26.1.05

Onze anos esta noite

Hoje minha filha completa 11 anos de exuberante alegria. Júlia me surpreende por continuar infantil e serelepe num mundo erotizado que transforma menininhas em ninfetas. Como vivo às voltas com projetos de combate à prostituição infantil e de apoio a comunidades carentes para evitar o ingresso de crianças no tráfico de drogas, Júlia é meu recreio, meu intervalo para ter esperança na beleza do mundo.
Mesmo alheia à complexidade dos problemas da cidade, sua geração, mal protegida por grades, estudando em colégio experimental (acho ridículo chamar de experimentais escolas que trabalham com ensino há 35 anos, como é o caso da Edem, onde meus filhos estão), é muito menos alienada do que pensamos. Convivem com bolsistas menos favorecidos economicamente, com outras crianças que têm problemas de saúde e aprendem a encarar as diferenças como parte da vida. Ao mesmo tempo, a consciência sobre a violência urbana e a falta de questionamento sobre as táticas de defesa são inerentes ao amadurecimento deles. Estou criando uma medrosa, que não dispensa a companhia de um adulto para ir ou voltar do colégio e que se prende à infância, moldando bonequinhos em massinha colorida, enquanto se sente segura perto de uma mãe neurótica com a guerra urbana.
Minha manicure tem 32 anos, é criada e nascida na Rocinha, de onde quer sair a cada batalha entre traficantes. É a única pessoa que conheço que carrega uma bala no corpo. Há anos, levou um tiro na perna e os médicos acharam melhor deixar o projétil no local, pois ele não, nem interfere nos movimentos, o que poderia ocorrer se fosse retirado. Ela é uma das pessoas mais adoráveis que conheço e está sempre de bom astral, embora tema constantemente perder sua casa e seus pertences. Conta que é considerada “muito besta” por suas ex-colegas de colégio, pois completou o Segundo Grau e não engravidou adolescente. Fez um curso de manicure e foi à luta, consciente de que não adiantava tentar vestibular para faculdades que não conseguiria acompanhar nem pagar. Seu sonho é aprender corte e costura para diversificar seu campo profissional. Por questão de segurança, não posso escrever seu nome. Não tem amizade com o pessoal do tráfico, embora conheça muitos desde criança. Algumas de suas amigas fazem questão de cumprimentar os soldados, enquanto ela passa direto, apenas meneando a cabeça quando inevitável. Teme o poder dos traficantes, curva-se à lei do silêncio, mas jamais pediu que lhe comprassem um remédio. Quando foi atingida pela bala perdida, na porta de um boteco da favela, emissários dos traficantes a procuraram para saber se precisava de ajuda. Agradeceu, mas recusou o oferecimento. Só não deixa o morro porque o marido não quer pagar aluguel e morar distante do local de trabalho.
A caixa da padaria mora no Vidigal desde que nasceu, 22 anos atrás. O pai quer voltar para o Nordeste, de onde saiu há três décadas, pois fica estressado cada vez que chega do trabalho e precisa esperar que a Polícia libere a entrada em casa. Não posso revelar aqui o nome da moça, que, como minha manicure, teme o longo braço da lei dos mais fortes. Não é absurdo que duas mulheres batalhadoras, trabalhadoras tenham que se esconder sob o anonimato porque vivem em locais onde o Poder Público se omitiu? Não é absurdo querermos proteger nossos filhos a ponto de quase sufocá-los com tanto cuidado? Não é absurdo esses mesmos filhos nem questionarem o direito à liberdade, a deixar a barra da saia da mãe por temerem os perigos da rua? Hoje é o Dia de Combate à Violência contra a Mulher, violência doméstica, acobertada pela omissão pública, que culpa a ví­tima pelo que sofre. Tem ainda a violência contra nós todos, os que se escondem atrás das grades, as empregadas domésticas "aconselhadas" a usar o elevador de serviço, os negros que precisam se identificar aonde quer que entrem, os homens explorados que trabalham em jornadas cansativas sob o sol sem receber hora extra.
E hoje deveria ser apenas o dia de comemorar o aniversário da Júlia.

Do Multiply, em 25/11/2004

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