16.1.10

Ontem, no Valor Econômico

Sem medo de Shakespeare
Teatro: Depois da montagem de "Hamlet", com Wagner Moura, Aderbal Freire-Filho dirige "Macbeth", projeto do ator Daniel Dantas, sua quarta incursão no universo do bardo inglês.
Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio
15/01/2010

Um artifício de menino esperto para escapar das exigências paternas foi o que originou o interesse de Aderbal Freire-Filho pelo teatro. O pai queria que os seis filhos lessem os clássicos de sua biblioteca. "Descobri uns volumes fininhos com peças de Shakespeare, Molière e muitos brasileiros, como Joracy Camargo, Raimundo Magalhães Jr. Fui tomando gosto, enquanto virava um especialista em leituras de teatro", conta Aderbal, que, nos intervalos entre os ensaios do quarto Shakespeare de sua carreira - "Macbeth", que estreia nesta semana no Rio -, conversou sobre suas mais de cinco décadas dedicadas à procura de um teatro que não afaste o público pelo hermetismo falsamente erudito.

Para o diretor, as plateias abandonaram as salas teatrais por puro tédio, mesmo diante de montagens que tentam inovar a forma e raramente o conteúdo. Reconhece que nem sempre consegue conquistar o público a quem destina seus espetáculos. Depois de um ano de temporada do "Hamlet" estrelado por Wagner Moura, montou "Moby Dick", recriação do romance de Herman Melville, que obteve boas críticas, mas não repercutiu positivamente nas plateias. Algo que já havia experimentado na década de 70, quando dirigiu Marília Pêra no monólogo "Apareceu a Margarida", de Roberto Athayde. "O sucesso me subiu à cabeça. Decidi criar um grupo e montar quatro peças ao mesmo tempo. Fracassamos, naturalmente", lembra.

A instabilidade do teatro nunca levou Aderbal a desanimar. Nos anos 70 decidiu abraçar a carreira, apesar da desaprovação da tradicional família cearense, que preferia vê-lo seguir os passos do pai, advogado. Nascido em 1941, cresceu em Fortaleza na época em que poucas companhias teatrais visitavam a cidade. Quase foi radialista, político e funcionário da Petrobras. Estudou direito e trabalhou com o pai antes de radicar-se no Rio para fazer teatro. Gostou da direção quando não encontrou quem dirigisse sua adaptação de "Flicts", de Ziraldo.

"Foi minha única incursão no teatro infantil. Ali, eu percebi que minha satisfação era maior na direção do que atuando", recorda Aderbal. Ele tem especial apreço por projetos de atores, como o espetáculo atual, que dirige a convite do ator Daniel Dantas, intérprete do protagonista. Renata Sorrah faz Lady Macbeth.

Ambientações que exigem a interação da plateia, movimentando-se por cenários distantes e inusitados já o atraíram. Como ator, fez "Diário de um Louco", dentro de um ônibus que percorria alguns bairros o Rio, e "A Morte de Danton", no canteiro de obras do metrô carioca. Em 1991, dirigiu o espetáculo itinerante "O Tiro Que Mudou a História" e levava os espectadores a diversos cômodos do Palácio do Catete, onde Getúlio Vargas morreu. No ano seguinte, a plateia de "Tiradentes, Inconfidência no Rio", era levada em ônibus para seis diferentes pontos do centro. Hoje, suas inovações cênicas estão na retomada de um teatro livre das convenções que o tornaram empoeirado. Sua preocupação não é recriar a gélida Escócia medieval durante o implacável verão carioca - o Teatro Tom Jobim fica dentro da floresta tropical do Jardim Botânico e o ambiente naturalmente abafado torna o uso de ar condicionado imperativo.

"O grande desafio do teatro hoje é não ser chato, empolado, é renovar-se e vencer o preconceito natural da plateia. É preciso conquistar o espectador. Shakespeare, que permite uma leitura em vários níveis de sofisticação, com referências políticas, poesia e jogos de palavras, escreveu para plateias majoritariamente analfabetas. A compreensão é simples, sem concessões. Ao longo dos séculos, o teatro foi se fechando, ficando mais científico, mais pesado. Shakespeare é anterior às convenções, é livre, é solto", explica. O bardo inglês situava uma ação na Dinamarca ou em Viena, batizando os personagens com nomes latinos. Narrava fatos contemporâneos, mas levava a história para a Escócia de 400 anos antes de seu tempo. "Ainda não existiam antropólogos, historiadores e sociólogos para apontar erros no enfoque político ou na fidelidade histórica", diz Aderbal.

Como em "Hamlet", ele traduziu o texto original, procurando uma linguagem que eliminasse "o falso rebuscado". Não se arriscou a traduzir sozinho. "Meu inglês não permitiria que eu fosse garçom em Londres", brinca. Da primeira vez, a versão foi dividida com a professora Bárbara Harrington e Wagner Moura. Agora, tem a parceria de João Dantas, filho de Daniel Dantas.

"Sempre traduzi as peças estrangeiras que montei, mesmo quando não tenho a menor ideia sobre o idioma. Quando fiz 'Casa de Bonecas', de Ibsen, pedi ajuda ao Carl Erik, que é dinamarquês, mas conhece norueguês. Ele traduzia, eu transformava em algo mais próximo de nossa fala. Fiz assim também com Brecht. Com Shakespeare, não quis ficar preso na métrica, mas respeitar sua poesia, que se compõe de imagens, metáforas, aliterações, ritmo", conta Aderbal, que não teme a fama de maldita de "Macbeth", pois teve sua dose de má sorte durante a montagem de "Moby Dick", quando se submeteu a uma cirurgia e precisou trocar o protagonista, acidentado na época dos ensaios.

Montar dois textos de Shakespeare em um intervalo pequeno não intimida Aderbal, convidado para a direção pelos protagonistas. "O projeto do Daniel era anterior ao do Wagner, mas compromissos dele só permitiram que a montagem viesse agora. São duas peças muito desafiadoras e incomparáveis. Não há como dizer qual é a melhor, o poema ilimitado que é 'Hamlet' ou o clima trágico, com o sobrenatural se impondo, em 'Macbeth'", comenta Aderbal.

O diretor completa: "Gosto de enfatizar o humano, que é a essência do teatro de Shakespeare. Macbeth não precisa ser a essência do mal, mas um homem que se desespera ao cometer seu primeiro assassinato. Não existe personagem raso em Shakespeare, todos têm as ambiguidade humanas".

É por isso, garante, que depois de um Shakespeare, tudo o que se quer é fazer outro Shakespeare. "E entre as duas eu fiz 'Moby Dick', que, segundo o crítico Harold Bloom, tem em Ahab o personagem mais próximo de Macbeth, em sua obstinação em levar todos para sua mesma loucura. Então, acho que eu estou no meu quinto Shakespeare."

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