13.6.05

Desovando Pérola

Acho que já sei o que passa pela cabeça dos encarregados de sumirem com corpos mortos em condições suspeitas. Não que eu tenha passado por isso. O único caso bem sucedido de transporte ilegal de cadáver que eu conheço foi na minha própria família. Uma prima minha era casada com o sogro de meu tio. Ela morreu em viagem, em Porto Alegre, e, como já se previa a burocracia para obter atestado de óbito e translado do corpo, meu tio e um dos irmãos da falecida decidiram rebocá-la, de carro, para Florianópolis, onde seria o enterro. Se o carro fosse parado na estrada, logicamente, todos acabariam presos, mas os malucos devem ter proteção divina e conseguiram chegar ao destino sem qualquer problema.
Não cheguei a viver uma aventura tão marginal assim. Tudo começou uma semana atras, domingo, 5 de junho, quando fui passear pelo Campo de Santana, coisa que não fazia há anos. O objetivo era nobre: encontrar um bichano para uma amiga. A praça estava fechada, mas os gatófilos têm acesso garantido. Uma gatófila que conheci por telefone, indicada por outro bichanófilo, nos aguardava no botequim em frente - saia cigana, bolsa entupida de papéis, puxando um carrinho de feira com sacos de ração e garrafas d'água, poderia ser confundida com uma moradora de rua. Não que parecesse suja. É que a moda hoje é muito mais democrática. Vide as roupas das "cachorras" que pouco diferem dos uniformes de trabalho das moças que ganham a vida nas ruas.
Bom, lá entramos nós no parque, o verdadeiro Jardim do Édem para minha filha, que entrava em todos os canteiros para pegar filhotinhos de gato de todas as cores e raças, entre patos, cotias, marrecos, esquilos e pavões. Outras bichanófilas percorriam o Campo, enquanto nós seguíamos com Míriam, vistoriando os gatos, que caminhavam atrás da gente em bando. Quantos gatos vivem no Campo? Creio que uns 200, a maioria alucinada por comida e cheios de marra, nos marcando com carinhos nos tornozelos.
Enquanto minha amiga Cíntia não se decidia por nenhum gatinho, acabei me rendendo a uma bela filhotinha preta, aparentemente saudável, que levamos para casa, com intenção de criarmos por uma semana. Depois, ela iria para Cíntia. Naquela noite, já estávamos apaixonados por Pérola, uma bolinha preta tão pequenina que não encontrávamos quando se escondia embaixo de uma folha de jornal.
Durou pouco nossa convivência. Pérola passou mal na noite de quinta-feira. Sexta-feira de manhã internei-a no veterinário, onde ela morreu, à tarde.
Como sofri com a morte da bichinha. O veterinário, Cíntia e a bichanófila me asseguraram que ela estava fadada à morte precoce e que, ao menos, teve a alegria de poucos dias com uma família que a recebeu com carinho.
Dizem que as atribuições de registrar um óbito, sepultar um morto querido e tratar das papeladas necessárias ajudam a enfrentar a dor do luto. Pude comprovar a tese no sábado de manhã, quando fui tratar das exéquias da gatinha. Até então, só havia me incumbido de dar fim a corpos de passarinhos, peixinhos, hamsters e uma tartaruga. Uma moleza, já que peixinhos vão literalmente pelo ralo, enquanto os outros corpinhos são enrolados em jornal e sacolas de supermercado para descer pela lixeira.
O veterinário me explicou que cães e gatos precisam ser enterrados ou cremados em Niterói. I
Bem, como não conheço ninguém que tenha casa com jardim aqui no Rio e eu não me imaginava invadindo um terreno baldio para enterrar clandestinamente uma gatinha, tive que tratar da desova. Saí de carro com uma caixa de sapatos fazendo de caixão, à procura de um daqueles containers de entulho para depositar, sem qualquer pompa, os despojos de Pérola. No caminho, ia imaginando subir a Ladeira Novo Mundo, onde dizem que há um local já tradicionalmente utilizado para desovas, mas fiquei com medo de topar com outros cortejos fúnebres, de mamíferos bípedes executados pela lei dos morros. Acabei encontrando uma caçamba de entulho em local mais ou menos deserto e lá deixei o corpinho da gatinha, me sentindo culpadíssima por estar conscientemente ferindo uma norma municipal e frustrada porque não pude salvar Pérola, que, espero, à esta altura, esteja pulando no céu dos gatinhos levados.

2 comentários:

Eduardo Graca disse...

"Uma prima minha era casada com o sogro de meu tio"....?????

Da pra explicar melhor isso?
(:

Olga de Mello disse...

É isso mesmo. Minha prima Iolanda - em terceiro grau - casou-se com o sogro viúvo do meu tio Antero. Lógico que ela tinha idade para ser filha do Velho Bastião. E não é que o Velho Bastião também enterrou a Yolanda, que morreu de coração aos 40 e poucos anos?