13.6.13

A casa dos meus avós



Por anos, a casa de meus avós em Florianópolis era para onde eu ia nas férias, mesmo a contragosto. Preferia ficar no Rio, mas meu pai não deixava de visitar a família pelo menos uma vez ao ano. A casa tinha uma dimensão mística para mim pelo simples fato de ser uma casa - o equivalente ao meu Sítio do Pica-pau Amarelo. Eu lamentava que nela não encontrava personagens sábios, de quem eu poderia receber lições de vida. Só meus avós e tios, os primeiros, figuras completamente distanciadas da minha realidade.
Pequenina, simples, sem qualquer ousadia arquitetônica, construída por meu avô, que era pedreiro, em mutirão -  palavra que descobri por causa da casa. Florianópolis sempre ampliou meu vocabulário de garota esnobe da cidade grande. Ver a casa na Rua José Boiteux, para onde eu escrevi tantos cartões e cartas (principalmente para meu avô, que, antes de ficar cego, era um excelente redator), na tela do computador me trouxe uma imensa melancolia. Porque a casa está em inventário, prestes a ser vendida. E eu nunca mais voltarei a ela.

Não que eu tenha maravilhosas recordações de felizes reuniões de família na casa. Não era assim. A família era grande, os encontros eram naturais. Eram bons. Apenas isso. Para me apropriar, uma vez por ano, daquela cidade, daquela casa, daquela vida, eu fazia questão de sempre pular o muro, de jamais entrar pelo portão. Pular o muro era minha travessura de criança, daquelas que eu lia em livros, embora não se coadunasse tanto assim com meu temperamento de garota de apartamento, mais inclinada a leituras do que a brincar de pique.

A casa de meus avós era amarela, quase no tom que hoje cobre as paredes de minha sala. Era tudo bastante apertado, sala, quatro quartos, um banheiro, corredores, cozinha, varanda. E muitas portas. Um quarto tinha sempre duas portas, interligando-se a outros cômodos. Aos poucos, as portas foram desaparecendo, limitando-se a uma por peça.

Na sala, pouco se ficava. A reunião era na cozinha, onde todos se comprimiam para tomar lanches e sopas, em diversos turnos, minha avó Júlia jamais se sentando à mesa, servindo a cada um. Depois de lavar a louça, tudo era escaldado com água fervendo que vinha em chaleiras imensas. Eu detestava secar panelas e pratos, sempre queimava os dedos.

Na frente da casa era o jardim de Vovó Júlia: quatro ou cinco roseiras, algumas rosinhas choronas, uma dama da noite, camarõezinhos amarelos que floresciam no verão e eram recobertos por pequenas lâmpadas no Natal. Na varandinha, eu brincava com velhos frascos de talco ou de perfume que minha avó guardava para mim todos os anos e me entregava nas férias. Ninguém se lembrava de levar brinquedos para as crianças se entreterem naquela época. Ninguém dava muita bola pras brincadeiras das crianças naquela época...

Ao lado da casa, mais rosas cobriam um dos canteiros. O outro, era das pimentas de meu avô. Um trecho gramado servia tanto para quarar roupas quanto para estender carne de sol. Havia também um pedacinho coberto, onde ficava a lavanderia, que nem tinha esse nome, na época. Um tanque, bacias imensas. Mais tarde, chegou a máquina de lavar. Era um espaço coberto, escuro e lá ficavam avencas e rendas portuguesas de Vovó, lindas. Quem passava, regava um pouco as plantinhas. Meu avó não gostava. Só queria saber de plantas úteis. Atrás da casa, fez sua horta de verduras. Tudo orgânico, nada exuberante, pouco fotogênico.  

A casa se tornou para mim a capa de um velho álbum de retratos ou um filme com flashes de momentos intensos. O pão quentinho que Vovô comprava no fim da tarde, a sopa de Vovó, Papai e os tios tomando jacuba, uma ratinha branca e seus filhotinhos, que Vovó criava, eu provando uma linda pimenta vermelha arrancada do pé e quase tendo um ataque de alergia, com a língua inchada, Mamãe me obrigando a beber água misturada com palha de cigarro porque me pegou fumando no jardim, Vovô fiscalizando qualquer conserto que bombeiros hidráulicos faziam na tubulação, as orelhas geladas de Papai no inverno de Florianópolis e suas reações irritadas quando o tocávamos - de propósito - com dedos gélidos,  minha Tia Dilma, que era costureira, forrando botões com pano, a coleção de panos de prato que Vovó guardava "para não estragar", Tio Aliatar fumando cachimbo e cantando música de Agostinho dos Santos, Tio Antero implicando comigo, chamando "Orga! Papagaio tá com fome!", Tia Vilma conversando da cozinha com a mulher de meu primo, vizinha de janela, Vovô encerrando a festa de suas Bodas de Ouro à meia-noite para não incomodar a vizinhança. 

Na última vez em que estive lá, a casa já não era mais usada pela família, estava alugada. Atrás, no espaço da horta e do rancho, uma casinha de madeira que servia de despensa, foi levantada outra casa, de dois andares, onde viveu minha tia Vilma até morrer, três anos atrás. Outras casas da rua passaram por reformas. Algumas foram derrubadas. 

Agora é o tempo de guardar a casa dentro de mim para que ela jamais seja derrubada. 

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