7.11.06

É a mãe


Eu não sei se a culpa é de Freud, do cinema americano ou de Proust, mas a maternidade volta e meia entra em voga. No momento, a moda é falar do dilema da mulher contemporânea que ama o filho e não quer perder sua individualidade, ou seja, não vai deixar de trabalhar fora para ficar em casa dedicada ao bebê.

A vida não tem receita de bolo, é só a repetição de comportamentos observados. A maioria das mães ama seus filhos acima de qualquer coisa. É biológico. O ser viveu dentro da barriga da gente ou foi gestado por outra, mas nos conquistou no primeiro olhar, num orfanato, na rua, na vida. Agora, isso é um comportamento atual, não era assim, não. Quem diz é a Elizabeth Badinter, no "Um Amor Conquistado - O Mito do Amor Materno", uma pesquisa histórica que lembra os hábitos das mulheres chiques dos séculos XVII e VIII na França, que entregavam os bebês para amas-de-leite criarem no campo. Muitas crianças morriam. No século XIX, o padrão muda e nasce a mãe abnegada, imortalizada pela literatura.

Desde que tive meu primeiro rebento revolta-me a insistência em estudar o comportamento social apenas observando os hábitos das classes abastadas ou mais instruídas. As amas-de-leite francesas precisavam daquelas crianças para sobreviver. Seus próprios filhos eram os geradores da situação profissional delas, mas não me recordo o que acontecia com aquelas crianças. Hoje, as revistas e livros que analisam a maternidade no mundo moderno também resumem a abordagem à vivência das mulheres de classe média. Fiquei enfurecida ao ler, uns 17 anos atrás, no fim de minha primeira licença-maternidade, que a mulher precisava optar entre permanecer com o bebê ou retomar suas atividades profissionais. Não se mencionava ali a mãe que, como eu, precisava trabalhar para sustentar a família.

Ao longo de seis anos tive quatro filhos e jamais parei de trabalhar, exceto nos períodos de licença-maternidade. Naturalmente com a entourage indispensável à mãe de classe média brasileira: avós e empregada, além de um pai participativo, que jamais "ajudou", mas fez sua parte na criação dos filhos, claro. (Odeio a expressão "meu marido me ajuda". Se os dois estão trabalhando fora de casa por que as lides domésticas e os cuidados com a prole são responsabilidade apenas de um?)

Ter uma profissão me trouxe muito mais do que uma realização pessoal, mas é a única forma de garantir a sobrevivência de minha família. Minha mãe sempre trabalhou fora, muito mais por necessidade do que por prazer. Sou da geração que teve a felicidade de escolher uma profissão e de escolher a maternidade também.

Nesses quase vinte anos em que me graduei na função materna (nem com tanto louvor assim, mas com experiência de serviço), a imprensa e a literatura continuam abrindo espaço para textos intrigados quando mulheres admitem que trabalhar é muito menos cansativo do que criar pessoas. Ao mesmo tempo, observo mulheres de classe média ainda fora do mercado de trabalho, sem qualquer pressão ou desejo de trabalhar. A vida doméstica as satisfaz plenamente. E mulheres pobres, que vivem em condições abaixo da dignidade (linha da pobreza, no Brasil, é algo próximo à miséria absoluta; basta manter uma família com salário mínimo para estar quase em classe média, de acordo com nossos sensacionais indicadores sociais), também se arvoram de ter maridos que as sustentam. Mas essas mulheres não são objeto de análise. Estão dentro do padrão hollywoodiano de maternidade compensatória pela vida difícil. Só são mostradas quando a vida abate um de seus filhos e aí surgem descompensadas, desesperadas, escandalosas como uma mãe de tragédia grega. Ao leitor branco e educado resta condoer-se da situação "dessa gente".

Um comentário:

Anônimo disse...

um casal, mestre em enfermagem, solicitou-me q visse na Biblioteca da Unesp (sao paulo) onde estudo musica, se o catalogo possuia o livro "mito do amor materno". Nao encontrei (apenas Um Amor Conquistado)
resolvi buscar na rede e encontrei este blog.
achei o texto sobre a mae muito interessante.
tenho reamente percebido q muito dessa literatura parte e visa a tal classe. nao apenas qdo analisa, mas qundo sugere solucoes estas sao e estao em acordo com esta classe. I. Tiba, por ex. Em "Quem ama educa", apesar dos meritos da obra e do autor, q nao nego, as sugestoes nao podem, em muito, ser seguidas por "essa gente".
enfim, gostei, e em breve voltarei.

osnir