, junto com outras delinqüentes de 12 anos, brincamos de padre e pegamos um monte de hóstias, que encontramos dentro de uma gaveta de um móvel na capela. Demos umas para as outras, falando "O Corpo de Cristo". Uma das meninas do grupo, sentindo-se muito culpada, contou tudo para a Irmã Clarência, que nos passou um sabão, mas não sei se chegou a falar com nossos pais. Sei que, na confissão semanal, fui, apavorada, contar meu pecado ao padre. Ao se assegurar de as hóstias nem estavam consagradas, ele riu e me mandou rezar algumas aves marias, pedindo que eu não voltasse a brincar de padre.
As filas de confessionário sempre me angustiavam. Quando criança, porque sabia que ia levar bronca por ter pecado mortal de faltar à missa de domingo. Filha única, não tinha um excelente pecado venial a relatar, a briga com os irmãos. O ideal era enumerar muitos pecados veniais e jogar os mortais no meio do relato. O problema é que nem tanto pecado a gente tinha assim e ficávamos sugerindo delitos umas às outras, enquanto aguardávamos o momento de confessar. Bom era confessar com o Frei Clemente, que dispensava a gente no terceiro pecado, provavelmente por não nos encarar como grandes pecadoras. Duro é que, na adolescência, até o Frei Clemente prestava mais atenção aos nossos pecados, já que a luxúria se instalara em nossos corações e mentes.
Uma frustração que a religião me trouxe foi a de jamais ter sido anjinho na micro-procissão que a escola promovia dentro da capela, sexta-feira antes da Semana Santa. Nem me imagino solene com uma veste de anjinho em cetim azul, muito menos tendo que agüentar uma missa interminável toda paramentada. Mas sonhava com a honraria, oferecida apenas a crianças bem-comportadas, diziam as irmãs. Meu conceito em comportamento, que oscilava entre Regular e Deficiente, não era compatíval com a função.
O primeiro contato com a religião como algo fora do mundo da família veio através do colégio. No Jardim de Infância, aos quatro anos de idade, recebi um cartão com a figura de Jesus cercado por criancinhas de todas as etnias. Perfurávamos o cartão com alfinetes, nem sei por quê, e arrecadávamos dinheiro entre os parentes para enviar aos pagãozinhos. Os pagãozinhos eram as crianças das missões que as irmãs de Notre Dame mantinham na Amazônia, África e Ásia. Também recebíamos peças de tecido cortadas para que as mães costurassem em casa. Eram roupas para os pagãozinhos. Minha mãe, uma das poucas mulheres que trabalhava fora, na década de 60, que nem sabia costurar direito, coitada, tinha que coser as peças à máquina à noite, depois de voltar do serviço. Era isso ou fazer parte de um grupo de mães que ia ao colégio costurar para os pagãozinhos.
Naquela época, entrávamos para o catecismo aos 7 anos de idade. Era uma tremenda chatice o catecismo, porque só se fazia decorar umas rezas, a Via Crucis e os Mistérios Gozosos, Dolorosos e Gloriosos. Nunca aprendi a rezar o Salve Rainha, mal sabia o Credo e preferia passar a aula lendo a única parte que me interessava da Bíblia, o Velho Testamento. A irmã catequista sempre deixava para me argüir por último, antevendo que eu não passava dos Gozosos para os Dolorosos. Semana após semana, eu lia a vida dos hebreus, Abraão imolando o filho a Deus, o que eu considerava um absurdo total, José sonhando com vacas magras, Moisés abrindo o Mar Vermelho, trombetas derrubando os muros de Jericó, Sodoma e Gomorra destruídas por Javé, as filhas de Lot seduzindo o pai. Por pouco a irmã não confiscou minha Bíblia. Mas o que reclamar de uma menina tão piedosa?
Um dia, depois da enésima bronca por minha desatenção com Cristo, decidi decorar os mistérios. Na aula seguinte, pouco antes de tocar o sinal, a irmã chamou meu nome, pronta a me ouvir até o quinto ou sexto mistério. Falei todos os quinze. De tão emocionada, a irmã me deu um santinho e um marcador com a imagem da Sagrada Família e, glória suprema, uma estrelinha! A lua-de-mel da irmã comigo durou pouco. Dias depois, minha mãe recebeu o modelo de roupa da Primeira Comunhão e decidiu que eu não participaria da cerimônia, que iria cair exatamente no dia do meu aniversário. A roupa era de mangas compridas, cheio de debruns, babadinhos, botõezinhos até o colarinho, com um arranjo de flores na cabeça, igual à roupa de Santa Terezinha, informava a circular com o modelo.
"Santa Therezinha era uma menina rica, você não é", concluiu Mamãe, que adaptou a roupa de minha prima para eu fazer Primeira Comunhão numa missa comum, numa pequena capela num arrabalde de Petrópolis, em missa celebrada por meu tio, monge beneditino. Eu me senti ridícula, com um hábito de franciscano branco, uma cruz no peito, e todos os meus parentes adultos me vendo receber a hóstia. Meu tio deu um tapinha na minha cabeça depois que comunguei e, a partir daí, eu era uma católica bastante consciente, que preferia ir à missa domingo de manhã cedinho para pegar uma praia depois. Quando informei à irmã que já havia comungado, a freira se indignou: "Mas você não estava preparada!". Instruída por Mamãe, respondi: "Fui preparada por meu tio monge" e calei a professora. Descobri, então, o poder que a palavra "monge" exercia no meio religioso.
Esta última Semana Santa, passei doente, em casa, espantada com o número de filmes bíblicos em cartaz na televisão, dos quais fugia como o Diabo da cruz. Hugo e Júlia, ao contrário, se entusiasmaram em assistir à carnificina filmada por Mel Gibson. Sinceramente comovida, minha filha pergunta:
- Coitadinho do Jesus, Mamãe, por que ele foi morto daquele jeito?
Pigarreio e engreno uma explicação político-filosófica sobre a razão para os judeus pedirem a condenação de Jesus à morte. Espanto da menina.
- Ué, Jesus era judeu??? Ele não era cristão??? Olha, dessa eu não sabia.
É o que dá batizar os filhos e afastá-los totalmente de qualquer contato religioso. Viraram pagãozinhos.

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