22.1.06

Os coitados

O calor é tanto que embota o pensamento. Não há raciocínio com o corpo molhado, a cabeça dolorida e a claridade tão intensa que dá vontade de usar óculos escuros em casa. À noite, o calor é pior, abafado, não há vento, não há brisa, não há alento.
As gatas, coitadinhas, deitam-se no chão da cozinha, buscando resfriar a barriga. Até o cio delas fica mais discreto, a sensualidade perde as forças nesta umidade amazônica que se abate sobre a cidade. A vontade é vestir a tanga de São Sebastião e usar a pele como roupa.
Por incrível que pareça, é na Gamboa que passo tardes frescas. No imponente prédio que abriga o Centro Cultural José Bonifácio, outrora um internato para meninos e meninas, a Cia Étnica de Dança ensaia a coreografia da comissão de frente da Escola de Samba Flor da Mina do Andaraí. As salas de ensaio têm pés-direitos de, no mínimo, cinco metros de altura. Os arquitetos portugueses definitivamente entendiam como fazer edificações acolhedoras nos trópicos. Pena que, pertinho dali, no Morro da Favela, os primeiros barracos miseráveis eram erguidos e serviam de inspiração para nossos especuladores imobiliários imaginarem caixotes superaquecidos onde nos amontoamos atualmente.
É nos salões centenários que lindas jovens do morro do Andaraí contam o quanto batalham para serem respeitadas pelas próprias famílias por haverem escolhido o balé como profissão. Já recebem salário para dar aulas ou bolsas de estudos para aprenderem as técnicas de dança, mas pais e mães insistem que façam concurso público ou procurem um emprego seguro. Não estão errados os pais e mães, que sabem da dificuldade em viver da arte neste país. Eles padecem do mesmo mal que boa parte de nossa população, que encara o projeto social - este é patrocinado pela Petrobras - como uma ocupação para afastar os jovens da criminalidade.
Essas moças não querem ser bailarinas exóticas em shows de mulatas, encantando os gringos com a sensualidade folclórica das negras e mestiças. Querem dançar, lutar por um estágio na companhia de Martha Graham, assistir a espetáculos diferenciados e aprender diferentes técnicas de expressão corporal, enquanto inspiram outras meninas dos morros cariocas a fazer arte, mesmo sem o sucesso dos atores do Nós do Morro, que conquistaram a TV Globo. Pena é que artistas sem destaque nas revistas de celebridades continuem encarados como "uns abnegados, coitados".

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