4.6.07

Alinôr

Hoje faz 16 anos que meu pai morreu.
Gosto de acreditar que sua última visão no planeta foi de mim, sua única filha, que apertava sua mão e falava: "Oi, querido", pois ele havia aberto os olhos. Mas acho que foi apenas um esgar, um reflexo no desfalecimento.

Fiquei anos sem sonhar com Papai, até que minha mãe morreu e ele virou figurinha fácil nos meus sonhos. Passei a brigar muito com ele, então, por ter sido o primeiro a largar o barco. Acordava mal, triste, depois desses sonhos, até que as participações de Papai ficaram mais parecidas com a pessoa que ele era, sarcástico, engraçado, alegre, ranzinza, por vezes, curioso e interessado na vida.

Sempre o vejo quando tento tento vislumbrar, olhando de esguelha, o título do livro que alguém está lendo no ônibus ou no metro. Sempre o sinto quando o Fluminense ganha e meus filhos comemoram, felizes, pelo time do qual ele era ardoroso torcedor. Sempre o encontro quando descubro um novo autor, um novo cineasta ou tomo um chopp gelado numa tarde de verão. Quando escrevo ou corrijo textos, quando dou gargalhadas com atrocidades perpetradas contra o entendimento claro, quando procedo com serenidade e absoluta convicção sobre o que estou fazendo, quando vou à praia e sinto a areia nos pés. Por muitos anos, ele me levava à praia, mas não podia entrar no mar, devido às alergias violentas que explodiam a cada mergulho.
Meu pai está na minha pele morena. Nos cabelos lisos escorridos de Júlia e na forma como ela sorri, fechando os olhos como ele. Na tranqüilidade de Hugo, que não se apressa para nada, me dando nos nervos igual ao avô. Nas palhaçadas de Oto e de Júlia, que gostam de brincar e fazer os outros rirem sem qualquer motivo, do mesmo modo que Papai. Na ironia de Hugo, nas mãos finas de Oto e, principalmente, no carinho de Artur, que o sente com um amor do qual não pode ter recordação, já que Papai morreu quando ele tinha apenas dois anos.
Há 16 anos, fui registrar seu óbito no cartório ao lado do Fluminense e imaginei que Papai estaria feliz se soubesse que ali estava a marca de sua saída da cidade que mais amou. Era um dia lindo, de céu esgazeado, como dizia minha avó Júlia, a mãe dele. Desde então, o mundo perdeu muito de sua graça.

3 comentários:

Jôka P. disse...

Quase todos os personagens de meus sonhos mais felizes estão mortos.

Olga de Mello disse...

É tão bom que eles nos tragam alegria quando sonhamos, não?

Anônimo disse...

ai olguinha, que coisa bonita...