11.9.15

O nojo

Mulheres paulistas vêm fazendo uma série de manifestações contra homens que aproveitam os vagões hiperlotados do metrô para se encostarem nas passageiras. Na juventude fui vítima desses nojentos - e não só no transporte. Naquela época, existiam os "mãos-bobas", homens que acariciavam mulheres dentro dos cinemas. Apenas uma vez revidei à altura essa agressão. Estava com um amigo, assistindo a Ran, do Kurosawa, quando senti a mão invisível (a gente nunca conseguia ver, os caras tinham uma técnica espetacular) tocando minha coxa. Eu devia ter uns 20 anos, já bastante escolada em me esquivar desses tarados de cinema, mas resolvi dar-lhe uma lição. Deixei que o cara se aproximasse o suficiente para eu mirar o peito de seu pé e tacar nele a ponta afiada do salto do meu sapato. O homem se levantou gemendo, eu falei alto: "Vai, seu tarado, foge", meu amigo quis correr atrás, dois rapazes fizeram menção de seguir o cara, que desapareceu da sala de projeção, murmurando "não sou tarado, não".

Mas era, sim. Como era um que resolveu se masturbar, a meu lado, numa sessão de Festa de Família. Desisti de ver o filme, consegui outro lugar na sala lotadíssima. O tarado se levantou atrás de mim, mas acabou deixando o cinema. E eu fui ver os tarados do filme. Moral das histórias: existem tarados cult.

Até pouco tempo, eu achava que só tinha sido vítima de assédio apenas por desconhecidos. Assistindo a um programa na TV que tratava do abuso sexual a crianças por parentes ou conhecidos, senti um tremendo mal-estar. E me veio uma recordação que, por anos estava camuflada por mim mesma. E escrevi o texto que segue abaixo.

Enojada, a mulher entende, com quase quarenta anos de atraso, que a gracinha feita pelo amigo da família era abusiva. Como reconheceu o abuso? Depois de fechar a cara pro adulto, jamais mencionou o fato a ninguém.  Nem aos vigilantes pais, sempre em estado de alerta quanto aos possíveis "desencaminhadores" - se falava assim, então - da adolescente.

Não houve bolinação, era só "brincadeira". Uma cosquinha na palma da mão da menina, um riso idiota, a pergunta: "Você sabe o que é isso?", e o semblante assumindo um ar severo, diante da seriedade do "Sim" da garota. Ele soube reverter a situação. Parecia que ela imaginara tudo, que ele realmente estava brincando - e que ela não entendera nada. 

Passar décadas sem perceber o abuso é uma forma de se defender da estupidez, imaginando que "levou a mal" uma brincadeira. Esse abuso está no carinho inconveniente do colega de trabalho, no convite injustificável do chefe para jantar a sós, na necessidade de inventar desculpas ou namorados fictícios para escapar dessas insistências. Tudo reconhecido, a reação é discreta para não constranger o homem, que "apenas avançou o sinal", como é socialmente esperado dele.
Ao lado de boa parte das mulheres,  eu me calei diante dessas situações.  Ouvindo uma história parecida com a que vivi e fiquei atônita com a sensação de mal-estar que experimentei. E me lembrei desse homem, inteligente, agradável, que, repentinamente, parou de frequentar nossa casa. Só agora compreendi que ele temeu ser desmascarado e, por isso, se afastou de nosso convívio. Mas teve a cara de pau de comparecer, convidado que foi, a meu casamento, acompanhado da mulher.


Eu permaneceria calada se não visse a importância de ajudar algumas mulheres - e quem sabe meninos que também sejam vítimas de situações semelhantes - a reconhecerem o que é abuso. Ninguém deve se calar ou se sentir culpada diante da "brincadeira" esquisita. Se é constrangedor, se é esquisito, não é natural. Se você jamais faria isso com outra pessoa, publicamente ou não, está errado. Se não pode ser comentado com ninguém, se incomodou, é abuso mesmo. 

Ah, sim: a maioria dos homens não age dessa maneira, não. Só os recalcados. 


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