23.5.05

Nas alturas




Existem lugares no mundo que eu jamais conhecerei ou que nunca pensei em conhecer. Rondônia, por exemplo. Nada contra Rondônia, mas não há motivo algum, nenhum amigo morando por lá, nem qualquer curiosidade antropológica ou cultural que me faça pensar em visitar Rondônia. Exceto o trabalho. Meu ofício me fez conhecer locais do Rio de Janeiro que gente em meu círculo de amizades sequer sabe o nome. Para eles, ir a Barros Filho é o mesmo que ganhar uma passagem para o Cafiristão.
Quando repórter geraldina, trilhei muitos caminhos que hoje não me passam sequer pela cabeça. Catar endereços em Bangu, que só tem um bairro famoso, o Jabour, é tarefa para detetive que não use capa impermeável, porque o calor de Bangu só se compara ao frio que faz naquelas plagas. Cansei de sair para uma roubada na Zona Oeste, que, na época, os chefes de reportagem consideravam próxima de qualquer local no mapa fluminense. De lá, quando dávamos o retorno por rádio ou por orelhão, algumas vezes das casas dos entrevistados, éramos mandados para "Seropédica, que fica aí do lado". O "do lado" significavam uns bons trinta quilômetros. Mas geraldino não fala. Está um ponto acima do repórter especializado em polícia, dois do que fica na escuta, três dos que fazem exclusivamente jornais de bairro e é quatro vezes superior, na mesma escala hierárquica, que um estagiário. Ou seja, repórter de Geral não apita quase nada e segue humildemente as determinações do chefe. Assim, fui descobrindo a existência de recantos não tão aprazíveis quanto a ZSul, porém interessantes e apavorantes, quando era neles abandonada, sem carro ou fotógrafo, precisando suplicar por um carro que me pegasse ao fim da apuração e me levasse de volta ao Centro.
A angústia, por vezes, era minha companheira nessas incursões, num tempo em que não existia telefone celular nem ar condicionado no carro de reportagem, nos quais, quem mandava era o motorista. Aos sábados de manhã, as viagens eram embaladas por um programa que entremeava canções de Roberto Carlos e Julio Iglesias. Ao longo da semana, era pagode sem parar. Atravessar a Avenida Brasil ao som de pagodes era insuportável, a ponto de eu carregar comigo um walkman, só para ouvir a Rádio MEC, como antídoto contra a mediocridade auditiva a que era submetida por meus algozes.
Essa época inglória, embora divertida, pude recordar quando, a serviço, fui mandada para um congresso de jornalistas em Itatiaia, tendo como companheira de viagem e de quarto de hotel, minha amiga Rosane Serro. Para passar o fim-de-semana. Bom, como dizia a Laura Antunes, do Globo, pobre quando vai a Búzios, pega chuva. Desde a convocação, eu pressentia que a viagem não seria tão divertida quanto se apresentava. A nós foi dada a opção de ir em carro ou seguir de ônibus, com outros jornalistas. Preferimos o carro. O motorista logo nos perguntou qual gênero musical preferíamos.
- Nada de sertanejo, pagode ou gospel - definimos.
Começava ali nosso tormento. Engarrafadas na Avenida Brasil, ouvimos sucessos românticos das décadas de 60, 70, 80 e 90 , ininterruptamente, por três horas e meia. Sem sequer um locutor sussurando "Good Times, 98", enquanto éramos invadidas por "You're once, twice, three times a lady" e todo o repertório dos Commodores, além de Diana Ross, Donny Hathaway, Michael Jackson meloso ("Ben"). O mais animadinho, nesse purgatório soul de segundo escalão, foi Stevie Wonder cantando "I've Just Called to Say I love You" - e eu aguardava surgir, a cada refrão, o jingle "Antena Um". E dá-lhe Whitney Houston, Jackson Five ("Got to be There"), Mariah Carey, Lionel Ritchie, Bee Gees ("How can you mend a broken heart"), Minnie Ripperton.
Fim da jornada, Sinatra cantando "New York, New York", saímos para a geleira em que se transformara Itatiaia naquela noite, quando os termômetros registravam 3 graus centígrados, temperatura para a qual não fui geneticamente programada. Ao deixarmos o carro de nosso Caronte, não havia um cérbero para nos dar boas vindas, mas gente transfigurada de frio, coberta por estranhas vestimentas, parecendo que entrávamos numa hospedaria do Senhor dos Anéis. Crentes que, enfim, descansaríamos aquecidas, descobrimos que no Hotel Simon, tradicional palco de lua-de-mel de diversos pais de amigos, não havia calefação. Mas tinha mofo. Esperava encontrar um laboratório onde haveria estufas para cultura de ácaros ou era apenas o desvario provocado pelo consumo de seis comprimidos de antialérgico durante nossa interminável estada naquele cenário dantesco.
Nosso quarto estava em penumbra, conforme a outra repórter que seria nossa companheira de hospedagem gostava. Escureceu mais ainda quando Rosane resolveu ligar um ferro elétrico para passar um vestido e cortou a iluminação no andar inteiro. Restaurada a luz, descemos para o salão de refeições, eu com três blusões superpostos, parecendo um boneco de neve mal ajambrado, Rosane elegante, apesar do vestido amassado. Grupos de coleguinhas lutavam contra o frio, embriagando-se de vinhos nacionais de qualidade duvidosa. Prática que segui para conseguir adormecer de madrugada, congelada e prester a ter uma crise asmática após quase 30 anos sem a doença manifestar-se.
De manhã, a neblina cobria tudo. A visibilidade limitava-se a um raio de meio metro em torno de cada pessoa. Um rapaz com cara de maluquinho, de short e camiseta SEM MANGAS oferecia-se como guia para uma caminhada leve até o Pico de Itatiaia. Em lamentável estado de desolação absoluta, sem respirar pelo nariz, olhos semicerrados e inchados, cochilando depois de tanto antialérgico, decidi, com Rosane, chamar nosso Caronte de volta para nos tocar serra abaixo assim que o seminário acabasse, mesmo perdendo o churrasco que o hotel prometia para a noite. Caronte, que se despedira triste por não termos ouvido Celine Dion cantando "Titanic", providenciara para que esta fosse a primeira das mais de 60 músicas no mesmo estilo desesperado-light a ouvirmos seguidas enquanto descíamos para o Rio, onde Rosane ficou de cama por três dias e eu fui parar no imunologista com asma.
Foi a partir daí que desenvolvi uma estranha reação sempre que ouço Commodores. Mesmo quando soa a introdução de "Lady" bem distante, surge um chiado em meu peito.

2 comentários:

Rosane Serro disse...

MARAVILHOSO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
OLGA, eu tinha esquecido do homem de camiseta e short!!! E, você, educadamente (por isso sou sua amiga e admiradora) não mencionou que eu quase dormi no sofá da sala da lareira para espantar o frio, numa atitude quase sarjeta (o que pensariam de mim no dia seguinte???)
Mas a temperatura era de rachar, os ácaros de matar e nos prometemos nunca mais lá pisar!
Pelo fechamento do Hotel Simon (e conseqüente transferência de seus funcionários para um novo estabelecimento hoteleiro, que não quero ninguém desempregado), subscrevo-me,
Rosane

Olga de Mello disse...

Rosa.
a praga do Hotel Simon pega até por escrito. Não é que acordei toda entupida e com a boca inchada?
Isso tem que acabar.
E não é por nada não, mas ele não lembra aquele hotel do Iluminado?