19.9.08

No Valor Econômico, hoje

Na companhia do silêncio
Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio
19/09/2008

Na companhia do silêncio

Sem camisa no palco, Sérgio Britto é um homem conformado com um destino de sofrimento, que não pode encontrar alívio sequer na morte. Minutos antes, de pijama e quimono, desesperou-se como um escritor que lamenta haver abandonado o grande amor de sua vida pela arte. A amargura e a fragilidade Britto deixa aos personagens criados por Samuel Beckett, como o homem que luta pela sobrevivência em "Ato sem Palavras I" e o intelectual solitário de "A Última Gravação de Krapp". Os dois solos exigem muito esforço físico do veterano ator de 86 anos, que, sentado na platéia do teatro Oi Futuro, no Rio, festeja com o entusiasmo de um estreante os elogios da crítica ao espetáculo, enquanto já sonha com o próximo, que só conseguiu inscrição na Lei Rouanet depois da interferência do ministro da Cultura, Juca Ferreira.
Silvia Costanti / Valor
Sérgio Britto, que abraçou o teatro há 60 anos, seis dias após se formar em medicina: Ordem do Mérito Nacional, recebida neste ano, não impede que faça críticas à política cultural

"No Brasil, todo projeto é uma luta nova. O governo brasileiro deveria estar interessado em fazer teatro e não em fazer do teatro um espaço para sua política. É importantíssimo que patrocinem índios do Oiapoque e mamulengos de não sei onde, mas não é por isso que vão matar os velhos que fizeram o teatro brasileiro até agora", reclama.

O reconhecimento do governo por seus serviços à cultura brasileira chegou neste ano, quando ganhou a Ordem do Mérito Nacional. A comenda não serviu para reduzir suas críticas à política cultural. Apesar do prestígio, teve de recorrer ao ministro para incluir na Lei Rouanet a peça sobre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir que pretende encenar com Fernanda Montenegro em 2009. "Há um ano, eu e Fernanda entramos com o processo. Quando eu soube que pela segunda vez haviam perdido nossa documentação, falei com o ministro. O raciocínio do governo em relação ao patrocínio é confuso", afirma.

A banalidade disseminada pela cultura de massa também o incomoda. "O teatro brasileiro está cheio de pecinhas. O casalzinho de sucesso na novela de televisão monta uma pecinha, em vez de amadurecer e se preparar para fazer uma peça decente. Eu já disse que nunca vi tanta peça ruim quanto neste ano. As exceções são 'Salmo 91', 'As Centenárias', 'O Dragão'. Mas o pior do teatro está se apresentando agora, fruto da ausência de investimentos do governo, de preparo dos atores e do desaparecimento das companhias teatrais."

Em seu terceiro e "definitivo" Beckett, Sérgio Britto já perdeu a conta das peças em que atuou, produziu ou dirigiu, algo em torno de "140 ou 150". Há 60 anos, seis dias após se formar em medicina, abraçou o teatro profissionalmente, interpretando Horácio, em "Hamlet", sob a direção de Pascoal Carlos Magno. "Eu queria ser obstetra, mas me apaixonei por aquela brincadeira. Só desenvolvi a responsabilidade de hoje, em que chego duas horas antes do início do espetáculo, na segunda montagem do "Hamlet", quando fiz o Rei Claudius e percebi o risco do erro."

A descoberta aconteceu em cena, quando, durante um monólogo em que carregava um candelabro com velas acesas, ateou fogo a uma cortina. "Com a outra mão, soquei o pano velho e apaguei o fogo. Ganhei minha primeira salva de palmas como bombeiro", recorda-se.

Para evitar surpresas, toda sexta-feira ensaia "Ato sem Palavras I", testando os mecanismos que fazem descer ao palco os objetos que o personagem tenta agarrar. Ao fim dos 56 minutos de espetáculo se sente massacrado pela entrega aos personagens. Em "Krapp", há pouca movimentação. Come duas bananas, joga as cascas no chão, ouve o relato gravado da separação de cenho crispado, proferindo poucas palavras. Durante os 16 minutos do "Ato", caminha de um lado para o outro do palco, tentando alcançar uma garrafa acima de suas mãos. "Quando acaba, estou em fogo, transpiro tanto que fico quente. As pessoas falam comigo, eu nem ouço direito. Então, represento outro papel, do ator atento aos elogios."

