26.1.05

Ouro, incenso e mirra

O trânsito está enlouquecedor porque dezembro vai chegar, trazendo com ele a esperança de que, findo este ano, a vida melhora. A gente embarca na propaganda da felicidade comercial natalina e dá-lhe comprar porcaria, rezando para que o infeliz a recebê-la não tenha gastado muita grana com o que vai lhe empurrar.
O que já ganhei de leques de madeira chineses e nécéssaires absolutamente desnecessárias ... Uma de minhas tias passou dez anos me entregando dois pares de meias-calças em todos os aniversários e natais. Por dez anos, ganhei 40 meias-calças! Presente mais besta, meia-calça, não? A bisavó dos meus filhos chegava, solenemente, com embrulhinhos feitos em casa de paninhos de crochê azuis, creme ou rosa bebê, sempre afiançando que só gostava de dar presentes verdadeiramente úteis. Os paninhos serviriam para cobrir bandejas, cestas de pão ou bolos. Sempre me vinha à cabeça a máxima de minha mãe: “Papel higiênico é útil, presente tem que ser uma alegria”. Armava o sorriso compreensivo, como se ouvisse uma revelação da velhinha, agradecia com a maior falsidade e armazenava os paninhos num canto de gaveta, de onde eles só saíram quando minha filha precisou de cobertores para as bonecas.
Não que eu seja muito generosa em meus presentes de Natal. Tentei, por anos, ser original, comprava vasos de planta, velas, jogos americanos, CDs, paninhos decorados com motivos natalinos. Minha mãe, todos os anos, invariavelmente, começava a embrulhar presentes no fim de novembro. E, religiosamente, até o dia 24 de dezembro, trocava todos os destinatários dos presentes. Era parte da tradição natalina vê-la com todos os presentes em cima da cama, passando etiquetas de um para outro.
Isso tudo acabou com a morte de minha mãe. A obrigatoriedade de comparecer a um almoço chato (a família é tão idosa e estranha que festejava o Natal com um almoço), seguido por uma troca de presentes ordinários e por momentos de terapia grupal freudiana de idosos que falavam mal da mãe morta acabou, felizmente. Mas, com quatro filhos e uma “família” de amigos, não há como escapar das obrigações natalinas.
Confesso que adoro paramentar a casa para o Natal. Sou praticamente uma Xmas victim. Se houvesse mais festas que me obrigassem a mudar a decoração de casa, eu ficaria muito feliz. Mal chega dezembro e eu já estou armando árvore, montando dois presépios, pendurando painéis com papais noéis (tem um de uma mulher jogando neve na cidadezinha que é de minha infância, tenho paixão por ele), colando cartões de Natal nos portais, enfileirando casinhas com anjos, pregando meias nas paredes, cordões de bolinhas, luzes, tudo o que é possível e que as gatas não destruam (haja esperança!).
A verdade é que eu nunca acreditei em Papai Noel, porque meus pais eram pessoas modernas, antenadas e não queriam que eu crescesse uma burguesinha idiotizada. Cresci frustrada, pois sempre soube que não havia coelhinho da Páscoa, nem Cuca, nem Bicho-Papão. Meu pai contava que eu ficava de olho comprido pros Papais Noéis de loja, mas nunca tirei fotografia no colo de nenhum deles. Então, quando tive filhos, montei todo o aparato cinematográfico necessário para envolvê-los na magia hollywoodiana natalina, apesar de meus pais protestarem que tudo era jogada comercial popularizada pelos filmes americanos. Agora que meus filhos são grandes, sem desculpa de criar um ambiente mágico para as crianças, assumo: gosto da casa toda vermelha e verde, de ver aqueles filmes pavorosos, com mensagens melosas (“A Rena do Nariz Vermelho”, “A Verdadeira História de Papai Noel”, “Meu Papai é Noel”, “Milagre na Rua 34”, “Um Segredo de Natal”, “Uma História de Natal”, “O Natal da Família do Chevy Chase”), de me entupir de rabanadas e de, eventualmente, ganhar presentes que jamais utilizarei.
Mas além de planejar a festa de Natal em minha casa, tenho que me atirar ao planejamento natalino, montando intermináveis listas de presenteáveis e dos simulacros de ouro, incenso e mirra que ganharão. Aos porteiros, camisetas ou camisas pólo, embora todos preferissem dinheiro, claro. Antes, ganhavam garrafas de vinho ou o peru do Dr Roberto, do Dr Ary ou do Dr Brito (as cestas com chester natalinos, vinhos gaúchos, uma caixa de passas e, às vezes, uma posta de bacalhau que o Globo, o Dia e o JB davam para os funcionários no fim do ano). Como dois dos porteiros se tornaram alcoólatras, optei pela fatiota natalina. Para a manicure, a faxineira, a irmã da empregada, a prima da empregada e a amiga da empregada, toalhinhas com motivos natalinos, não, isso foi o do ano passado. Vamos pra loja de 1,99 catar cumbucas e bandejas fabricadas na China ou na Tailândia por crianças escravizadas. O pai das crianças vem visitar, não conseguirei escapar do presente pra ele, embora o pão-duro nunca tenha me dado nada depois da separação. Tem os avós das crianças, os padrinhos das crianças (são oito: quem mandou ter quatro filhos?), mais os compadres, mais quatro afilhados, mais o carteiro, o lixeiro, o entregador de jornal, a caixinha do pessoal da papelaria ao lado de casa, que me entregam os livros pelo muro do edifício, ... Desisto da lista, quando dezembro chegar eu penso, enquanto calculo como vou atender aos pedidos picaretas que me chegarão e aos que têm real necessidade de ajuda, como a APAE de Nova Iguaçu, o berçário de HIV do Gaffrée e Guinle, Associação dos Cegos, Campanha da Fome do Betinho, crianças do INCA. Ao mesmo tempo, penso se o 13º será utilizado para pagar continhas atrasadas.
Melhor correr com dezembro e chegar em janeiro para comprar material escolar, pagar novo IPTU, novo IPVA, preços mais altos no supermercado, depois que acaba a época de movimentar a economia no shopping center mais próximo.


Do Multiply, 23/11/2004



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