13.3.08

A menina que não roubava livros


Meu envolvimento com livros pode ser definido como algo bem próximo da paixão carnal. Alguns me arrebatam e tornam-se obsessões. No momento, vivo um reencontro que demorou 25 anos para acontecer. No último quarto de século, procurei intensamente Birds, Beasts and Relatives, a continuação da saga da família de Gerald Durrell em Corfu, descrita por ele em My family and other animals. Através da Internet, finalmente, consegui uma cópia de um sebo de São Paulo.
Ao longo desses anos, descobri que Durrell não era tão adorável assim como ser humano, embora tenha deixado ao mundo empolgantes descrições de uma infância libertária, ao lado de uma família excêntrica. Em contato com outros fãs de Gerry, soube que ele limou dos relatos a primeira mulher de seu irmão mais velho, o escritor Lawrence Durrell. Coisas de família e de autores. Participando de grupos de admiradores de Laura Ingalls, outra escritora que povoou minha infância com a série autobiográfica A Casa na Floresta, também tive a amarga decepção de conhecer sua sofrida realidade. Personagens reais eram fundidos em um, elementos românticos acrescentados a episódios amorfos. A vida real precisa de alguma imaginação e toques de felicidade para merecer a imortalidade. Mais ou menos como faz Ian McEwan em "Reparação".
Além de alegrar minha meninice, Gerald Durrell acaba de me tornar, na maturidade, receptadora de mercadoria roubada. Dentro do livro estava, como se marcando uma página, um cartão de biblioteca!!!! Tem o brasão de uma cidade, que não se pode identificar, algumas siglas também indecifráveis e, burocraticamente datilografado: "Mat. Livro/Autor Durrell, Gerall/Título Familia passaros e outros", sem acento algum. Abaixo, uma tabela com lacunas vazias para datas de devoluções.
Antes mesmo que eu lesse Durrell em português, tive contato com sua obra no original, na biblioteca da Cultura Inglesa. Sempre fui honesta e devolvi tudo o que li, mesmo com atraso e dor na separação de volumes que jamais encontraria em livrarias brasileiras. No IBEU, tive a mesma experiência e por pouco não entrei para o mundo do crime. Fiquei quase um ano com uma publicação interessantíssima sobre a vida de Billy the Kid contada por Pat Garret, publicada em jornais da época. Meu pai, um dos seres mais irritantemente honestos com quem convivi, ficou triste quando devolvi o livreto. "Eles nem sentiram falta. Ninguém mais vai se interessar em ler isso", comentou quando lhe relatei meu ato de pura honestidade. Ainda assim, sigo acreditando que roubar livro de biblioteca é crime inafiançável.
Exceto quando a gente compra inadvertidamente material roubado e não tem como descobrir a identidade do antigo proprietário - que nem deve ter dado conta da baixa em seu acervo. E ainda deu um quê de ilícito a esta reunião amorosa.

3 comentários:

Anônimo disse...

tbm no ibeu (botafogo) surrupiei da biblioteca um livro (island, huxley)e não, não queria devolvê-lo - aquela história de idiota quem rouba livro mas duplo idiota quem devolve, mas o incômodo de pegar só pra mim algo que tbm era meu acabou por me demover da intenção e tasquei lá, bonitinho, o livro de volta na prateleira; claro q, compensação, ao sair dali entrei na sears e enfiei debaixo da camisa um disco do traffic, acho q o q tinha o low spark of high heeled boys

Eduardo Graca disse...

Delicioso o texto. Que me fez lembrar das muitas tardes que passei enclausurado na biblioteca de meu colégio - de freiras espanholas lésbicas, as you know - acompanhado apenas da bibliotecária Sônia. Eu gostava mesmo era dos franceses - Elouard, Claudel, etc... - mas a saudade que me bateu não foi nem do tempo nem dos livros e sim da Sônia. Adoraria saber o que aconteceu com ela...

Olga de Mello disse...

As freiras de meu colégio eram alemãs, mas de uma ordem francesa. Não declaravam preferências sexuais, embora fossem bastante modernosas, diziam que a Bíblia fora escrita por e para pastores escravizados incultos, por isso necessitava de uma linguagem absolutamente simbólica. E também davam aulas constrangedoras de educação sexual. Imagine freiras falando sobre sexo.
Mas a biblioteca era apenas para visitações esparsas, por isso me fiz na dos cursos de idiomas.