26.1.05

Alguns verões e muitas quedas

As calçadas do Rio de Janeiro têm uma função específica na construção do caráter carioca. Irregulares e esburacadas, elas obrigam boa parte da população a esquecer a arrogância e aceitar humildemente a realidade: somos falíveis e estamos sob o risco constante de uma queda desmoralizante.
Eu, dotada de um esqueleto programado para suportar até uns 80 quilos e que atualmente carrega a envergadura de duas pessoas adultas, sou freqüentemente vítima das arapucas montadas pelo descaso público com essas calçadas. Desde criança caio à toa. Quando não se falava em tendinite, um ortopedista decretou que eu sofria de “tendões fracos” e me enfiou em botinhas ortopédicas pavorosas para os padrões da época (hoje, seriam um sucesso em qualquer festinha rave ou no meio gótico) que só serviam para eu ameaçar com pontapés as meninas que riam de meus calçados. Tempos depois, outro ortopedista me livrou daquela tortura, receitando palmilhas ortopédicas que aliviaram o meu caminhar e reduziram minhas quedas.
Mesmo assim, continuei aos trancos ainda que fora de barrancos. . Os tombos independiam de estar com saltos altos, baixos ou descalça. Eles aconteciam. Destrambelhada, consegui tropeçar numa prancha de surf andando na areia dura do Arpoador. O surfista se embolara numa onda, a prancha parou no meu tornozelo. Mancha roxa e amarela por duas semanas. Um vexame histórico num dia lindo, céu azul de inverno, mar límpido. Entrei na piscininha toda garbosa, jogando charme para uns garotos e caí de cara no chão, torcendo o pé em algum morrinho de areia imperceptível. Passei o resto da manhã pegando jacaré na água, claro.
O mais glorioso dos tombos na orla foi a costumeira embolada numa onda em dia de ressaca. Ninguém tinha coragem de dar um mergulho. Eu, ipanemense desde o segundo dia de vida - nasci em Santa Teresa -, criada naquele trecho do Oceano Atlântico, aceitei o desafio de encher alguns copinhos de mate (eram de papelão, então) com água do mar e trazer para as dondocas amigas. Cheguei na beira, ouvi um rugido. Era quase uma tsumani, daquelas que vem tragando o que estiver na frente, qual avalanche. Firmei os pés na areia e esperei o tranco. Fui derrubada por outros banhistas e me lembro perfeitamente da ridícula posição já conhecida de pés pro alto, vendo o sol debaixo da água e sentindo a areia entrar pelos ouvidos e narinas. Só consegui parar ao bater com o rosto em uma perna. Me arrastei, um olho fechado e os copinhos de papel, miraculosamente, ainda nas mãos. A onda havia varrido toalhas, barracas, cadeiras, chinelos. Todos corriam atrás de seus pertences. Crista baixa, fui mergulhar, encher os copinhos e tirar um pouco da areia que transformara minhas melenas escorridas em dreadlocks de rastafári. Ao retornar para a areia, no meio daquele apocalipse, me deparo com um abobado olhando pra mim. Com o olho que estava bom (ainda não sabia que havia cortado a pálpebra, que adquiriu tons amarelos, azuis e roxos por duas semanas) percebi que algo andava errado com meus trajes. A parte superior de meu maiô cobria... meu ventre. Arrumei a roupa, encarando bem o idiota, o único fascinado com o lamentável espetáculo naquele cenário de filme catástrofe, e passei por ele com cabeça erguida. Enxergando pouco, mas de nariz em pé.
Era para eu já ter aprendido a não despencar a qualquer desnível de cimento pela frente. Impossível, pois a queda é sempre imprevisível. Ao vexado resta o consolo de imediatamente após o tombo surgirem pedestres solidários e solícitos para alçá-lo do chão, enquanto perguntam: “Está bem? Machucou muito?”. Também há os que consolam: “Essas calçadas são umas porcarias, todas esburacadas”. E os experientes: “Eu caí anteontem aqui mesmo. Um absurdo essa Prefeitura não fazer nada”. Os que clamam por vingança: "Se fosse num país decente, você ia pra justiça e ganhava uma nota!"Parece que as quedas têm o propósito de quebrar nossa empáfia quando andamos pelas ruas como se desfilando em passarelas. Outro tombo marcante levei em plena Travessa do Ouvidor, quase em frente ao Pixinguinha. Contabilizando os estragos – palma da mão lanhada, calça novinha de linho desfiada -, fui socorrida por uma amiga, que imediatamente me perguntou se eu havia machucado alguma coisa. “Nada além de minha dignidade”, respondi.
Atualmente, nem ligo mais pra dignidade. Durante a queda, já vou avaliando o terreno para ver em quê vou me apoiar. Hoje, por exemplo, eu estava tão atenta ao calçamento da São Clemente (na frente de cada prédio, uma decoração diferente: pedras portuguesas, cimento mesmo, tudo imitando marolas ensandecidas num maremoto) e, repentinamente, me vi a caminho do chão. Só pensava se minha decotada blusa se comportaria adequadamente e o quanto era bom eu estar de calça comprida – mesmo que branca – naquela hora. Já sobre a plataforma do sapato, me lembrei de uma charge da Mulher Maravilha no finado caderno Mulher do JB, editado pela Sônia Biondo. Na linha de apoio, a pergunta: “Como alguém pode salvar o mundo vestindo este tomara-que-caia?”. É, por superar tantos percalços nas searas do Rio a alma feminina carioca é intensa, altiva e maleá¡vel como o doce balanço do mar.

PS - Ao caçar fotos para ilustrar este texto, verifiquei reclamações generalizadas de cadeirantes contra o péssimo estado das calçadas cariocas, algo que a gente não pode deixar de registrar. Se à maioria da população cabe o perigo iminente de cair, os cadeirantes, assim como deficientes visuais, mal conseguem se deslocar nas tortuosas e torturantes calçadas da cidade.
Multiply, 16/12/2004

Nenhum comentário: