3.8.06

Acachapante




Quem viu "Caché" e se espantou com o fim em aberto esquece que a vida é repleta de episódios não concluídos. Só vim a assistir o filme agora, em DVD, dentro de casa, sozinha, e com direito a pesadelos sanguinolentos a madrugada inteira. O que significa que Michael Haneke conseguiu de mim um efeito interativo melhor do que poderia esperar: além de ficar com o filme no consciente, discutindo a culpa da classe média e das elites ocidentais, o terror se alojou no meu inoconsciente - o que, em tese, me tornaria tão esnobe e insensível quanto os personagens principais, grande tema para levar a um analista com pendores existencialistas; como abandonei há muito a terapia e não conheço nenhum analista que queira discutir filosofia/ideologia/política e cobrar 20 reais a sessão, deixa isso pra lá mesmo.
O que o filme tem de sensacional não é apenas um elenco afiadíssimo (as diferentes personas que surgem em Daniel Auteil, os comportamentos em cada situação específica, seja a maneira estúpida como fala com o ex-companheiro de infância ou o olhar subserviente e bajulador que dirige ao chefe; o desespero de Juliette Binoche com o desaparecimento do filho; Maurice Bénichou, maravilhoso como o ex-agregado; e a força de Annie Girardot), mas uma costura perfeita de situações absolutamente desprezíveis para a polícia, que deixa o cidadão atemorizado por conta própria. E que só considera cidadão o branco de elite educada. Qualquer um que o ameace esta elite é encarcerado.
O que o filme tem de artificial é a parábola, é a justificativa que atenua o crime, o terror. Se ele existe, é porque em algum momento o terrorista foi vítima do aterrorizado. Ele também força a barra ao pôr sobre uma criança de seis anos a culpa pelo destino de outra criança. Aliás, a culpa só existe do lado atemorizado, não de quem atemoriza. No entanto, o didatismo pueril é minimizado pelo cuidado em montar uma fábula contemporânea, uma vida como ela é, com gente que trabalha muito para estar em boa posição social, que vive no mundo da venda de idéias e reflexões, que come literalmente entre livros.
Haneke fez um filme para ser discutido, falado, para não se esgotar dentro da sala de projeções. E conseguiu.

2 comentários:

Palpiteira disse...

Só vi o trailer, mas vc me convenceu. :)
Bom fim de semana. Beijos.

Olga de Mello disse...

Veja o filme. Não tem a velocidade das produções americanas, mas vale a pena.
Beijoo!