26.1.05

A culpa é da imprensa

Não preciso subir o Aconcagua nem fazer bungee jump para sentir emoções fortes. No Rio, diariamente, sobrevivo a um assalto, uma bala perdida, um atropelamento, um arrastão. Convivo com a paranóia. Dirijo defensivamente, ou seja, com uma boa velocidade, parando nos sinais a uma distância razoável do carro da frente, a fim de ter uma margem de manobra no caso de precisar deixar rapidamente o local, mas o mais encostada possí­vel do que está ao meu lado para impedir a passagem de algum assaltante.
O carioca virou um estrategista. Meu amigo-irmão Eduardo Graça, que foi viver em Nova York, visitando o Rio disse que só nos Estados Unidos percebeu como caminhamos olhando de esguelha para o lado e virando a cabeça pra trás. Na verdade, precisaríamos ter espelhos retrovisores para acompanhar a aproximação de elementos suspeitos.Outro dia, no Rebouças, peguei um pequenino engarrafamento. Imediatamente comecei a bolar planos de fuga, verifiquei onde estavam dinheiro e os documentos, pronta a entregar a bolsa se houvesse um arrastão. Não era nada, era trânsito mesmo. Tornei-me um ser de raciocínio rápido, sempre em estado de alerta.
Naturalmente, muitos dizem que “não é bem assim, a imprensa exagera” . Mas não é necessário exagerar. Meu filho foi assaltado no ponto de ônibus vazio por dois pivetinhos. Entregou-lhes o dinheiro da passagem e saiu andando depressa, refugiando-se no Escadaria Shopping com medo de estar sendo seguido. Ele tem 12 anos, o irmão mais velho já havia sido assaltado na padaria, em frente de casa, aos 9. Aí­, tem sempre quem diz: “Poxa, com 12 anos, deu bobeira!”. Ninguém mais tem direito de ser despreocupado aos 12 anos. Nem aos 9, nem aos 20, nem aos 50. O jeito é ensinar as táticas de sobrevivência na selva urbana para nossas crianças. Jamais andar sozinho. Dar tudo o que o ladrão pedir. Não bancar o valente, pois o outro pode estar armado. Sair vivo da situação.
O primeiro assalto que sofri foi quando eu tinha 29 anos. Estava parada num sinal em Copacabana, na saída do túnel da Tonelero. Veio um garotinho e me pediu o dinheiro. Distraída, achei que era esmola que ele queria. Quando entendi, ainda pensei em fechar a janela do carro, mas, pelo retrovisor, vi que ele tinha um parceiro, encostado mais atrás. Passei o dinheiro, a aliança e fui para casa chorando, depois de afiançar ao gurizote que ficaria quieta (ele me ameaçou “passar a faca” se eu fizesse escândalo). Em casa, meu então marido me repreendeu por estar de janela aberta. Dei um chilique, fiz discurso sobre meu direito de andar de janela aberta.
Hoje, sei que aquele tempo (uns 15 anos atrás) ainda era pré-colombiano - de Colômbia, não Colombo - , bem distante da realidade de Medelin ou Bogotá. Não sei quantas pessoas são mortas todos os dias nessas cidades, nem quantas morrem no Rio por marcarem bobeira nos sinais, nos ônibus, nas ruas. Sei que para proteger meus filhos, eu os crio quase dentro de uma redoma. Aos 9 anos, convenci minha mãe que era perfeitamente capaz de ir para o colégio sozinha, sem saber que, durante algum tempo, Maria, que me criou desde bebê, me seguia, às escondidas, pela Visconde de Pirajá até a escola. Conquistar a liberdade era difícil, em 1970. Atualmente, minhas crianças, mais velhas que eu naquela época, são levadas de ônibus ou metrô para a escola e têm a rotina completamente monitorada por mim, através de telefonemas constantes. Não porque eu queira sufocá-los, mas porque não dá para nos tranqüilizarmos sem saber se eles estão em segurança.
Mesmo temendo o assalto nosso de cada dia, fiquei pasma ao ler duas colunas de protestos de leitores do Globo, hoje, contra a postura do jornal de publicar fotos de um assaltante provavelmente esmurrado por policiais depois da prisão. Não havia um só e-mail ou carta de indignação porque o ladrão, preso em flagrante, apanhara da Polí­cia. Que o assaltado se revolte e até agrida o assaltante, é compreensível. Aplaudir um Estado que agride o transgressor, sem qualquer julgamento, é muito perigoso. Esta é a forma como, certamente, pensa o soldado americano que assassinou um iraquiano ferido e desarmado, como mostra o mesmo jornal na primeira página de hoje.
Mas, claro, nos dois casos - o daqui do Rio e o lá no Iraque - a culpa é da imprensa, por mostrar a covardia e a barbárie das quais são capazes tantos seres humanos.

Do Multiply, em 17/11/2004

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