12.4.10

1988


1988 foi um ano marcante para mim. A tragédia social entrou na minha vida, ainda que no posto de observadora.
Naquele ano, no segundo dia de uma chuvarada que desabou sobre o Rio ao longo de quase todo o mês de fevereiro, eu tentava, num carro de reportagem, chegar à Rocinha pela Marquês de São Vicente. Pouco depois de passarmos da PUC, constatamos que não havia como subir até o alto da Gávea. O carro tinha que lutar contra a correnteza que a chuva formara, desviando-se de pedras que rolavam. Era um sábado de manhã e decidimos retornar, apesar da reclamação do fotógrafo, que preferia arriscar, mesmo vendo ônibus descendo a Avenida. Minutos antes, haviamos passado pela Rua Jardim Botânico, porém, ao tentarmos retornar, o canal da Visconde de Albuquerque já havia transbordado.
Foi a primeira vez em que vi as águas dominarem a cidade. Em criança, tenho vaga recordação das enchentes de 1966, em que deixamos Ipanema para nos alojarmos na casa de minha tia, em Copacabana. O edifício onde fui morar, anos mais tarde, na Barão da Torre, foi tomado, até o primeiro andar, pela lama que caiu do Morro do Cantagalo. Na década de 70, meus tios Mattos e Lícia apareceram na primeira página do JB, resgatados por bombeiros de uma inundação pavorosa na Praça da Bandeira. Passaram a noite no quartel da Defesa Civil. Para dissipar a tensão, meu tio postou-se num telefone, anotando os pedidos de resgate.
Mas em 1988 foi diferente, porque eu era uma dos repórteres que trabalharam direto sem folgas por vinte dias. Às mulheres ainda era dado o privilégio de ir em casa, aos homens, nem sempre, já que mal acabou a chuvarada no Rio, começou na Região Serrana. Quem subia, não tinha como voltar, ditava as matérias por telefone aos digitadores.
A comoção de ver as desgraças é embotada no momento de relatá-la. A gente liga o piloto automático e segue. No terceiro dia de chuvas, fui para a Tijuca fazer o rescaldo. Ruas enlameadas, o asfalto coberto de terra amarelada, cheiro de água suja, esgoto. Tentamos subir o Morro da Formiga, mas um policial nos parou e mandou que levássemos feridos, no carro, para um hospital. No Santa Marta, que desabara uma semana antes, uma colega teve que ajudar a carregar soterrados. "Nossos" feridos mal conseguiam falar. Sentada ao lado do homem, eu tentava conversar com ele, que me respondia aos murmúrios. O fotógrafo repetia "o senhor escapou desta, a vida continua". O homem nos parecia em estado de choque, o olhar vazado, sem nos entender, sem compreender o que seria de sua vida dali para frente.
Nossa vida continuou, mostrando pelos jornais a tristeza dos outros, contando as promessas que o governo deixou de cumprir. No fim daquele ano, nasceu meu primeiro filho, um dos privilegiados por saber da tragédia alheia apenas pelo noticiário. Na semana do nascimento do Artur, uma cabeça foi lançada do alto do Cantagalo, durante uma guerra de traficantes. Foi a primeira vez que a barbárie atingia o asfalto de Ipanema.
Em 1988, morreram minha inocência e a de muitos cariocas. As águas continuam a subir, como é registrado desde 1711, quando a cidade mal existia! Reuniões da Defesa Civil antes do início do verão, fui a algumas. Em todas, vi apontarem os mesmos pontos de risco de desmoronamento: Morro da Formiga, Borel, Rocinha, Santa Tereza etc. Ao longo deste tempo todo - Artur tem 21 anos e já entrou em aguaceiro para empurrar meu carro em rua inundada, os três irmãos mais jovens singraram águas imundas diversas vezes em busca de abrigo seco, eu enfrentei áreas alagadas pelo menos em quatro ocasiões diferentes, tendo que mandar automóvel para conserto depois - não vi qualquer tipo de desvio de verbas publicitárias por governos que teriam a responsabilidade de impedir as construções ilegais.

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Quem diz que área de risco é consequência da insistência dos invasores, certamente se refere também à construção legalizada do casarão do presidente da Firjan, no Humaitá, que jogou uma encosta sobre o Clube Espanhol. Na região, não há favelas, só mansões e alguns edifícios, todos levantados com licença das autoridades constituídas.

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Este post é melhor compreendido por quem conhece a topografia do Rio de Janeiro, mas é aberto a todos os não-cariocas.

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Na foto, a Praça da Bandeira inundada, em 1940.

2 comentários:

Milena Magalhães disse...

Sim, é pssível entender tudo, mesmo sem ser do Rio! Equerem colocar a culpa só na natureza!

Te cuida!

Koběluš disse...

E eis que o mundo começou