8.3.05

Mulherices

O Dia da Mulher começou com uma iluminação. Começou mesmo, a luz que nunca acende em cima do espelho do banheiro, milagrosamente, brilhou. Tremulou, tremulou e continuou acesa, meio manquitolas, porque faz tempo que ela não mostra toda sua glória. Não sei se ela voltará a brilhar, mas como tenho um acordo tácito com tudo que é inanimado e faz parte de minha vida, deixo-a em paz.
Acordo minha menina comprida. Se fosse mulher, seria franzina, miúda. Mas é uma garotinha, quase do meu tamanho, com um terço do meu peso. É um projeto de mulher, ainda, e não vai demorar muito a deixar de lado as brincadeiras com bonequinhas, o desvelo com as gatas, a tartaruga, os passarinhos. Não sei se vou gostar desta mulher grandalhona em que ela se transformará. Nossos jogos amorosos, nossas brincadeiras, beijos, carinhos extremados serão trocados por muxoxos, por desdém, por aborrecimentos sérios, amuos de ambos os lados. Ela sempre foi temperamental. Eu sempre fui temperamental.
A maior referência de minha vida era menor que eu, mais pesada, então, que eu, muito severa, muito bonita. Tento imitar o que ela tinha de melhor. Sua infinita capacidade de achar graça de si mesma, seu hábito de cantarolar a cada palavra dita, sua coragem para encarar problemas sem se esconder por trás deles, enfrentar a dureza da vida de cara limpa. Ela tinha uma preferência inconfessada por homens. Amava profundamente meus filhos, não queria dar bola para a menina. Mas Júlia não ligava. Subia em seu colo, sem ser convidada, com um livro na mão, a chupeta na boca. Sem falar, puxava-a pela mão e apontava o que queria comer. As duas se entendiam, na maneira delas.
Essas duas mulheres me fizeram. Ter três filhos homens foi fantástico, mas ser mãe de uma menina é muito diferente. Existe algo místico no útero dela. Dali, provavelmente, sairão meus descendentes. De meus filhos também, mas com ela existe uma ligação intensa, embora nossos gostos sejam mais concorrentes do que comuns. Trocamos bijouterias, bolsas, cortamos bonecas de papel. Passamos creme no cabelo, hidratante nas mãos. Não que ela precise, mas ela quer. Afinidades nem temos tantas assim. Sou muito mais parecida com os meninos, inclusive fisicamente. Mas ela é tão intensa...
... e difícil de acordar. Pede mais dois minutinhos, que se prolongam em seis. Até a hora em que dou o brado do desespero porque vamos nos atrasar. Em segundos, ela se veste e puxa um casaco. Está calor. O irmão usa bermudas, mas ela se preparou para um dia frio que não será hoje. Sonada, rosto lavado, dentes escovados, não quer comer nada. Sai do carro zangada comigo, embora tenha conseguido dinheiro para tomar sorvete antes de entrar na aula. Afinal, é dia da Mulher e sorvete tem leite!

(Tem quem ache o Dia da Mulher uma bobeira. Mas é um dia muito mais festivo do que as datas comerciais de sempre. A gente não ganha presente, no máximo umas florzinhas. Ganha beijo e batom (foi o presente que a empresa deu). É um dia bom pra pensar bem mulherzinha, falar em perfume, bolsa, sapatos, roupas, todos os clichês que são atribuídos a nós. Enquanto se levanta às 5 da manhã, chama o marido, deixa pronto o almoço do filho, pega o ônibus, se preocupa se a filha levou lanche pro colégio, trabalha, lembra de telefonar pro tio velho que estava gripado anteontem, trabalha mais um pouco, ganha parabéns e ouve piadinhas de todos os colegas homens, volta pra casa exausta para lavar roupa, estender na corda, jantar e apagar.)

Isso aqui foi escrito pra Marina, uma das mulheres mais gracinhas do mundo. Marina é doce, linda e uma alegria pra quem convive com ela.

Um comentário:

Rosane Serro disse...

Olga, registre isso:
Eu quero ler suas palavras para sempre.
E se algum dia eu deixar de existir, prometa que vai - de textinho em textinho - fazer fumaça para elas chegarem no céu...