A energia em cena credita ao carinho da atriz Isabel Cavalcanti, que convidou para a direção, e à preparação física pelos exercícios que faz diariamente com o sobrinho Paulo César, filho do irmão, Hélio. Quando superou a sétima pneumonia, em 2007, rendeu-se à necessidade da ginástica. "Minha geração não tinha esse costume, nem conheceu a expressão corporal. Só uma vez treinei pantomima com a Luciana Petrucelli, mulher do Gianni Ratto, em 1956. Agora faço musculação e danço. Estou mais forte. Mas se tenho saúde é porque o palco me dá saúde, não o contrário", garante.

Como Krapp, alter ego do irlandês Samuel Beckett, já tomou a decisão de encerrar um relacionamento pelo teatro, sem arrependimentos. Em sua peça mais romântica e autobiográfica, Beckett recrimina o personagem até no nome. "Krapp se xinga de cretino, de imbecil. A palavra inglesa 'crap' quer dizer merda. Não vivi o mesmo drama. Minha paixão pelo teatro sempre foi maior do que pelas pessoas. Não quero dizer que não sou capaz de gostar das pessoas. Infelizmente, gosto mais de teatro", esclarece, antes de se lembrar serenamente do amigo Fernando Torres, morto recentemente.

Britto enaltece o desprendimento de Fernando e preocupa-se com a viúva, Fernanda Montenegro. "Fernando era absoluto. Tudo o que admiramos na luta e no empenho pelo teatro Fernando fez permanentemente. Um ator excelente, que não se dava bons papéis - passava para os outros. Como era maravilhoso o olhar dele quando via Fernanda entrar em cena. Os dois eram totalmente integrados, Fernando sempre mais sério, contido. Mesmo nesse último período ele demonstrava o mesmo interesse pelo teatro. Só não suportava Beckett."

Depois da peça sobre Sartre e Simone, ele gostaria de voltar a encenar "Rei Lear", de Shakespeare. "Mas só se tiver um elenco sério, bem-disposto. Ou ainda posso encontrar um autor novo, diferente, que me empolgue", revela.

A renovação do teatro brasileiro, para Sérgio Britto, se dá por intermédio de atores como Wagner Moura, Lázaro Ramos, Wladimir Brichta, Selton Mello, Matheus Nachtergale, Andréa Beltrão, Débora Bloch, Dira Paes, Drica Moraes, Malu Galli, Mariana Lima. "Gosto muito de Fernanda Torres", destaca. Ao perceber que a maioria dos que citou já chegou ou se aproxima dos 40 anos, diz que é nessa idade que o ator começa a evoluir para a maturidade. Volta a lembrar da diretora Isabel, que "criou um ambiente de companhia" na equipe reunida para as peças de Beckett. "A satisfação com o trabalho é essencial. Quando minha mãe morreu, fui ao enterro de manhã e à tarde ensaiei uma ópera no Municipal. O trabalho aplaca a dor."

Sozinho em cena, tira sua companhia do silêncio da platéia. "É muito forte, muito bom, é o que mais gosto de ouvir, o silêncio total. É um complemento para o meu silêncio, a minha solidão. Parece que nesse silêncio absoluto está o compartilhamento entre palco e público", afirma, lamentando apenas não sair mais em viagem por cidades pequenas ou bairros de periferia: "Ali estão as melhores platéias, prontas a receber o teatro. Um público mais autêntico, que procura o teatro curioso, sem idéias preconcebidas".

2 comentários:

Milena Magalhães disse...

Quero envelhecer assim, com esta paixão, com esta disposição! da para sentir na pele a emoção de Sérgio Brito!

oxala seja possivel!

bj.

Olga de Mello disse...

Ele é um amor e se sente muito feliz em estar na ativa, Milena.
Tomara que a gente consiga seguir o exemplo dele. Beijo